A paralisia dos princípios: Falta de concretude e limitação de abrangência na análise de impacto regulatório
O sistema jurídico brasileiro tem princípios abstratos e pouca aplicação prática. A AIR - Análise de Impacto Regulatório, introduzida pela lei 13.874/19, visa melhorar a regulamentação, mas enfrenta desafios por falta de regulamentação específica e baixa adoção.
terça-feira, 3 de setembro de 2024
Atualizado em 2 de setembro de 2024 13:35
O ordenamento jurídico brasileiro, principalmente o dado a disciplinar as políticas públicas e o próprio método de produção normativa, padece de excesso de abstração. Um sem número de princípios permeia o que se proporia à regulamentação, em uma retórica bonita, semelhante ao discurso do que se tem por idealizado. Não que seja problema termos princípios normatizados, pelo contrário. Torna-se um problema, contudo, quando os princípios deixam de ser aplicados por carência de concretude. Na falta de uma regulamentação que apresente regras práticas que os efetive, encontra-se um looping principiológico voltado a reafirmar o propósito sem, contudo, permitir que seja, de fato, implementado. Uma forma de - aparentar - manter vivo o dever sem que se possa cobrá-lo.
É bem verdade que o direito - tal como ferramenta de uso político - é assaz dogmático. Não deve, entretanto, limitar-se à retórica vazia, especialmente no campo da regulamentação dos serviços públicos e do ambiente de negócios, que impactam diretamente na vida da população - seja para o bem, seja para o mal.
O dever de realização da AIR - Análise de Impacto Regulatório, estabelecido pela lei de liberdade econômica (lei 13.874/19), surgiu como um avanço na tentativa de racionalizar e qualificar a produção normativa no Brasil, impondo que propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, sejam precedidas de estudos que avaliem seus possíveis efeitos econômicos e sociais. No entanto, apesar da importância dessa ferramenta, sua implementação tem enfrentado desafios práticos, especialmente pela ausência de uma regulamentação específica que efetivamente torne concretos os princípios e diretrizes nela previstos e que comprometa todos os órgãos e entidades da Administração Pública, e não somente aqueles que possuem competência regulatória stricto sensu.
O decreto 10.411, de 20/6/20, foi editado com o intuito de preencher essa lacuna, regulamentando o método de realização da AIR e detalhando procedimentos para sua aplicação. Todavia, sua aplicabilidade e eficácia têm sido limitadas. Primeiro, porque excecionou expressamente a sua incidência sobre propostas de edição de decreto ou atos normativos submetidos ao Congresso Nacional. Segundo, porque, mesmo no âmbito de aplicabilidade, não se tem revelado eficaz. Prova disso é que já se passaram quatro anos e, até hoje, poucas agências reguladoras realmente adotaram o método em suas agendas regulatórias. Mesmo as que adotaram, como a ANVISA e a ANEEL, ainda apresentam um número reduzido de AIRs efetivamente realizadas e incorporadas em seus processos decisórios. Na prática, muitas propostas regulatórias continuam sendo implementadas sem a devida análise prévia e transparente dos impactos.
Nesse sentido, o decreto 12.150, publicado no último dia 21/8, instituiu a Estratégia Nacional de Melhoria Regulatória - "Estratégia Regula Melhor", no âmbito do Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação - PRO-REG, revelando-se mais uma tentativa de aprimorar a governança regulatória. O decreto reafirma princípios como a eficiência, a transparência e a proporcionalidade, mas falha em proporcionar regulamentação específica e operativa. Assim, esses princípios permanecem abstratos, sem fornecer diretrizes claras ou instrumentos para sua efetiva implementação. Reforça, ademais, os mesmos destinatários, excluindo do seu espectro outros membros da Administração que exercem atividade normativa com potenciais impactos sociais e econômicos, mas não regulatória.
Embora a lei de liberdade econômica não haja limitado tal dever à seara regulatória, os decretos posteriores - decreto 12.002/24 e, agora, o decreto 12.150/24 - assim o fizeram, deixando de fora da disciplina os processos normativos que não envolvem decisões regulatórias. A exclusão dessas normas da obrigatoriedade da AIR acaba por enfraquecer a capacidade de planejamento e previsibilidade do Estado, permitindo que decisões normativas sejam tomadas sem a necessária consideração dos seus potenciais efeitos econômicos, sociais e jurídicos.
Na prática, o avanço proposto não tem atingido a sua finalidade precípua, seja pela limitação do campo de incidência, seja pela ausência de concretude que impede a sua efetividade e implementação. Esse looping dogmático, exemplo de contrariedade ao que lecionavam juristas como Robert Alexy - que defendia que princípios são mandamentos de otimização, os quais dependem de ponderação e concretização para a produção de efeitos jurídicos reais - impede que se alcance o grau necessário de operatividade para orientar a produção normativa, mesmo pelos órgãos e entidades que exercem atividade regulatória.
O problema da ausência de regulamentação específica não se limita à falta de uma operacionalização capaz de melhorar o status quo, mas, em certa medida, corrobora para situações de abuso regulatório. Isso porque o abuso não se configura apenas quando há excesso de regulação, mas também quando a falta de clareza das normas abre espaço para a discricionariedade exacerbada e a insegurança jurídica. É com isso que estamos lidando e é esse risco que precisamos - urgentemente - mitigar.
Maria de Lourdes Luizelli
Advogada e sócia do Andrade Maia Advogados.