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Da (ir) repetibilidade do reconhecimento de pessoas no tribunal do júri

O júri é um rito formado por duas fases distintas, sendo uma o sumário de culpa e a outra o plenário do júri, contando ainda com a fase inquisitória de inquérito policial, sendo questionável a possibilidade renovação do reconhecimento pessoal.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Atualizado em 24 de setembro de 2024 07:18

Dando sequência ao texto anterior, o procedimento de reconhecimento de pessoas é um ato em que se busca confirmar a autoria de um delito, expondo os suspeitos a vítimas (sobreviventes) ou testemunhas oculares de um fato típico conforme art. 226 do CPP e suas formalidades legais1.

As más práticas, que incluem a realização de alinhamentos de pessoas em que o potencial autor do delito não guarda semelhanças físicas com as demais, destacando-se por exemplo, sua compleição física ou sua altura discrepante, compromete a segurança do resultado.

Algumas más condutas consistem em manipular o reconhecedor para apontar alguém que na verdade não havia identificado, em convencer o reconhecedor de que os investigadores sabem que o suspeito é culpado ou em compelir o reconhecedor a mentir.

Não podemos descartar também que muitas vezes o próprio Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, ignorando por completo a produção de prova que não corrobora a sua versão acusatória de autoria, indeferindo inclusive requerimentos defensivos pela produção de determinada prova com potencial ou não de colocar em xeque a tese acusatória.

Tal conduta, muito comum na prática, além de configurar um cerceamento de defesa, pode potencializar o risco de falhas, conclusões errôneas e injustas derivados do reconhecimento de pessoas, uma vez que se perde a chance e reduz a possibilidade de determinado suspeito comprovar que a sua identificação estava equivocada, que não estava na cena do crime ou que não foi o seu autor.

É o que se denomina da doutrina de perda de uma chance probatória, quando o Estado ignora a produção de provas que poderiam conduzir a um julgamento justo e acaba por si só prejudicando o interesse público de punir culpados, evitando acusações maliciosas, levianas ou enviesadas2.

  1.  O reconhecimento de pessoas no Tribunal do Júri

As implicações do reconhecimento de pessoas no Tribunal do Júri além das já mencionadas, é que ele é composto de duas fases judiciais, e, ainda de eventual inquérito, onde também pode ser realizado o reconhecimento de pessoas.

Questionável é a possibilidade de renovação do reconhecimento de pessoas várias vezes, no IP e nas duas fases judiciais, mesmo que eventual reconhecimento tenha vindo maculado da fase de investigação.

No procedimento do júri, a questão se reveste de peculiaridades, porquanto se até mesmo os juízes togados têm tendência em valorar um reconhecimento feito fora dos ditames legais, quiçá os jurados que poucos são instruídos na direção de que, no processo penal, forma é garantia.

O CNJ (art. 2º, §1º da resolução 484/22) veda a repetição do reconhecimento. Contudo, é frequente na práxis penal a repetição na fase judicial de reconhecimento outrora realizado na fase policial sem as formalidades legais3.

É temerária essa prática, diante do enorme risco de que após o primeiro reconhecimento, tenha sido ele legítimo ou não, o segundo e os posteriores se tornem apenas um mero juízo de confirmação.

Diante da indiscutível falibilidade da memória humana, não temos dúvidas que o "primeiro reconhecimento (pessoal ou fotográfico) de um suspeito feito pela testemunha ou vítima sobrevivente, se feito de forma legal é o único consideravelmente livre de interferências.

Concordamos com Rodrigo Faucz e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar em artigo escrito a revista "Consultor Jurídico" destacam que a "repetição do reconhecimento pessoal, mesmo à luz do contraditório em juízo e com o nítido intuito de buscar corrigir imperfeições e dúvidas anteriores é insuficiente para gerar maior segurança e credibilidade ao meio de prova, especialmente se a memória da testemunha/vítima já foi alterada em momento anterior"4

Assim como os supracitados e referenciados autores compartilhamos da ideia de que "o reconhecimento, seja ele pessoal ou fotográfico, é meio de prova não repetível, sendo equivocado o entendimento de que a sua reiteração, perante autoridades distintas (autoridade policial, magistrado e jurados) e, em tempos diversos, possa dar maior credibilidade, segurança, evitar contradições ou superar os vícios originários".

Diante de que o conselho de sentença não tem obrigação de fundamentar suas decisões, não podendo se saber sobre qual elemento de prova se amparou sua decisão, um reconhecimento irregular além de irrepetível deve ser desentranhado dos autos e não levado a plenário perante os jurados, evitando a propagação de seus efeitos em face de outros meios de prova ou mesmo sua valoração pelo conselho de sentença.

Além disso, observado o correto momento postulatório, na fase do art. 422 do CPP, se o reconhecimento já tiver sido realizado em sede policial, compete na prática ao magistrado indeferir a realização de novo reconhecimento pessoal e se inválido determinar sua invalidade e rejeição nos autos seja na primeira fase seja perante os jurados em plenário.

Em verdade, a inobservância do procedimento legal enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva (HABEAS CORPUS 598.886 - SC)5.

Outra nulidade que precisamos tratar, é a de no transcorrer da audiência de instrução perante o conselho de sentença, o representante do Ministério Público e, por vezes, o próprio juiz protagoniza um "reconhecimento informal", questionando à testemunha/vítima, por ocasião de sua inquirição, se reconhece o acusado, muitas vezes com trajes de presidiário e sentado no banco dos réus, como autor do fato criminoso sem qualquer observância dos critérios legais.

Não há que se olvidar que um reconhecimento assim, além de nulo terá forte impacto na consciência e formação de um juízo de valor negativo quanto ao réu e sua culpabilidade no conselho de sentença caso a resposta seja afirmativa.

Sendo assim, considerando que todas as ocorrências em sessão plenária devem constar em ata (art. 495, XIV do CPP), deve as irresignações contra a repetibilidade ou nulidade do reconhecimento de pessoas constar no instrumento e ser requerido pela defesa, sob pena de não existir nos autos e não ser analisado pelas instancias de revisão.

Tal requerimento é imprescindível, conforme destacaram Rodrigo Faucz e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar (artigo já mencionado por nós), onde afirmam que, "caso a tese defensiva de negativa de autoria tenha sido refutada pela acusação exclusivamente com o emprego de prova considerada nula (reconhecimento pessoal inválido), deverá o tribunal ad quem reconhecer a nulidade (neste caso absoluta) e remeter o feito a novo julgamento (desta vez, retirando dos autos o ato do reconhecimento). E, mesmo que o tribunal entenda que não se trate de nulidade absoluta, ainda assim a decisão se mostraria divorciada da prova dos autos, o que geraria a submissão do acusado a novo julgamento por decisão manifestamente contrária à prova dos autos (CPP, art. 593, III, "d")".

Mesmo entendimento se aplica ao caso que a irresignação ocorra somente quanto a repetibilidade ou não, não se discutindo a nulidade do reconhecimento propriamente dito, mas a nulidade na repetição em sessão plenária, o que conduziria a novo julgamento sem a realização de novo reconhecimento perante os jurados, se valendo os atores processuais do reconhecimento já feito uma vez, isso se dentro das formalidades legais.

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1 As implicações do reconhecimento de pessoas no Tribunal do Júri. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/413781/as-implicacoes-do-reconhecimento-de-pessoas-no-tribunal-do-juri. Acesso em: 19/09/2024.

2 Aplicação da teoria da perda de uma chance probatória: entre o inquérito e a denúncia. Acesso em: 20/07/2024.

3 O reconhecimento a partir da Resolução 484/22 do CNJ no Tribunal do Júri. Acesso em: 20/07/2024.

4 Tribunal do Júri: o reconhecimento pessoal e o procedimento do júri. 

5 HABEAS CORPUS Nº 598.886 - SC (2020/0179682-3). Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/27102020%20HC598886-SC.pdf. Acesso em 20/07/2024.

Flávio Viana

Flávio Viana

Advogado Criminalista. Pós Graduado em Direito e Processo Penal. Especializando em Tribunal do Júri e Execução Penal. Membro da 20ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.

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