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Intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas

O texto aborda o problema da concretização de políticas públicas referentes aos direitos sociais garantidos na CF/88, e os dilemas inerentes ao excesso de judicialização, principalmente porque essa tem sido empregada como o principal meio para se exigir a efetivação dos direitos sociais.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Atualizado às 13:54

1. Introdução

Este texto surgiu de uma provocação para que os presentes rememorassem casos de intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas e seus resultados, positivos ou negativos.

De fato, para os que lidam no sistema de justiça no Brasil, o convite para a elaboração de lista de casos dessa natureza não é uma tarefa difícil.

As hipóteses mais recorrentes envolvem saúde e vagas em creches e escolas, além de outras como  melhores condições em estabelecimento prisional; criação de vagas para internação de adolescentes infratores, e de vagas em unidades prisionais; providencias para garantia da proteção do meio ambiente, como edificação de aterro sanitário; direito do consumidor, e muitas outras, muitas mesmo.

Perguntas possíveis: O Judiciário deveria estar fazendo tais intervenções? Se sim, elas estão sendo feitas na medida certa? Os resultados são positivos?

As questões postas são complexas para respostas precisas, as quais exigem análise mais adequada da matéria e a conceituação de alguns institutos envolvidos como políticas públicas e orçamento. Necessária também a compreensão acerca do grau de efetividade que se pretende em relação aos direitos sociais previstos na CF/88.

2. Políticas públicas e orçamento

Nas palavras de Maria Paula Dallari BUCCI (2006, p 241), "políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados".

Como o orçamento é importante meio à disposição do estado para a concretização das políticas públicas, a criação, a coordenação e a execução dos programas devem ficar a cargo do poder executivo, cujas ações voltadas à implementação dos direitos sociais estão estritamente ligadas à previsão orçamentária. Como aponta Ricardo Lobo Torres, a relação entre políticas públicas e orçamento é dialética.

Mas, como se sabe, a CF/88 foi bastante ampla na garantia de direitos sociais, os quais apresentam custos que precisam ser manejados dentro do limite orçamentário, cuja escassez, algumas vezes; e a má gestão dos recursos públicos, outras vezes, representa empecilho à concretização.

A partir da inegável escassez de recursos, a teoria da reserva do possível passou a ser empregada como justificativa para a não realização de serviços elementares, desafiando diversos julgamentos a respeito da concretização das políticas públicas.

3. Efetividade e judicialização dos direitos sociais previstos na Constituição Federal 

Ao tratar sobre a efetividade dos direitos sociais previstos na CF/88, Fernanda Priscila Ferreira Dantas relembra que Norbeto Bobbio já adiantara que "um direito cujo reconhecimento e cuja a efetiva proteção são adiados sine die, além de confinados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o 'programa' é apenas obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado de 'direito'"? (DANTAS 2016, p. 42).

Desse questionamento surge, como possível resolução do problema, a imposição do cumprimento dos direitos sociais pelo Poder judiciário, o que desagua no que vem sendo chamado, muitas vezes, de ativismo judicial, ainda de conceito incerto, pois ao mesmo tempo que alguns defendem que se trata de verdadeira intromissão do Poder Judiciário, de modo a desrespeitar a divisão dos poderes; outros entendem que se trata de função jurisdicional concretizadora da dimensão objetiva dos direitos fundamentais.

Vanice Regina L. do Valle (2016) trata sobre a opção do constituinte em fixar heterovinculações ao agir do Estado a se concretizar por meio de políticas públicas. A CF/88 traçou hetrerovinculações nas áreas da saúde e educação; disso decorre a maior judicialização das duas matérias. Entretanto, a complexidade envolve também diversas outras garantias sociais, pois, mesmo com a conclusão de que direitos fundamentais impõe deveres de condutas positivas e negativas do estado, não encerra a discussão porque não se extrai do texto constitucional o conteúdo do dever agir do Estado, e tampouco o grau de exigibilidade do possível dever.

4. Julgamento paradigma: Tema 548 do STF

No julgamento do RE 1.008.166 RE/SC , que culminou no Tema 548, o STF fez importante análise acerca dos princípios da separação dos poderes e da reserva do possível para concluir que o "Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica", podendo as vagas ser exigidas individualmente.

No caso concreto, o município condenado a fornecer a vaga arguiu que a promoção do ensino infantil é norma programática, que deverá ser cumprida dentro dos limites orçamentários do poder público, ou seja, pretende-se justificar a ausência do serviço público ao argumento de reserva do possível.

O voto do relator, ministro Luiz Fux, analisou diversos direitos sociais não só no contexto normativo da CF/88 - entre os quais o dever do Estado em garantir "educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 anos de idade" (art. 208, IV) - como também na lei de diretrizes e bases da educação (lei 9.394/96), que reafirma a ideia das crianças e dos adolescentes como efetivos sujeitos de direitos à educação, ao cuidado e à proteção integral (art. 227 da CF/88).

Também se considerou a garantia do direito social dos trabalhadores e, principalmente, das trabalhadoras a "assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 anos de idade em creches e pré-escolas" (art. 7º, XXV, da CF/88).

Levou-se em consideração o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 da Agenda 2030, e estudos da UNESCO no Brasil acerca do necessidade de priorizar a educação, principalmente na primeira infância.

O ministro Nunes Marques, em seu voto, consignou expressamente que a "formação do cidadão, especialmente na primeira infância, não é uma entre muitas outras tarefas de igual valor que o Estado deve exercer; ela é, na verdade, a mais relevante tarefa a cargo do poder público, e para ela devem convergir os melhores esforços e os indispensáveis recursos".

Ele destacou que a prioridade para utilização do orçamento público deve ser destacada a partir "da autêntica finalidade da instituição de um Estado Democrático" e a própria Constituição Federal, a qual estabelece crianças e adolescentes como prioridades absolutas. Por isso, caso haja concorrência de necessidades sobre o mesmo orçamento público, a prioridade deve ser extraída da própria Constituição Federal.

5. Nova abordagem para as garantias de direitos sociais

Embora reconheçamos as dificuldades que o Poder Judiciário enfrenta para garantir os direitos sociais, é possível avançar nesse campo. Após quase 36 anos desde a promulgação da CF/88, acumulamos experiências valiosas em diversos julgamentos, incluindo a criação de precedentes vinculantes, como o mencionado. Com isso, estamos mais preparados para explorar nossas possibilidades

A sociedade organizada já dispõe de alternativas inovadoras para encontrar soluções que não se limitem a dois extremos: a não realização dos direitos sociais ou a sua efetivação apenas por meio de imposição judicial.

As experiências acumuladas pela defensoria pública e pelo ministério público, o avanço na prática dos processos estruturados, e o desenvolvimento acadêmico e prático da mediação de conflitos indicam a possibilidade de encontrar alternativas à judicialização. Além dos custos envolvidos e das dificuldades para efetivar os direitos reconhecidos judicialmente, é claro que essas intervenções não são o ideal do estado democrático de direito, que exige a atuação de agentes comprometidos com os fundamentos, princípios e objetivos do pacto constitucional.

Recente acordo estrutural entre o Ministério Público de Goiás e a Equatorial Goiás S.A., que visa à melhoria do fornecimento de energia, exemplifica a implementação de direitos sociais sem judicialização. O acordo resolveu 28 ações civis movidas desde o ano 2004 por promotorias de justiça em 25 municípios goianos.

Embora no caso concreto o acordo não envolva ente público, a experiência pode e deve ser replicada em todas as esferas comprometidas com o objetivo de se alcançar uma sociedade que leva a sério sua Constituição Federal, e não veja nela apenas "folha de papel".

6. Conclusão

Este texto propôs uma reflexão acerca das intervenções do Poder Judiciário nas políticas públicas; buscou-se revisitar os conceitos acerca dos temas presentes e também se ressaltou a complexidade que envolve a garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Tentou-se apontar novas possibilidades para se fazer cumprir os fundamentos e objetivos constitucionais sem necessariamente se judicializar todas as omissões estatais.

Na matéria em exame - assim como nos diversos dilemas que permeiam a vida em sociedade, cada vez mais complexa - é necessário que avancemos em ações estruturadas e cooperativas para a implementação do Estado Social pactuado na Constituição Federal, principalmente em razão do inegável excesso de judicialização no país.

E, afinal, numa democracia madura, todos os poderes conhecem seus deveres e devem agir com responsabilidade para implementação de políticas públicas, a partir dos comandos estabelecidos na Constituição Federal.

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BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 11ª ed. São Paulo: Saraivajur.2023.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 22/08/2024.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Tema  548. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.aspincidente=5085176&numeroProcesso=1008166&classeProcesso=RE&numeroTema=548> Acesso em 28/08/2024.

BUCCI, Maria de Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo. Saraiva. 2006.

DANTAS, Fernanda Priscila Ferreira. Direitos sociais no Brasil: desafios e mecanismos para a sua concretização. Curitiba: Juruá, 2016.

MENDES, Gilmar Ferreira. As Cortes Constitucionais e sua condição de policymaker: análise jurisprudencial da atuação do Supremo Tribunal Federal - Acesso em 26.08/2024.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. V.5. O Orçamento na Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2000.

VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas, direitos fundamentais e controle judicial. 2 ed. Belo Horizonte: Forum, 2016.

Disponível em: https://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/mpgo-e-equatorial-firmam-acordo-para-melhorarservico-de-energia-com-r-470-milhoes-em-investimentos-na-rede-e-r-20-milhoes-paraobras-servicos-e-doacoes?

Disponível em: fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaY9CRETBQLRe5OFpsGT1ktCdJGjU8p4Q3WH3bfteVr 91e_BXgESLL1pSq4_aem_o-oOonPHNXwXvm9pQYBZ2w

Sirlei Martins da Costa

Sirlei Martins da Costa

Desembargadora no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, mestre em cultura jurídica pela Universidade de Girona-Espanha, e doutoranda em Direito Constitucional no IDP.

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