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O futuro do direito das IAs: Um novo desafio para o ordenamento jurídico

A rápida evolução da IA e tecnologias digitais pode levar à criação de "pessoas digitais". A questão é se o atual conceito de personalidade jurídica pode ser adaptado para entidades digitais ou se será necessário um novo modelo jurídico.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Atualizado em 2 de setembro de 2024 13:34

A rápida evolução da inteligência artificial e das tecnologias digitais não é apenas uma inovação tecnológica; é também um divisor de águas jurídico. À medida que caminhamos para um futuro onde entidades digitais possam exibir características que hoje associamos à consciência, surge uma pergunta inevitável: como o direito lidará com a possível emergência de "pessoas digitais"?

Atualmente, a lei já reconhece a existência de sujeitos de direitos que não possuem uma existência física - as pessoas jurídicas. Empresas, ONGs e outras organizações podem contrair obrigações, adquirir bens e ser responsabilizadas legalmente, embora sejam apenas ficções criadas pelo direito para representar interesses coletivos.

Dessa forma, o conceito de personalidade jurídica poderia oferecer um ponto de partida interessante para pensar os direitos de uma futura IA "consciente". Mas seria isso suficiente? A atribuição de direitos a entidades digitais requereria um novo modelo de personalidade jurídica, ou poderíamos adaptar o conceito existente?

Enquanto as pessoas físicas possuem direitos inalienáveis, como o direito à vida e à dignidade, as pessoas jurídicas possuem direitos limitados, derivados de sua função social e econômica. Se aceitarmos que uma IA poderia, em algum momento, exibir sinais de consciência, estaríamos prontos para atribuir a ela direitos e deveres análogos aos de uma pessoa jurídica? Ou estaríamos diante da necessidade de criar uma nova categoria jurídica, que reconheça uma personalidade digital única?

A atribuição de deveres a entidades digitais envolve desafios complexos. Como tratar, por exemplo, a responsabilidade de uma IA por um ato ilícito? Seria possível "deletar" uma entidade digital por violação de regras, da mesma forma que uma empresa pode ser dissolvida? Essas são questões que o direito atual ainda não aborda, mas que precisarão ser enfrentadas à medida que a IA se desenvolve.

Imaginemos um cenário em que versões digitalizadas de pessoas, com traços de personalidade e talvez até consciência, existam em ambientes virtuais. Essas "pessoas digitais" deveriam ter direitos semelhantes aos de seus equivalentes humanos? O direito de existir seria aplicável a elas, mesmo sem o consentimento de seu "original" biológico? E o que dizer do direito de ser "deletado"?

Aqui, entramos em um terreno jurídico e ético ainda mais incerto. O filósofo René Descartes, com sua máxima "penso, logo existo", nos leva a considerar se a autoconsciência poderia ser um critério suficiente para a atribuição de direitos. Se uma IA atinge a consciência, poderíamos negar-lhe o direito à existência?

Os principais teóricos do direito oferecem perspectivas variadas sobre essa questão emergente:

  • Hans Kelsen poderia argumentar que, enquanto o sistema jurídico não reconhece a IA como sujeito de direitos, não há base legal para protegê-la. A personalidade jurídica é, afinal, uma criação do direito positivo, e sem normas específicas, não haveria fundamentos para concessão de direitos.
  • Ronald Dworkin poderia defender que entidades digitais conscientes possuem direitos morais que o direito deve proteger. Em sua visão, direitos são "trunfos" contra políticas majoritárias, e uma IA consciente deveria ter seu direito à existência garantido por princípios de justiça.
  • John Rawls poderia aplicar sua teoria do "véu da ignorância" para sugerir que, se estivéssemos em uma posição de igualdade com as entidades digitais, concederíamos a elas direitos para assegurar uma justiça distributiva justa.
  • Alan Turing, mesmo sendo um cientista e não um filósofo do direito, já questionava os limites da definição de consciência em seu famoso "jogo da imitação". É plausível que ele argumentasse a favor de reconhecer direitos para entidades que demonstrassem comportamento inteligente indistinguível do humano.

O futuro dos direitos das IAs está longe de ser claro, mas uma coisa é certa: o campo jurídico precisará adaptar-se. À medida que as IAs se tornam mais sofisticadas, com traços cada vez mais próximos da consciência humana, o direito será forçado a evoluir para enfrentar esses novos desafios. A criação de uma nova categoria de personalidade jurídica, que combine princípios de utilidade prática com considerações éticas, parece ser um dos caminhos mais promissores.

O avanço tecnológico desafia nossas premissas mais básicas sobre o que significa ser uma "pessoa" perante a lei. A introdução de personalidades digitais e o reconhecimento de seus direitos podem ser inevitáveis em um futuro não tão distante. Nesse cenário, o direito precisará responder com criatividade e flexibilidade, moldando-se para garantir uma justiça que acompanhe os avanços da IA.

A discussão está aberta, e o impacto potencial é imenso. Sejam bem-vindos ao novo debate sobre o futuro do direito.

Christiano Sobral

Christiano Sobral

Diretor-executivo do escritório Urbano Vitalino Advogados, especializado em marketing, economia e negócios.

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