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Previdência social, uma bomba com estopim aceso

Em 2019, a reforma da Previdência no Brasil foi parcial e insuficiente. Em 2023, o déficit total da previdência alcançou R$ 482 bilhões, com déficits elevados em todos os sistemas, especialmente entre os militares.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Atualizado às 14:34

Em 2019, o Brasil fez a Reforma da Previdência, medida apontada como urgente, na época, porque muitos definiam o regime previdenciário como uma bomba prestes a explodir. Passados cinco anos apenas, constata-se que a reforma de 2019 foi parcial.  Talvez o resultado tenha sido o politicamente possível, porém ficou muito aquém das necessidades nacionais.

Agora uma nova reforma se impõe, de forma mais ampla, incluindo os estados e municípios, além de observar o que determina o estudo atuarial.

Não há como fugir do problema. Nem adiar a busca de solução. Hoje, todos os tipos de previdência social no Brasil - Regime Geral da Previdência Social, servidores da União, de estados e municípios - apresentam déficits expressivos. Em 2023, esse rombo alcançou R$ 482 bilhões, um valor preocupante porque equivale a 4,41% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e a 13,4% das receitas tributárias dos três entes federativos (União, Estados e Municípios). Esmiuçando: são R$ 312 bilhões de déficit do RGPS, mais R$ 110 bilhões do sistema de previdência dos servidores da União (civis e militares) e ainda R$ 60 bilhões de rombo na previdência dos servidores dos estados e municípios.

Merece destaque o fato de que, enquanto o déficit do RGPS corresponde a cerca de R$ 9.400,00 per capita/ano, o dos servidores civis da União chega a R$ 69.000,00 per capita/ano. Na liderança do rombo está o déficit da previdência dos militares, que atinge R$ 150.000,00 per capita/ano.

Embora o Regime Geral da Previdência tenha o maior número de beneficiados, seu déficit per capita é menor por uma razão simples: 70% dos 33 milhões de aposentados e pensionistas recebem remuneração igual ao piso salarial estabelecido pela legislação, ou seja, apenas 1 salário-mínimo/mês (R$ 1.412,00). Os outros 30% dos aposentados recebem, em média, cerca de R$ 2.600,00/mês (1,85 salário-mínimo). Já o valor médio global do RGPS, em 2023, foi de apenas R$ 1.771,28/mês (1,36 salário-mínimo). É fácil constatar que para a maioria dos brasileiros não há aposentadorias generosas. 

Entre as principais razões do gigantesco déficit da Previdência Social está o fenômeno de criação da figura jurídica e empresarial do MEI - Micro Empreendedor Individual, que entrou em vigor em 2009 para formalizar e dar segurança jurídica a trabalhadores autônomos que não tinham nenhum amparo legal nem contavam com assistência previdenciária. Na prática, o objetivo era incentivar o empreendedorismo. 

Ocorre que o Brasil é um dos campeões em produção de leis, medidas provisórias, decretos, instruções normativas e muitos outros atos jurídicos elaborados sem maiores cuidados e tecnicidade. Isso faz com que existam sempre brechas jurídicas para burlar o seu fiel cumprimento, algo antiético, porém legal. Foi o que aconteceu com o regime MEI. Segundo estudo elaborado pela economista Bruna Alvarez, da Fundação Getúlio Vargas, 53% dos trabalhadores que optaram pelo regime MEI até 2019 não atuavam como empreendedores, mas sim eram empregados assalariados de outras empresas. Ou seja, foram estimulados (ou forçados) a se transformar em microempreendedores individuais, tudo como forma de o empregador escapar dos elevados encargos e passivos trabalhistas. É o fenômeno conhecido como "pejotização" - a transformação da pessoa física em pessoa jurídica -, que vem caracterizando as relações trabalhistas no país.

Considerando-se a contribuição mensal de uma MEI, de 5% do salário-mínimo), durante 13 meses (incluindo "13º salário"), tem-se a contribuição anual de R$ 917,80 por ano (valores de 2024).  Como no Brasil há 15,7 milhões de MEIs (dado de 2023), o recolhimento total por ano é de R$ 14,41 bilhões. Caso o MEI queira pagar a contribuição de INSS complementar, para garantir os mesmos direitos dos demais contribuintes, desembolsará mais R$ 155,32 por mês, ou R$ 2.019,00 por ano.

Já um trabalhador registrado pela CLT com salário de 1 salário-mínimo, contribui hoje com 7,5% de R$ 105,90 por mês, ou R$ 1.376,70 anuais. Consideremos a contribuição do empregador variável, mais o mínimo de 20% da remuneração do empregado, de R$ 3.671,20 por ano, temos o total de R$ 5.047,90. Subtraindo-se desse valor o montante de contribuição do MEI, resulta R$ 4.130,10. Esta é a perda de arrecadação da Previdência por cada pessoa que migrou do emprego formal para uma MEI.

Como 53% das 15,70 milhões de MEIs existentes em 2023 (ou seja, 8,32 milhões delas) nada têm a ver com empreendedorismo, utilizando esse regime como mero expediente para fugir da elevada carga tributária incidente sobre cada empregado de uma empresa privada, a perda da arrecadação do RGPS pode ser estimada em R$ 34,36 bilhões no ano. Somando-se aos R$ 16,34 bilhões referentes ao vínculo do salário-mínimo, o impacto negativo na arrecadação do FGTS chega a R$ 50,70 bilhões.

Há ainda outros aspectos que comprometem o sistema. Um deles está no critério da idade para concessão de aposentadoria. Os homens - cuja expectativa de vida é de 72 anos -, podem se aposentar aos 65 anos de idade. Já as mulheres, que possuem expectativa de vida maior (79 anos), podem requerer a aposentadoria com 62 anos. Ou seja, embora as mulheres tenham maior expectativa de vida (7 anos a mais que os indivíduos do sexo masculino), podem se aposentar com 3 anos a menos que os homens. A equiparação de idades para a aposentadoria seria, portanto, o caminho correto. O problema é que seu custo político é alto demais, prejudicando o avanço dessa questão.

Também é preciso levar em conta fatores como o envelhecimento da população e a queda na taxa de crescimento populacional, de 1,7% para 0,5% ao ano.

Não se pode perder de vista, ainda, o excesso de gastos da gestão e administração do INSS e de outros órgãos vinculados ao RGPS, seja com as cúpulas (Brasília e estados), seja com privilégios, desperdícios ou fraudes frequentes e de grande monta. Há, sem dúvida, espaço para cortes expressivos nessas despesas.

Igualmente, é necessária especial atenção com as desonerações concedidas para alguns setores econômicos, estimadas pelo governo entre R$ 15 e R$ 20 bilhões/ano. Cabe um exame detalhado para avaliação da procedência desses benefícios e uma avaliação criteriosa sobre a possibilidade de redução ou exclusão das desonerações. 

Também merecem análise os gastos com os BCP - Benefícios de Prestação Continuada, que hoje englobam 5,8 milhões de pessoas, com remuneração igual ao piso salarial de um salário-mínimo/mês (R$ 1.412,00). Esse benefício é assegurado pela LOAS - Lei Orgânica de Assistência Social que, por sua vez, tem garantia constitucional. O programa é direcionado aos idosos com mais de 65 anos, deficientes físicos e aos vulneráveis. A elegibilidade dos beneficiários está atrelada ao cumprimento de vários critérios, como por exemplo, a idade, condição da deficiência, renda familiar e avaliação médica e social. Não é condição para receber o benefício qualquer contribuição prévia ao INSS e, por esta razão, a principal fonte de recursos é o orçamento da União. 

O custo do programa é de R$ 106,47 bilhões por ano (considerando-se 13 parcelas mensais), o equivalente a 0,93% a 0,96% do PIB. Já o efeito do vínculo do benefício ao salário-mínimo representa R$ 2,78 bilhões por ano. 

A soma do custo dos vínculos do salário-mínimo às aposentadorias, pensões e ao BPC; das MEIs em número extraordinário e das desonerações de alguns setores econômicos chega a valores entre R$ 68,48 e R$ 73,48 bilhões. É um número enorme que fica ainda maior se forem considerados os valores das fraudes previdenciárias, programa BPC e os custos da gestão do RGPS, das aposentadorias diferentes entre homens e mulheres, e da aposentadoria rural, que também reclama auditagem profunda.

O problema do déficit da Previdência - envolvendo civis, militares e BPC - é de extrema gravidade. A questão é complexa, multifacetada e extremamente sensível, vez que as mudanças que vierem a ser feitas certamente atingirão, mais uma vez, os menos favorecidos: idosos, pessoas de baixa renda - que representam mais de 70% dos aposentados e pensionistas -, mulheres e cidadãos com deficiência.

Como governar não é retirar direitos e conquistas da grande maioria sofrida da população a fim de assegurar (e se possível, ampliar) a enorme gama de privilégios de uma casta da sociedade nacional - os donos do poder -, a gravidade do problema previdenciário obriga o exame em conjunto dos gastos com funcionalismo público dos três entes federativos porque o Brasil gasta, com isso, 12,8% do PIB, muito mais do que a média (9,8% do PIB) dos 37 países da OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. Esses 3% a mais correspondem a nada menos que R$ 327 bilhões/ano.

É necessário levar em conta, ainda, que estudos oficiais do governo e de outras entidades, com base no cálculo atuarial, estimam o déficit previdenciário em mais de R$ 6 trilhões, o equivalente a 57% do PIB. Um valor astronômico, que supera 67% da dívida pública, hoje entre R$ 8,7 e R$ 9,0 trilhões.

A bomba, portanto, não foi desarmada com a reforma de 2019. Continua ameaçadora e prestes a causar maiores estragos entre os aposentados e pensionistas porque a cogitada desvinculação do salário-mínimo à aposentadoria vai retirar mensalmente R$ 36,71 desses beneficiados, valor que seguramente lhes fará muita falta nessa fase da vida.

Qualquer mudança a ser feita exigirá muita tecnicidade, transparência absoluta e, acima de tudo, sensibilidade para enxergar que é chegada a hora da redução de privilégios, em busca do equilíbrio para se evitar a falência do sistema previdenciário, que acontecerá mais cedo ou mais tarde caso não sejam adotadas as providências necessárias e inadiáveis.

Para isso é necessário coragem e o aprendizado de uma lição dada pelo professor, economista e ex-ministro Mário Henrique Simonsen (1935-1997), para quem a diferença entre o fracasso e o sucesso de um gestor público está na simples troca de uma vogal: prever (estudos e planejamento), em vez de prover (UTI e bombeiro apagando incêndio).

Samuel Hanan

VIP Samuel Hanan

Engenheiro, com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002).

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