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Golpes financeiros e a governança digital: A eternização de conflitos entre clientes e instituições podem majorar o dano material e ainda destruir o valor reputacional das instituições financeiras

A eternização de conflitos entre clientes e instituições podem majorar o dano material e ainda destruir o valor reputacional das instituições financeiras.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Atualizado às 10:16

São rotineiros os casos de fraudes em operações bancárias, dos quais resultam danos materiais, psicológicos ou morais para as vítimas atingidas. 

Os golpes e fraudes financeiros assumiram uma sofisticação tamanha capaz de enganar os mais precavidos. As vítimas, normalmente com menor familiaridade com a tecnologia, como os mais idosos, recebem cópias fiéis de cobranças, boletos, links para Pix e transferências, mensagens de supostos amigos ou pessoas próximas à vítima, ou lançamentos de compras nacionais ou internacionais em cartões de créditos.

É inegável que a maior parte das atividades bancárias ocorre, atualmente, em ambiente essencialmente digital, inovação que trouxe incontáveis benefícios, maior agilidade e conforto para os clientes. Por outro lado, a interação entre o cliente e a instituição financeira, antes presencial, foi, essencialmente, substituída pela interação virtual, cada vez mais suportada por programação que dispensa a interação humana.

O distanciamento interpessoal e a robotização do serviço - algo que é típico da relação digital - corroborou para um incremento significativo1 da prática do estelionato no Brasil, tipificada no artigo 171 do Código Penal2.  

Levantamentos3 registram que em 2023, somente no Brasil, houve um aumento de 32% no número de golpes financeiros quando comparado com o ano anterior.  Contudo, não se registrou o mesmo incremento na persecução penal dos referidos delitos.

A evolução da Inteligência Artificial (IA) abre espaço para novas fraudes eletrônicas, mais sofisticadas. Os materiais ou conteúdos gerados, com perfeição, reproduzem a voz ou a imagem da própria pessoa ou de pessoas próximas à vítima, dificultando a identificação da fraude.

A empresa de cibersegurança Kaspersky em seus relatórios anuais, denominados Panorama de Ameaças, indicam que o Brasil ocupa uma posição de liderança4 e destaque, quando o tema é phishing5 e golpe financeiro. Em seu relatório, há diversas recomendações, alertando às instituições sobre a necessidade de medidas que possam aplacar fraudes e ataques cibernéticos no setor financeiro6.

O aumento descontrolado dos crimes de estelionato, por meio digital, no setor financeiro, justifica, em parte, o atual estado de desconfiança da sociedade brasileira em relação à segurança das operações financeiras no ambiente virtual.

Nos casos de fraudes fortuitas, praticadas no âmbito de operações bancárias, o STJ consolidou o entendimento de que a responsabilidade da instituição financeira é objetiva, atribuindo a instituição financeira o dever de assegurar um ambiente seguro para as operações bancárias de seus clientes, entendimento este reproduzido na Súmula 4797.

Essa responsabilidade objetiva, no entanto, não é absoluta. Ela será afastada nas hipóteses de culpa ou de exclusiva responsabilidade da vítima para a concretização do dano, ou ainda no caso de culpa concorrente8.

A boa governança recomenda que as instituições financeiras devem adotar as cautelas, políticas e sistemas disponíveis, visando à prevenção da ocorrência de fraudes financeiras, dentro e fora de suas organizações.

Neste sentido, algumas medidas devem ser adotadas, como por exemplo, a suspensão de operações suspeitas e validação pelo cliente, baseada no histórico de consumo e na atividade do próprio cliente.

Outra medida importante é a proteção de informações sobre transações bancárias, que deveriam ser realizadas no ambiente seguro dos aplicativos de cada banco, protegidos por sistemas de segurança e criptografia, ou através de boletos, comprovantes de pagamento que devem ser protegidos por senhas ou outros métodos de prevenção, visando à mitigação do risco de ataques cibernéticos.

Por outro lado, os clientes e usuários das instituições financeiras também são responsáveis pela proteção de seus dados, devendo adotar maior cautela em relação ao fornecimento de dados pessoais e senhas de acesso a terceiros.

Mitigando Fraudes e o Dano Material

Medidas simples podem evitar fraudes e os correspondentes danos. Clientes e usuários dos sistemas financeiros digitais podem adotar as seguintes boas práticas:

  • (i) Preservar dados e senhas, não compartilhando com estranhos ou facilitando o seu acesso;
  • (ii) Não abrir mensagens, documentos ou links de origem duvidosa;
  • (iii) Acompanhar e administrar, diariamente, os lançamentos feitos em suas contas e faturas de cartões de crédito, visando à pronta identificação de operações ilícitas;
  • (iv) Manter informados os bancos ou administradoras de cartão de crédito sobre quaisquer lançamentos suspeitos, no menor prazo possível.

Por outro lado, as instituições financeiras devem adotar uma postura mais proativa, aumentando o conhecimento de seus clientes para que, desta forma, possa prevenir melhor a fraude.

As instituições devem procurar reinstituir relações pessoais com seus clientes, além de propiciar cursos, anúncios, palestras, treinamentos ou outros meios gerais, destinados à correta preparação dos seus clientes.

A Conjugação dos Interesses e as Boas Práticas de Governança

A conjugação das ações dos clientes e das instituições, visando à prevenção dos estelionatos financeiros, contribui diretamente para a mitigação dos riscos divulgados pelos especialistas em cyber segurança, evitando riscos e danos para ambas as partes, na medida em que, por um lado, reduz o fator "surpresa", o "desconhecimento" e a "credibilidade" atribuída às ações de phishing perpetradas por estelionatários e, por outro lado, diminui os riscos de danos potenciais às instituições.

Quando tais ações e cautelas são adotadas pela instituição, a jurisprudência tende a considera-las na avaliação da eventual responsabilização ou não da instituição financeira9, em relação aos danos decorrentes dos delitos.

Desta forma, as ações conjugadas e bem coordenadas entre as partes (clientes e instituições) são consistentes com as boas práticas de governança corporativa.

O Valor Intangível das Instituições e o Dano Reputacional

Ainda no âmbito das boas práticas de governança corporativa, outro aspecto que merece atenção é o valor reputacional, que abrange a solidez e a credibilidade da instituição, ou seja, é um valor intangível que pode atingir todo o setor financeiro.

A credibilidade e a solidez do setor são, a longo prazo, essenciais à sustentabilidade da instituição, seus serviços e sua clientela.  

No entanto, o retrato estatístico atual nos mostra um aumento exponencial de ações judiciais relacionadas a fraudes financeiras, o que decorre do enorme desgaste havido no relacionamento entre clientes e bancos, os quais têm falhado na prevenção e na solução das contendas.

Há uma certa displicência na gestão dos conflitos, visando à sua pronta solução, de forma que, ao se estenderem demasiadamente, desembocam em reclamações e contenciosos, as quais são mensuradas através de denúncias em delegacias de polícia e em número de ações distribuídas no próprio poder judiciário.

Ao contrário disso, a instituição financeira deveria procurar alcançar uma solução mais rápida para os conflitos que decorrem das fraudes digitais, na medida em que tal agilidade poderia ajudar a amortecer, significativamente, o impacto negativo dos delitos digitais. 

A contenda entre clientes e bancos atinge em cheio a boa reputação e a credibilidade das instituições financeiras, gerando custos e perdas de difícil reparação ou reversão.

Mitigando Conflitos e Custos

Gerir e mitigar adequadamente os conflitos entre clientes e bancos são estratégias valiosas para a construção de uma parceria duradoura, o que é imprescindível para a preservação dos intangíveis da organização, incluindo o seu valor reputacional. Tal parceria fortalece a relação de confiança entre clientes e bancos.

Ora, uma disputa judicial impõe elevados custos para as partes, que podem superar, até mesmo, o valor do dano material sofrido. A par disso, a discussão sobre danos morais tem sido cada vez mais suscitada, ocasionando condenações, muitas vezes, sem critérios objetivos, ou distantes da razoabilidade e proporcionalidade, incentivando o crescimento da indústria de indenizações.

Trocando em miúdos: a rápida solução de um conflito relacionado a fraude financeira, amenizando os impactos econômicos para clientes e instituições financeiras, traz melhores resultados, do que uma longa disputa judicial, da qual só emergem custos, desgastes, perdas materiais e imateriais, fuga de clientela, entre outros.

Conclusões

Levando-se em conta o prognóstico negativo, já divulgado por empresas especializadas em segurança cibernética, quanto à tendência de aumento dos delitos de estelionato financeiro no Brasil, somado à inépcia do Estado em coibir condutas delituosas e a morosidade do judiciário brasileiro para solucioná-las, é imperativo que se busque novas formas de solução de conflitos entre clientes e instituições financeiras. 

Boas práticas de governança e proteção dos dados, associadas às estratégias de prevenção e mitigação dos riscos de fraudes, bem como a aplicação de métodos ágeis e não contenciosos, para a solução de conflitos, entre clientes e bancos, são estratégias fundamentais para a preservação dos valores tangíveis e intangíveis das instituições e de seus clientes. Tais medidas, em conjunto, auxiliam no fortalecimento do ambiente virtual de negócios, trazendo maior segurança para todos os que nele interagem.

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1 Artigo publicado na Revista EXAME, edição 26/02/2024 "https://exame.com/bussola/5-tendencias-preocupantes-em-fraudes-bancarias-em-2024/"

2 Código Penal: Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.

3 Ibidem. Revista EXAME, edição 26/02/2024.

4 https://www.kaspersky.com.br/blog/panorama-ameacas-latam-2022/20311/

5 Phishing nomenclatura que designa a mensagem enviada em massa, a pessoas físicas, em que o emitente simula ser uma grande empresa, instituição ou setor governamental, de forma fraudulenta, com o intuito de obter ilegalmente informações protegidas, tais como número da identidade, senhas bancárias, número de cartão de crédito, entre outras, por meio de e-mail com conteúdo duvidoso.

6 https://www.kaspersky.com.br/blog/panorama-de-ciberameacas-2023/21631/ divulga o Panorama de Ameaças da Kaspersky para o ano de 2023, relatando uma explosão no número de ataques, no Brasil, por phishing no sistema financeiro, alcançando um patamar 5 vezes maior do que no ano anterior.

7 STJ: Sumula 479, disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/sumstj/toc.jsp?livre=%27479%27.num.&O=JT, acesso em 04/07/24.

8 TJ-RJ - APL: 00663045420168190021, Rel. Des. Gilberto Clóvis Farias Matos, julgado em 09/09/2021. Vide ainda artigos 14, §3º, II, do Código de Defesa do Consumidor e art. 393 do Código Civil e para culpa concorrente, conf. Decisão do TJ-SP, Acórdão 10049568020218260010-SP, processo 1004956-80.2021.8.26.0010, Rel. Des. Renato Rangel Desinano, julgado em 15/09/2022, 11ª Câmara de Direito Privado, publicado em 15/09/2022.

9 Conf. Decisão do TJ-RJ, Apelação 00663045420168190021, Relator Des. Gilberto Clóvis Farias Matos, julgado em 09/09/2021, 22ª Câmara Cível, publicado em 13/09/2021.

Ana Lúcia Alves da Costa Arduin

Ana Lúcia Alves da Costa Arduin

Advogada em São Paulo, Sócia de Arduin Sociedade de Advogados. Mestre em Direito Comercial e Especialista em Direito Empresarial pela PUC/SP, Membro do Instituto de Direito Societário Aplicado - IDSA. Formação em Governança Corporativa pelo IBGC e em Mediação pela FGV Direito - São Paulo/SP. Vice Presidente da Comissão de Direito Societário, Governança Corporativa e ESG da OAB/SP Subseccional Pinheiros.

Plínio Shiguematsu

Plínio Shiguematsu

Advogado em São Paulo. Bacharel e Mestre pela Universidade de São Paulo, Professor no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa, Membro do Instituto de Direito Societário Aplicado - IDSA. Membro da Comissão de Direito Societário, Governança Corporativa e ESG da OAB/SP Subseccional Pinheiros e Membro da Comissão de Arbitragem da OAP/SP.

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