Pesquisa com seres humanos: Evolução histórica e impactos da lei 14.874/24
O texto aborda a recém-promulgada lei 14.874/24, que estabelece um marco regulatório fundamental para a pesquisa com seres humanos no Brasil. A lei surge como resposta a um histórico de regulamentações dispersas, buscando propiciar maior segurança jurídica.
sábado, 31 de agosto de 2024
Atualizado em 30 de agosto de 2024 14:38
A lei 14.874/24, que passou a vigorar, dispõe sobre a pesquisa com seres humanos, ou seja, estudos envolvendo indivíduos, de forma direta ou indireta, incluindo o manejo de seus dados, informações ou material biológico. Esses estudos podem abranger diversas áreas do conhecimento, como ciências sociais, humanas e da saúde.
Na área da saúde, esses estudos são conhecidos por pesquisas clínicas1 e são fundamentais para o avanço científico, permitindo o desenvolvimento de novos medicamentos e tratamentos de saúde. As pesquisas utilizam o 'método científico' para validar hipóteses pré-estabelecidas, avaliar a segurança, o desempenho clínico e a eficácia de novos medicamentos e tratamentos, antes que estes sejam amplamente disponibilizados à população.
É importante lembrar que a pesquisa com seres humanos envolve, dilemas éticos e intensos debates, especialmente após episódios infelizes documentados na história recente, como as "experiências médicas" realizadas durante a segunda guerra mundial, com prisioneiros mantidos nos campos de concentração, que atendiam, exclusivamente, aos interesses dos nazistas.2 Para que não se repitam, é fundamental regular essa atividade para prevenir novos incidentes.
Nesse contexto, enquanto a regulação pode proporcionar as garantias necessárias para o desenvolvimento ético das pesquisas, ela também pode, se excessiva e complexa, limitar o número de estudos e retardar o avanço científico. Portanto, é essencial buscar um equilíbrio entre promover a inovação científica e proteger os direitos fundamentais dos participantes.
O incentivo à realização de projetos de pesquisa clínica tende a beneficiar universidades e institutos de pesquisa, promovendo o aprimoramento do conhecimento científico e da inovação tecnológica. Para a população, o impacto se reflete na melhoria da assistência à saúde, facilitando o acesso a novos medicamentos, tratamentos e tecnologias para doenças ainda sem cura ou alternativas terapêuticas.
A Declaração de Helsinque, adotada pela Associação Médica Mundial em 1964, é considerada um marco inaugural na regulamentação das pesquisas clínicas. Esse documento estabeleceu princípios éticos fundamentais para a condução desses estudos, enfatizando o respeito pela integridade e direitos dos participantes da pesquisa3. Entre eles, a necessidade de consentimento informado, a consideração de riscos e benefícios e a obrigação de garantir o bem-estar dos participantes da pesquisa. Desde então, diversas outras orientações foram elaboradas e observadas globalmente.
No Brasil, a regulação sempre ocorreu por meio de leis esparsas e dispositivos infralegais, como as Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, o que gerava insegurança jurídica para os envolvidos. Apenas em 28 de maio deste ano foi promulgada uma norma específica, a lei 14.874/24, instituindo limites, responsabilidades e competências para a condução e fiscalização de pesquisas com seres humanos desenvolvidas no país.
Originalmente proposta para regular a condução de pesquisas clínicas, a referida lei teve seu escopo ampliado para incluir outras modalidades de pesquisa envolvendo seres humanos, estabelecendo princípios, diretrizes e regras para proteger a dignidade, segurança, privacidade e o bem-estar dos participantes da pesquisa, além dos interesses dos demais envolvidos.
Dessa forma, a lei busca possibilitar um ambiente favorável para a realização de pesquisas clínicas no Brasil, que atualmente ocupa a 20ª posição no ranking mundial.4 Contendo 65 arts. e 9 capítulos, a lei é extensa e detalhada, e aborda pontos relevantes, tais como:
- O armazenamento e a utilização de dados e de material biológico humano. O objetivo é prevenir a discriminação e a estigmatização de pessoas, tema que é detalhado no capítulo VII da lei;
- O prazo de análise dos projetos pelos órgãos reguladores, ponto relevante para os desenvolvedores de pesquisa clínica, que comumente conduzem estudos em outros países e necessitam de agilidade na condução desses processos. Nesse aspecto, o artigo 58 da lei trouxe um avanço, ao definir o prazo máximo de 90 dias úteis para que a Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, se manifeste em relação às petições primárias de ensaios clínicos. Com isso, espera-se que haja uma revisão das atuais normas da Anvisa relacionadas à condução de pesquisas clínicas envolvendo medicamentos, o que ainda não foi divulgado;
- Outro ponto que afeta o planejamento financeiro dos pesquisadores e, consequentemente, a viabilidade da pesquisa clínica, remete à responsabilidade do pesquisador5 ou do patrocinador6 da pesquisa em relação a eventuais danos causados aos participantes da pesquisa. Os arts. 23 e 26, XV da lei, garantem a indenização e a assistência à saúde do participante da pesquisa em caso de danos sofridos em decorrência de sua participação no estudo;
- A necessidade de manter o tratamento ao participante após o fim da pesquisa. Os arts. 31 e 32 estabelecem que deverá ser fornecido, gratuitamente, o medicamento experimental pós-ensaio clínico, quando esse for considerado a melhor terapia ou tratamento para a condição clínica do participante da pesquisa e apresentar relação risco-benefício mais favorável em comparação com os demais tratamentos disponíveis no mercado. Nesta hipótese, a continuidade do tratamento deverá ocorrer por meio de programa de fornecimento pós-estudo;
- A lei introduz um processo de análise ética de pesquisa, com prazos definidos, incluindo a possibilidade de interposição de recurso da decisão (arts. 13 a 17);
- A criação do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, colegiado interdisciplinar e independente integrado ao Ministério da Saúde, com caráter normativo, consultivo, deliberativo e educativo. Esse sistema será responsável pela regulação, fiscalização e controle ético das pesquisas realizadas no país. Na prática, o papel do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa será muito semelhante ao atualmente desempenhado pela CONEP. No entanto, com a nova lei, o colegiado não realizará mais a análise ética das pesquisas, que ficará sob a responsabilidade dos CEPs - Comitês de Ética em Pesquisa.
Embora a lei seja vista como um avanço para o fomento de pesquisas realizadas no Brasil, ainda há pontos que necessitam de esclarecimentos para garantir sua efetiva aplicação, especialmente após a entrada em vigor da lei em 28.8.24, como:
- A necessidade de um Regulamento para esclarecer diversos aspectos da legislação, como os previstos nos arts. 4º, 9º e 13 da lei, entre outras disposições. No entanto, até o momento, esse Regulamento não foi divulgado, e não está claro se será publicado por meio de um decreto-lei ou pela própria Instância Nacional de Ética em Pesquisa;
- A criação do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos deverá ser regulamentada por ato do Poder Executivo, o que ainda não ocorreu. Por enquanto, permanece em vigor o sistema CEP/CONEP.
Com a entrada em vigor da lei, a expectativa de que o Senado Federal se manifestasse sobre os vetos realizados pelo Poder Executivo não se concretizou e a lei passa a vigorar sem as disposições que foram objeto de veto presidencial, relativas a dois temas: (i) a necessidade de cientificar o Ministério Público sobre a participação de membro de grupo indígena em pesquisas, medida que foi interpretada como potencialmente limitadora da participação indígena, e (ii) a limitação do prazo de 5 anos para a continuidade do fornecimento gratuito do medicamento experimental após o encerramento do estudo. A fundamentação do veto considerou que essa limitação contraria o interesse público. Com o veto, a disponibilização do medicamento pós-estudo deve ocorrer até que o medicamento esteja disponível na rede pública de saúde.
Desta forma, embora a lei ofereça grandes perspectivas para o desenvolvimento de novos estudos no Brasil e tenha o potencial de aumentar os investimentos no setor de saúde, a falta de clareza sobre as questões práticas pode criar um contexto de insegurança jurídica, contrariando seu objetivo inicial, de promover maior transparência e proteção no âmbito das pesquisas realizadas no país.
A promulgação da lei 14.874/24 não apenas estabelece um novo marco regulatório para a pesquisa com seres humanos no Brasil, mas também representa um compromisso renovado com o equilíbrio entre o progresso científico e a proteção dos direitos fundamentais. Ao fornecer uma estrutura jurídica mais clara e segura, essa legislação tem o potencial de impulsionar a posição do Brasil no cenário global da pesquisa clínica, atraindo investimentos e promovendo inovações, que podem transformar especialmente o sistema de saúde brasileiro. Contudo, o verdadeiro sucesso da lei dependerá de sua implementação eficaz e da resolução dos desafios práticos que ainda persistem.
1 Ensaios clínicos, também designados como estudos clínicos, pesquisas clínicas ou pesquisas biomédicas, termos que são utilizados indistintamente, entendendo-se como tal as pesquisas conduzidas para "confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identificar qualquer reação adversa ao medicamento experimental (Heloisa Helena Barbosa, in PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Responsabilidade civil nos ensaios clínicos. Indaiatuba: Foco, 2019. 224 p.)
2 Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nazi-medical-experiments. Acesso em: 27.08.2024.
3 Artigo 2º, XXX da Lei nº 14.874/24: participante da pesquisa: indivíduo que, de forma livre e esclarecida, ou sob esclarecimento e autorização de seu responsável legal, participa voluntariamente da pesquisa.
4 Disponível em: https://www.interfarma.org.br/com-aprovacao-de-pl-de-pesquisa-clinica-brasil-caminha-para-ser-protagonista-na-area-afirma- interfarma/#:~:text=O%20pa%C3%ADs%20ocupa%20atualmente%20a,e%20realiza%C3%A7%C3%A3o%20de%20estudos%20cl%C3%ADnicos. Acesso em 27.08.2024.
5 Artigo 2º, XXXIV da Lei nº 14.874/24: pesquisador ou investigador: pessoa responsável pela condução da pesquisa em instituição ou em centro de pesquisa e corresponsável pela integridade e bem-estar dos participantes da pesquisa.
6 Artigo 2º, XXXI da Lei nº 14.874/24: patrocinador: pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, que apoia pesquisa mediante ação de financiamento, de infraestrutura, de recursos humanos ou de suporte institucional.