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Seguro garantia com "claúsula de retomada" e os efeitos positivos da iniciativa inédita entre o Estado de MT e o mercado segurador

A lei 14.133/2021, em vigor desde 30/12/23, introduziu a "cláusula de retomada" nas licitações públicas, permitindo que seguradoras concluam obras paralisadas, inspirado no modelo americano.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Atualizado às 11:33

Como é de notório conhecimento, em 1/4/21, foi publicada a lei 14.133/21, usualmente denominada "nova lei de licitações", cuja aplicabilidade em caráter obrigatório só veio a ocorrer em 30/12/23, após um período de mais de 2 anos em que os entes públicos tiveram a opção de lançar processos licitatórios com as novas regras, ou seguir utilizando as regras anteriores previstas na lei 8.666/93.

Ao longo do capítulo II, da "nova lei de licitações", foi determinada a possibilidade do edital, nas contratações de obras e serviços de engenharia, exigir a prestação de garantia na modalidade "seguro-garantia" e, em caso de inadimplemento por parte do contratado, prever a conclusão do objeto do contrato por parte da seguradora, mediante a utilização da "cláusula de retomada" (também conhecida mundialmente como step-in clause).

Inspirada no modelo norte americano de performance bond, a intenção da "nova lei de licitações" foi finalmente colocar em prática algo já previsto há muito tempo pela Susep (Superintendência de Seguros Privados), mas ainda limitado às contratações privadas no país, das quais praticamente não se ouviam relatos, já que a lei 8.666/93 não continha dispositivo capaz de permitir ao segurador que substituísse o tomador/contratado, em caso de não conclusão da obra, fazendo-se necessária uma nova licitação para sua finalização.

A bem da verdade,  quis o legislador, por meio da introdução da "cláusula de retomada" na "nova lei de licitações", contribuir, de alguma forma, para a diminuição do excessivo número de obras paralisadas no Brasil, cujo número, por exemplo, em outubro/23, apontava para cerca de 8.6 mil, considerandose apenas aquelas financiadas com recursos federais.1

Em harmonia com o parágrafo anterior, é que a "nova lei de licitações" determinou que para obras e serviços de engenharia de "grande vulto", o Estado poderia exigir seguro garantia de "até" 30% do valor inicial do contrato, com "cláusula de retomada" da obra. Além disso, fixou inicialmente como de "grande vulto" aquelas contratações superiores a R$ 200.000.000,00 que, em decorrência dos reajustes anuais, já representa o valor de R$ 239.624.058,14.2 

Foi assim que, em caráter precursor, o Governo do Estado de Mato Grosso, em meados de junho/23, resolveu inovar, de modo a ajustar as licitações à sua realidade local,  assim estabelecendo como contratações de "grande vulto" aquelas superiores a R$ 50 milhões.3 Ao corrigir distorções de um valor estimado para o contexto da União, o pioneirismo Mato-Grossense buscou ampliar e otimizar o uso do seguro garantia pelo setor público, o que, por consequência, poderia mitigar o risco de obras públicas inacabadas no Estado. 

Na sequência, após quase um ano de discussões de procuradores e técnicos do governo estadual com representantes da FenSeg - Federação Nacional de Seguros Gerais e da Cnseg - Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização, o Governo do Estado de Mato Grosso lançou a primeira licitação de obra pública do Brasil,4 contendo, em seu "anexo I do termo de referência", as condições contratuais do seguro garantia com previsão de "cláusula de retomada", no percentual de 30% do valor contratual,5 cujo valor inicialmente estimado foi de R$ 115.847.981,67.6

A relevância da iniciativa inédita é, portanto, indiscutível, mesmo porque a Susep "ainda" estuda a regulamentação da "cláusula de retomada",7 já que a Circular Susep 662/22, em seu art. 21,8 norma que dispõe sobre o produto, limitou-se a mencionar a possibilidade de inclusão da "cláusula de retomada" como uma das formas de indenização.

Dentro de um cenário de incerteza e indefinição regulatória sobre a "cláusula de retomada" e as diversas implicações de sua utilização que ainda causam dúvidas aos segurados públicos (e, também, aos privados que certamente se beneficiárão do amadurecimento do step-in no país),9 aos tomadores, aos corretores, às seguradoras, às resseguradoras, e, certamente, à Susep, não restou outra alternativa, senão ao mercado, em conjunto com o Estado de Mato Grosso, estabelecer diretrizes interessantes, as quais, indubitavelmente, servirão como "fontes de inestimável valor" para os editais que se multiplicarão, assim esperamos, país afora. 

Destaca-se, também, o fato da administração pública ter se preocupado em adotar o patamar máximo admitido por lei, para os casos de obras e serviços de engenharia de "grande vulto", mesmo porque a experiência internacional já demonstrou que percentuais abaixo de 30% não oferecem condições para a retomada e conclusão integral da maioria das obras.

Ajustes se farão necessários no decorrer do desenvolvimento do step in no país, mas se fez valer a ideia de que dificilmente a "cláusula de retomada" atingiria a finalidade de mitigação dos riscos de paralisaçao das obras publicas, se o seu conteúdo fosse redigido exclusivamente pela administração pública, sem a participação do mercado securitário. 

Sem prejuízo do constante aprimoramento do clausulado elaborado para o certame mato-grossense, à medida que surjam elementos que justifiquem as necessárias adaptações ao trabalho embrionário, tudo leva a crer que o modelo apresentado já pode ser considerado um marco histórico às contratações públicas (e privadas) dentro do país. 

Dentro de uma expectativa de crescimento de aproximadamente 25% no segmento tradicional de seguro garantia (performance bond), a ser impulsionado pelos vultosos investimentos previstos no novo PAC - Programa de Aceleração do Crescimento, espera-se, inclusive, que o clausulado desenvolvido possa servir de inspiração para que os demais estados e municípios brasileiros sigam o caminho trilhado, redimensionando, em um primeiro momento, o conceito de "grande vulto" e, na sequência, tornando efetiva a utilização da "cláusula de retomada". Notícias, inclusive, dão conta de que CNSeg e FenSeg já discutem com outros estados e municípios, além do governo federal, a adoção do clausulado apresentado em futuros certames. 

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1  Dados do portal do TCU-último relatório: 18/10/2023.

2 Artigo 1º (anexo), do Decreto nº 11.871, de 29 de dezembro de 2023.

3 Artigo 1º, da Lei Estadual nº 12.148, de 15 de junho de 2023.

4 Concorrência Pública nº 14/2024 da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (SINFRA), que tem por objeto a contratação de empresa de engenharia para execução da obra de implantação e pavimentação de cerca de 50km da rodovia MT-430, entre as cidades de Confresa e Vila Rica. Disponível em: https://www.sinfra.mt.gov.br/-/22446975-100.

5 Assim prevê o item 18.1 do edital: "Como garantia da execução plena do objeto e fiel cumprimento dos termos do Contrato, será exigida a garantia da contratação na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada, de que trata o art.102 da Lei nº 14.133/2021, no percentual de 30% do valor contratual, conforme as regras previstas na minuta clausulada constante do Anexo I do termo de referência".

6 Sabe-se que o edital foi inicialmente suspenso para saneamento de questionamentos técnicos e posteriormente reaberto, tendo sido, em 08.07.2024, homologado e adjudicado com valor de R$ 88.099.989,81. Todavia, em 09.08.2024, foi publicado o aviso de retormada de licitação à fase de habilitação, para convocação da próxima empresa classificada na fase de lances, uma vez que a empresa originalmente vencedora teve declarado o decaimento do seu direito à contratação. Em 23.08.2024, houve nova homologação e adjudicação com valor de R$ 95.111.192,95. Afirma-se no mercado que o "motivo para decaimento do direito à contratação do vencedor original", estaria relacionado a não apresentação da apólice de seguro garantia exigida pelo ente público, o que, no entanto, foi suprido pelo segundo colocado no certame. Segundo amplamente divulgado, o primeiro contrato de obra pública com seguro de garantia contendo a previsão de "cláusula de retomada" foi assinado no dia 02 de setembro.

7 Em 2022 o Governo, por intermédio do então Ministério da Economia, lançou um grupo de trabalho para discutir medidas de incentivo ao mercado de seguros do país. A IMS (Iniciativa de Mercado de Seguros) nº 6 teve como finalidade propor mudanças na "Nova Lei de Licitações" para regulamentar e viabilizar a "cláusula de retomada". Com a mudança de governo, o Ministério da Fazenda lançou sua agenda de reformas financeiras para o biênio 2023/2024, reafirmando o compromisso de tratar do tema, razão pela qual a SUSEP, em setembro do ano passado, aproveitando-se do lançamento do Novo programa de Aceleração do Crescimento, criou diversos grupos de trabalho com participantes do mercado visando à construção de alternativas capazes de impulsionar o seguro como mecanismo de desenvolvimento econômico nacional. No entanto,o subgrupo que tratou da oportunidade de melhoria regulatória da "cláusula de retomada" de obras no seguro garantia sugeriu, ao final, que fossem concentrados os esforços no IMS 06, ora conduzido pelo Ministério da Fazenda. Finalmente, no último mês de julho, a SUSEP, por meio da Resolução nº 43/2024, atualizou seu Plano de Regulação para os anos de 2023 e 2024, comprometendo-se, no 2º semestre de 2024, a apresentar "novos desenhos de seguro garantia, especialmente com foco no instituto da retomada" (subitem 1.5.1).

8 Art. 21. A seguradora indenizará o segurado ou o beneficiário, até o valor da garantia, mediante: I - pagamento em dinheiro dos prejuízos, multas e/ou demais valores devidos pelo tomador e garantidos pela apólice em decorrência da inadimplência da obrigação garantida; ou

II - execução da obrigação garantida, de forma a dar continuidade e concluí-la sob a sua integral responsabilidade, nos mesmos termos e condições estabelecidos no objeto principal ou conforme acordado entre segurado e seguradora.

9 Em julho a Concessionária Nova Rota do Oeste abriu a Concorrência Privada nº 2599/2024 para a contratação de empresa para realização de obras no trecho sob sua concessão, exigindo dos interessados a apresentação de seguro garantia, com "cláusula de retomada", em valor correspondente a 30% do valor total do contrato, cujo clausulado é quase idêntico ao elaborado para a Concorrência Pública nº 14/2024 SINFRA/MT, havendo apenas algumas denominações distintas em razão do caráter privado da contratação.

Walter Melhem Fares Junior

VIP Walter Melhem Fares Junior

Advogado Especializado em Direito Securitário e Responsabilidade Civil. Líder do Departamento de Sinistros da Liberty Mutual Surety - BRASIL.

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