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O direito administrativo sancionador na lei de improbidade administrativa

O artigo discute a aplicação dos princípios constitucionais do direito penal ao direito administrativo sancionador, enfatizando sua importância para a improbidade administrativa e a necessidade de garantias constitucionais em sanções.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Atualizado às 16:18

 "Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador." (art. 1º, §º4 da lei de improbidade administrativa. O direito administrativo sancionador ou direito administrativo sancionatório decorre do direito público punitivo.

O direito administrativo sancionatório surge como um sub-ramo do direito administrativo1 e se desenvolve a partir de um sistema - e subsistemas - de apenamento administrativo, decorrente do poder potestativo da administração. Além disso "parte do reconhecimento de que, no plano metanormativo, todas aquelas sanções administrativas em nada se diferenciam das sanções penais, embora, no plano normativo não exista identidade."2

A partir do direito punitivo público é possível estabelecer as sub-áreas (ou subgrupos normativos) de repressão, no qual se encontram o direito administrativo sancionador e o direito penal. O "supraconceito" de direito punitivo público é gênero de ilícitos do qual decorrem espécies: sancionamentos administrativos e penal "cada uno compuesto por um ordenamento positivo sectorial próprio y se aparato técnico de acompañamiento."3

O direito administrativo sancionador, como integrante do poder público punitivo, dimana do poder sancionador (potestad sancionadora) que, a seu turno, é desempenhado por meio das competências e funções administrativas as quais, juntamente com o poder punitivo penal, compreendem o ius puniendi estatal.

A administração aplica a sanção às "situações infracionais legalmente pré-definidas)."4É dizer, havendo a violação a uma norma previamente estabelecida, haverá o apenamento em razão do ilícito ou da violação do "cumprimento de um dever". E é ilícito "a inobservância de um dever jurídico, tenha ele natureza civil, penal ou administrativa."5

Em poucas palavras, portanto, sob o propósito de contextualização, o DAS - direito administrativo sancionador ocupa-se do sancionamento em decorrência da prática de atos ilícitos administrativos nas mais diversas áreas (ambiental, regulatória, controladora, urbanística, consumidor, disciplinar etc).

DAS - direito administrativo sancionador integra o plexo de competências de gestão funcionais, como mote a desempenhar as suas atividades e serviços e, em sua face potestativa, busca garantir e restaurar o ordenamento jurídico "mediante la imposición de uma sanción que no solo reprueba sino también prevenga la realización de todas aquellas conductas contrarias al mismo."6

A sanção deve ser "aflitiva", caracterizada pela aplicação de um prejuízo, privação ou restrição de direitos, ou de vantagens, ou, ainda, do surgimento de novos deveres. Se a resposta sancionadora não for aflitiva, não se trata de sanção.7 Nota: não cabe à autoridade administrativa a aplicação de nenhuma medida de restrição de liberdade ou que seja afeta à reserva de jurisdição.

O §4º do art. 1º da Lei de Improbidade Administrativa determina a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema de improbidade.

Ao estabelecer aplicação dos princípios constitucionais de direito sancionador, de imediato sugere-se a aplicação dos princípios constitucionais de direito penal, em razão do seu caráter igualmente sancionador e punitivo. Em verdade há certa imbricação entre o direito administrativo sancionador - DAS e o Direito Penal que, como dito, são braços de um "supraconceito de ilícito8"de direito público punitivo estatal, porém não são sinônimos e seus arranjos de sustentação não podem ser adotados, num e noutro, indistintamente, na medida em que "sus relaciones com el Derecho Penal son meramente laterales y em la actualidad de carácter meramente técnico".9

Defluem do mesmo tronco normativo, direito público constitucional, mas se apartam em certa altura. Isso porque a escolha de tipificação entre sancionadora administrativa ou sancionadora penal decorre da atividade finalística do legislador que, a partir do objeto tutelado, da gravidade da conduta, da natureza da conduta e demais circunstâncias (v.g., social, política, jurídica etc), elege condutas que devem ser apenadas penalmente e outras que devem ser sancionadas do ponto de vista administrativo.

Disso decorre que não há diferença no suporte fenomênico entre o ilícito civil, administrativo e penal. Todas partem do mesmo lastro factual, sendo "irrelevante reconhecer que o ilícito administrativo é ontologicamente idêntico ao penal, ou que a sanção administrativa é ontologicamente idêntica à sanção penal. Já foi afirmado que há tal identidade."10

O que difere, em essência, é o tratamento jurídico-legislativo ao eleger quais hipóteses de incidência devem corresponder a um fato típico penal ou típico sancionador administrativo.

A falta de um ordenamento codificado ou, de outro lado, a existência de um sistema esparso de direito administrativo sancionador não significa que as lacunas ou ausências próprias do sancionamento administrativo venham a ser supridas pelo direito penal.

O direito penal, por conta disso, deve exercer no direito administrativo sancionador, como dito por Nieto, um "proceso de integración" a partir de três etapas:

  1. o direito penal, por não tomar o lugar do direito administrativo sancionador, exerce função de controle dos excessos estatais, como base limitadora do autotarismo estatal, de modo que o direito administrativo sancionador não pode ser exercida de modo mais rígido do que o direito penal;
  2. o direito penal possui aplicação subsidiária, porém os princípios constitucionais penais possuem aplicação direta ao direto administrativo sancionador;
  3. os princípios de direito penal ao direito administrativo sancionador devem ser aplicados de forma matizada, sob pena de disfuncionalidade do direito administrativo sancionador.

Nessa conjuntura, uma vez realizada a necessária distinção entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, ainda que resumidamente, avança-se à análise dos princípios constitucionais sancionadores que são aplicáveis ao sistema (não somente à lei de improbidade, mas a todo o sistema de tutela difusa anticorrupção) de improbidade administrativa.

Consoante própria dicção do §4º, não são todos os princípios de direito e processual e penal que são aplicados ao sistema de improbidade, mas somente os de ordem constitucionais, o que implica reconhecer o afastamento de princípios legais e ou não constantes no corpo constitucional.

Logo, a primeira decorrência é que, sim, são aplicáveis os princípios constitucionais de direito penal ao direito sancionador.

Outro desdobramento é que são aplicáveis somente os princípios constitucionais de direito e processo penal, mais bem dito "resulta claro es que se trata de la aplicación de principios no de normas y mucho menos de textos. Esto quiere decir que no se trata de aplicar al Derecho Administrativo Sancionador los artíulos del Código Penal y de las leyes penales especiales."11

De acordo ainda com Nieto, as disposições do Direito Penal serão aplicadas excepcionalmente quando (i) tratar-se de analogia em bonam partem; (ii) declaração expressão de subsidiariedade (suplementarmente); (iii) determinação expressa da norma administrativa.

Analisando o alcance do §4º que remete à aplicação ao sistema de improbidade dos "princípios constitucionais",12 é possível definir que são aplicados ao sistema de improbidade todos os direitos e garantias, explicita ou implicitamente, previstos na CF/88, inclusive de ordem penal e processual penal, pois estes também são vetores regentes do direito administrativo sancionador e que, por força do §4º do art. 1º, aplicam-se ao sistema de improbidade.

O direito penal, como já dito, faz parte de um "supraconceito" de direito ilícito punitivo, de modo que todas as garantias e direitos previstos constitucionalmente, devem ser aplicados a todos os ramos sancionatórios, não restringindo-se ao direito e processo penal, como corolário do estado de direito, notadamente no campo punitivo. É dizer, "Encontra-se no direito sancionador, seja administrativo ou penal, um núcleo comum de garantias que é extraído diretamente da própria Constituição Federal."13

Conforme voto do eminente ministro Cassio Nunes Marques, prolatado no Tema 1.199 do Supremo Tribunal Federal, são princípios de direito administrativo sancionador a serem aplicados na improbidade administrativa o da legalidade, sob a forma da tipicidade, ainda que não tão exigente quanto a tipicidade penal (CF, arts. 5º, II e XXXIX, e 37, caput); o da culpabilidade e da pessoalidade da pena (CF, art. 5º, XLV); o da individualização da sanção (CF, art. 5º, XLVI); e o da razoabilidade e proporcionalidade da pena (CF, arts. 1º e 5º, LIV), assim como o da retroação da lei sancionadora mais benéfica (CF, art. 5º, XL).

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1 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo - 2.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 22.

2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial - 16. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro : Forense, 2014. p. 91.

3 GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 124

4 MAIA FILHO. Napeleão Nunes. MAIA. Mário Henrique Goulart. O poder administrativo sancionador: origem e controle jurídico. Ribeirão Preto: Migalhas, 2012.p. 80.

5 MELLO. Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Malheiros, p. 43.

6 MEDINA. Manuel Restrepo. El Derecho Administrativo Sancionatório em Colombia. In: Hernández-Mendible. (Coord.) Derecho Administrativo Sancionatório. Caracas, CIDEP, p. 354.

7 "Por todo ello, los tribunales no consideran sanciones administrativas, entre otros ejemplos, las siguientes medidas administrativas: las que ordenan devolver subvenciones cuando el beneficiario no ha realizado la actividad prevista; la demolición de edificios construidos contra las normas de urbanismo o las de protección del medio ambiente; la orden de cierre de establecimientos que no cumplen la normativa o no tienen la autorización administrativa necesaria; la retirada de productos del mercado por resultar peligrosos o insalubres; las multas coercitivas; la compensación que los particulares hayan de pagar a la administración por los daños causados a sus bienes; los intereses de mora; etc."REBOLLO PUIG, Manuel et al. Panorama del derecho administrativo sancionador en España Los derechos y las garantías de los ciudadanos. Estudios Socio-Jurídicos, v. 7, n. 1, p. 23-74, 2005.

8 A expressão supraconceito é utilizada por Alejandro Nieto ao referir decisão a STS de 9 de fevereiro de 1972 em que se desenvolveu "las contravenciones tipificadas [em um reglamento administrativo] se integran em el supraconceito del ilícito, cuya unidad substancial es compatible com la existencia de diversas manifestaciones entre las cuales se encuentra tanto el ilícito administrativo como el penal..." GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 124

9 "El derecho Administrativo Sancionador no debe ser construído com los materiales y com las técnicas del Derecho Penal sino desde el proprio Derecho Administrativo, del que obviamente forma parte, y desde la matriz constitucional y del Derecho Público estatal.  GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 30

10 MELLO. Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Malheiros, p. 44.

11 GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 132.

12 "Cuando se declara que las mismas garantias abservables em la aplicación de las penas se han de respetar cuando se trata de imponer una sanción administrativa, no se hace em realidad referencia a todos y cada uno de los principios o reglas reunidos em la Parte General del Derecho Penal, sino a aquellos a los que el Derecho Penal debe someterse pra satisfazer los postulados del Estado de Derecho, que son principios derivados de los declarados em la Constitución como fundamentales." GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 133.

13 GONÇALVES, Benedito; GRILO, Renato Cesar Guedes. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR NO REGIME DEMOCRÁTICO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 467-478, 2021.

Marcos Augusto Brandalise

VIP Marcos Augusto Brandalise

Promotor de Justiça no Estado de Santa Catarina. Ex-promotor de Justiça do Estado do Ceará. Professor de direito penal. Titular da 4ª promotoria regional da moralidade administrativa em Xanxerê - SC.

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