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O suicídio e o contrato de seguro de vida

Devido o aumento de suicídios, as seguradoras podem se preocupar com o que deve ser feito quando o segurado cometer suicídio, sendo assim, o presente artigo visa esclarecer a possibilidade de pagamento do capital referente ao seguro concernente a suicídio.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Atualizado às 11:22

O contrato de seguro permite que o segurador se obrigue a garantir ao assegurado indenização devido eventuais riscos concernentes a este ou a uma coisa, contanto que ocorra o sinistro. O referido contrato é típico, sendo disciplinado nos arts. 789/802 do CC/02. O sinistro é a ocorrência de eventos cobertos pelo seguro contratado especificados na apólice - documento emitido pela seguradora a respeito do seguro.

O suicídio é o ato de se matar. Para Durkheim, o suicídio é "todo o caso de morte que resulta, direta ou indiretamente, de um ato, positivo ou negativo, executado pela própria vítima, e que ela sabia que deveria produzir esse resultado"1. A respeito do suicídio quando existir seguro de vida, o CC/02 ensina que:

Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.

Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado.

No presente artigo, visa-se compreender a possibilidade de pagamento do capital referente ao seguro nos casos de suicídio.

O suicídio é um problema de saúde pública para a sociedade, visto que, a OMS - Organização Mundial de Saúde estima que no mundo mais de 700 mil pessoas morrem por suicídio anualmente. Um estudo descritivo baseado nos dados de óbitos por suicídio entre 2010 a 2019, além de notificações de violências autoprovocadas, demonstrou que ocorreram no Brasil 112.230 mortes por suicídio, ou seja, um aumento de 43% no número anual de mortes2. Vejamos uma tabela feita pelo SIM - Sistema de Informações sobre Mortalidade a respeito da evolução das taxas de mortalidade por suicídio.

A adolescência e o início da fase adulta são os principais momentos de comportamentos suicidas, sendo possível que estes comportamentos sejam influenciados pela depressão e também pela ansiedade. Vejamos o que a OMS fala a respeito do assunto:

"Si bien el vínculo entre el suicidio y los trastornos mentales (en particular, la depresión y el consumo de alcohol) está bien documentado en los países de altos ingresos, muchos casos se dan en personas que lo cometen impulsivamente en situaciones de crisis en las que su capacidad para afrontar las tensiones de la vida, como los problemas económicos, las rupturas de relaciones o los dolores y enfermedades crónicos, está mermada.

Además, se ha demostrado suficientemente que vivir conflictos, catástrofes, actos violentos, abusos, pérdida de seres queridos y sensación de aislamiento puede generar conductas suicidas. Las tasas de suicidio también son elevadas entre los grupos vulnerables y discriminados, como los refugiados y migrantes; los pueblos indígenas; las personas lesbianas, homosexuales, bisexuales, transexuales e intersexuales; y los reclusos. El principal factor de riesgo es, con diferencia, un intento previo de suicidio"3.

A respeito do contrato de seguro, trata-se de contrato sinalagmático, oneroso, aleatório, formal, de execução continuada e de adesão. Sobre a questão aleatória do contrato, o ganho do capital pelo assegurado exige a ocorrência de sinistro, apesar dele pagar determinado valor (prêmio) ao segurador, visto que, o referido contrato possui condição futura e incerta. O beneficiário é o terceiro que receberá o capital concernente ao contrato de seguro quando ocorrer a morte do segurado.

O art. 798 do CC/02 disciplina que o beneficiário não receberá o capital se o segurado cometer suicídio nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato. Vejamos uma súmula do STJ sobre o assunto:

Súmula 610-STJ: O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada.

STJ. 2ª Seção. Aprovada em 25/4/18, DJe 7/5/18.

No REsp 1.334.005-GO, em que o relator originário foi o ministro Paulo de Tarso Sanseverino e o relator para o acórdão foi a ministra Maria Isabel Gallotti, que foi julgado em 8/4/15 (DJe 23/6/15.), decidiu-se que:

"Se o segurado se suicidar dentro dos dois primeiros anos de vigência de contrato de seguro de vida, o segurador, a despeito de não ter que pagar o valor correspondente à indenização, será obrigado a devolver ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada, mesmo diante da prova mais cabal de premeditação do suicídio.

Realmente, conforme a redação do art. 798, caput, do CC/02, o "beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato [...], observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente". Por sua vez, o parágrafo único do art. 797 do CC/02 estabelece que, se o segurado se suicidar dentro do prazo de carência do seguro, o beneficiário - conquanto não tenha direito ao capital estipulado (art. 798, caput) - terá direito ao ressarcimento do "montante da reserva técnica já formada". Ao contrário do CC/1916, não há, no CC/02, previsão acerca do caráter premeditado ou não do suicídio, visto que a intenção do novo Código é precisamente evitar a dificílima prova da premeditação e da sanidade mental e capacidade de autodeterminação no momento do suicídio"4. (grifos meus).

Por existirem muitos casos de suicídio, as seguradoras seriam prejudicadas nos dois primeiros anos de vigência do referido contrato. Apesar disso, é necessário saber que é irrelevante a premeditação do suicídio, ou seja, o critério escolhido é o objetivo temporal.

A súmula citada também trata da reserva técnica formada, que é a quantia já paga pelo segurado como prêmio para a seguradora. É um ótimo ponto da Súmula 610 do STJ, pois permite um equilíbrio no seguro de vida. As súmulas 105 do STF e 61 do STJ não podem ser aplicadas pois foram aprovadas na vigência do CC/1916 e são contrárias ao atual ordenamento jurídico.

No suicídio premeditado, o segurado realiza o seguro de vida pensando na hipótese de cometer suicídio para que terceiro (beneficiário) receba a indenização. Neste caso, existe má-fé. No suicídio não premeditado, o segurado realizou o referido seguro sem a intenção de cometer suicídio, tendo a vontade surgido posteriormente. Neste caso, o segurado não agiu de má-fé. O enunciado 187 da Jornada de Direito Civil, que trata da premeditação, está em sentido contrário à jurisprudência do STJ, ou seja, o enunciado não poderá ser usado.

Em virtude do que foi dito, compreende-se que a seguradora não pagará a indenização ao beneficiário - terceiro - se o suicídio ocorreu antes dos dois primeiros anos do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, ressalvado o direito do beneficiário de receber a reserva técnica formada, independente de prova de premeditação do suicídio, visto que, o critério adotado é o objetivo temporal.

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1 CABRAL, João Francisco Pereira. "Sobre o suicídio na sociologia de Èmile Durkheim"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/sobre-suicidio-na-sociologia-Emile-durkheim.htm . Acesso em 29 de janeiro de 2022.

2 Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil. Boletim epidemiológico, volume 52, setembro de 2021. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletins-epidemiologicos/edicoes/2021/boletim_epidemiologico_svs_33_final.pdf . Acesso em 29 de janeiro de 2022.

3 Suicidio. Organizacíon Mundial de la Salud. Disponível em: https://www.who.int/es/news-room/fact-sheets/detail/suicide . Acesso em 29 de janeiro de 2022.

4 Informativo de Jusrisprudência, número 564, Brasília, 15 a 30 de junho de 2015, STJ. Disponíel em: https://processo.stj.jus.br/docs_internet/informativos/PDF/Inf0564.pdf . Acesso em 29/01/2022.

Lázaro Lima Souza

VIP Lázaro Lima Souza

Graduado em Direito pelas FMU, advogado, pesquisador, escritor de artigos, palestrante e membro das Comissões Direito Civil e de Direito Tributário da OAB/SP

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