Alterações no CC com a vigência da nova lei 14.905/24: A taxa de juros Selic se aplica em todos processos em curso?
Aplicação das novas taxas de juros moratórios após a lei 14.905/24, conflitos de leis no tempo e suas implicações processuais.
quarta-feira, 25 de setembro de 2024
Atualizado às 11:43
O artigo tem por objetivo geral responder como aplicar as taxas de juros legais moratórios diante de aparente conflito de leis no tempo. Trata-se, mais especificamente, de responder se a mudança do art. 406 do CC, feita pela lei 14.905/24, sobre a taxa de juros moratórios legais (quando não há previsão contratual), aplica-se indistintamente a todos os processos em curso, e mesmo àqueles com trânsito em julgado.
Primeiro, as perguntas têm mais relevância considerando a possibilidade da aplicação subsidiária de outra taxa de juros legais moratórios além da taxa do Selic - Sistema Especial de Liquidação e Custódia ao interpretar o art. 406 do CC antes da inovação legislativa. De outro modo, esta era a única taxa aplicável e nada mudou.
Desde a promulgação do CC todavia, havia posicionamento em outro sentido. O enunciado 20, da I jornada de direito civil, realizada ainda em 2003, dispôs que: "a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do CTN, ou seja, um por cento ao mês".
Tal posicionamento também se encontrava nos tribunais estaduais e subsistiu mesmo após teses firmadas em regime de repetitivos do STJ, em 2009, aparentemente definitivas sobre a aplicação Selic (temas 99 e 112). Uma rápida consulta de jurisprudência no TJ/SP, por exemplo, permite localizar diversas ementas nas quais consta a aplicação de um por cento ao mês aos juros moratórios legais.
Para evitar a continuidade das divergências, e antes mesmo de ser publicado um novo acórdão sobre o tema no STJ, sobreveio a lei 14.905, de 28/6/24, alterando, entre outros, o art. 406 do CC, estabelecendo a taxa Selic como a subsidiária.
Posto isto, dogmaticamente não mais se discute a taxa Selic para fatos ocorridos após a vigência da lei. Contudo, podem surgir questões sobre a aplicação desta taxa de juros a fatos passados, tais como nos seguintes casos a) Ainda sem sentença, cuja mora ocorreu anteriormente à alteração da lei; b) Com sentença condenatória de um por cento ao mês, ainda recorrível; e c) Processos com sentença já transitada em julgado, mas pendente a execução.
Para delimitar: O assunto não é estritamente de direito processual. É, na realidade, mais ligado ao direito material, sendo só aparente o conflito de leis no tempo, pois se aplica a lei vigente do surgimento dos juros; tempus regit actum.
Os juros moratórios legais são frutos civis, que surgem juntamente com o inadimplemento, relativo (mora) ou absoluto, de uma obrigação (art. 389 ou 395 do CC). Para se aplicar a lei, deve-se considerar inicialmente a norma vigente quando há a constituição da mora, que é quando passam a existir.
Note-se: desde a constituição em mora, e não desde a citação. Esta configura apenas um marco subsidiário diante dos art. 397 e 398 do CC, diferente do que possa parecer em uma leitura isolada (não sistemática) do art. 405 do CC. Isto é o que, aliás, corretamente esclarece o art. 240 do CPC ao fazer ressalva àqueles dispositivos.
Outra nota relevante é reconhecer que mesmo ainda ilíquido o pedido, os juros vencidos já existem; neste caso, só o conhecimento da base de cálculo dos juros ocorre posteriormente, e não a mora em si. Em outras palavras, não se exige a liquidação da obrigação principal para que se constitua a mora.
Não basta, entretanto, demarcar o início da mora. Os juros configuram uma obrigação de trato sucessivo (de execução continuada), periodicamente renovada. Surgem periodicamente juros moratórios enquanto se mantêm o inadimplemento. Logo, considera-se a taxa da norma vigente ao tempo de cada prestação (mês a mês), e não apenas um único marco da norma vigente quando houve a constituição em mora (mês inicial).
Posto isto, deve-se esclarecer que a doutrina e a jurisprudência enfrentaram as mudanças de taxas de juros por diversas vezes nesse sentido. Talvez o exemplo mais semelhante seja o próprio art. 406 do CC/02, quando entrou em vigor, pois a taxa de juros era de 6% no código anterior.
A respeito, há o enunciado 164 da III jornada de direito civil do CJF, em 2004, que esclareceu a importância do início da mora e da norma vigente:
Tendo início a mora do devedor ainda na vigência do CC/16, são devidos juros de mora de 6% ao ano, até 10/1/03; a partir de 11/1/03 (data de entrada em vigor do novo CC), passa a incidir o art. 406 do CC/02.
O destaque para o início da mora e a possibilidade de mudança da taxa posteriormente também apareceu em julgamentos subsequentes. Veja-se, como exemplo, alguns fundamentos do acórdão do REsp 594.486/MG:
Como os juros de mora são regulados por normas de direito material, a regra geral é que as decisões judiciais a seu respeito devem se orientar pela lei vigente à data em que passaram a ser exigíveis, ou seja, à época de seus respectivos vencimentos. Logo, tendo a citação da recorrente [início dos juros de mora no caso concreto] se dado na vigência do CC revogado, em princípio, os juros devem sujeitar-se à regra do art. 1.062 do referido diploma. Todavia, com o advento do novo CC, aquele dispositivo de lei deixou de existir, passando a matéria a ser disciplinada pelo art. 406 da novel codificação. Diante disso, e também, principalmente, do fato de os juros moratórios renovarem-se mês-a-mês, já que prestação de trato sucessivo, tenho que, no caso concreto, devem ser regulados, até 11/1/03, data da entrada em vigor da lei 10.406/02, pelo art. 1.062 do código de 1916, e, a partir de então, pelo art. 406 do atual CC. Qualquer outra solução que se pretendesse dar ao caso acarretaria a aplicação ultra-ativa do CC revogado, ou então a retroatividade dos comandos do novo código, o que seria inadmissível. É de se ter presente que a taxa de juros moratórios, à luz do antigo e novo diploma civil, quando não convencional, é a legal. Se é a legal, é a da lei em vigor à época de sua incidência." (REsp 594.486/MG, 3° turma, julgado em 19/5/05, DJ de 13/6/05). Destacamos.
O mesmo raciocínio pode ser extraído do julgamento posterior do tema 176, em sede de repetitivos, do STJ, em 2010. Na oportunidade, discutiu-se especificamente se havia, ou não, violação à coisa julgada havendo mudança da taxa fixada em processo já finalizado.
No processo de origem, havia sentença proferida, que fixara os juros de mora em 0,5% ao mês em momento anterior à mudança de taxa. Posteriormente à sentença, na execução do julgado, determinou-se, aos juros subsequentes a incidência de juros de 1%, em acordo com a nova taxa do CC/02. No tema 176 se entendeu que não houve violação à coisa julgada.
Ainda no CPC/73, constava expressamente que a coisa julgada não produzia os mesmos efeitos em relação jurídica continuativa, quando sobreviesse modificação no estado de fato ou de direito (art. 471, I). Este dispositivo tornou-se o art. 505, I, no código de 2015.
O que não é possível é aplicar uma nova taxa de juros (lei 14.905/24) a fatos já consolidados anteriormente (= vencidos, ainda que não pagos), sob a égide de leis anteriores, o que implicaria indevida retroatividade. Nem tampouco se admite manter aos juros vincendos uma taxa já superada pela superveniência de uma nova lei (como a lei 14.905/24), isto é, que ocorra ultratividade.
Diante do exposto, para responder os questionamentos feitos ("a", "b" e "c" acima), basta ter em conta a norma vigente ao tempo de cada prestação (mês), independentemente de haver ou não sentença ou coisa julgada.
Em suma, aplica-se indistintamente a taxa de juros vigente desde quando houve a constituição da mora e, havendo alteração legal antes da satisfação da obrigação inadimplida, a nova taxa aos meses subsequentes. Isto não implica retroatividade (aplicação da nova taxa aos meses anteriores), ou ultratividade (aplicação da taxa anterior até o fim da relação jurídica).
Uma consequência àqueles que consideravam, antes da lei 14.905/24, que os juros corretos eram fixados na taxa de um por cento ao mês, é a possibilidade de ainda aplicá-la (até por coerência argumentativa) desde a constituição da mora até o início da vigência da nova lei, em 01/09/24; e, só a partir daí, a Selic. A possibilidade se aplica a processos em curso, sentenciados, ou não, e mesmo com trânsito em julgado.
Desse modo, é possível a coexistência de duas taxas diferentes aplicadas ao mesmo processo, como também ocorreu quando o CC/02 entrou em vigor. Isto já ocorria e nem de longe significa insegurança jurídica propriamente, mas tão somente um aumento da complexidade de cálculos, tarefa que se torna um pouco mais árdua ao se considerar que, com a Selic, deve ser deduzida a correção monetária (art. 406, §1º, do CC).
É verdade que o exposto pode ser raro diante do julgado REsp 1.795.982/SP, recente da Corte especial do STJ, embora seja adequada outra discussão, sobre o alcance de um entendimento interpretativo jurisprudencial a fatos passados. De qualquer modo, as notas trazidas servem, inclusive, caso alterada a taxa de juros no futuro.
A simplificada taxa de um por cento (aparentemente derrotada) também consta no texto do (novo?) art. 406 do anteprojeto de lei para reforma do CC, entregue ao Senado Federal em 4/24. Se aprovada, haverá, em tese, até três períodos distintos de taxas em um só caso.
Por fim, vale mencionar que a lei 14.905/24 tem uma taxa paradoxal, pois, por natureza, variável. Em comparação à taxa de um por cento, pode hoje beneficiar o devedor, mas amanhã o credor. De todo modo, em qualquer cenário, não parece ser adequado o raciocínio da aplicação da lei mais benéfica ao devedor, ainda que por mera invocação do brocardo favor debitoris, e isto por várias razões. Apesar da nota, é um tema que extrapola os limites deste artigo.
Posto isto, conclui-se: Os juros moratórios legais existem a partir da constituição em mora, e mantêm-se mês a mês, até pagas as perdas e danos. O que importa para avaliar a taxa de juros moratórios aplicável é analisar a vigência da lei. Esta conclusão é relevante, inclusive, para maior precisão de cálculos de risco, e não apenas para expor possíveis práticas jurídicas.
Davi Marques de Araújo
Advogado no escritório Schalch Sociedade de Advogados. Especialista em direito internacional e bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.