Violência contra a mulher: 18 anos da lei Maria da Penha e seus avanços diante da realidade brasileira
Apesar dos avanços da Lei Maria da Penha, o DataSenado revela que a violência doméstica persiste no Brasil, indicando a necessidade de ações mais eficazes para proteger as mulheres.
quarta-feira, 28 de agosto de 2024
Atualizado às 11:34
Em 2024 a lei Maria da Penha (lei 11.340/06) fará 18 anos de existência. Um marco na luta contra a violência doméstica e familiar contra a mulher, este foi um divisor de águas no direito brasileiro. A Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo DataSenado em novembro/23, revela uma mudança na percepção do tratamento dispensado às mulheres no Brasil, com a diminuição da sensação de machismo e o aumento da conscientização em relação aos mecanismos de proteção. Mas as estatísticas também trazem a cruel realidade da violência que insiste em persistir, com a maioria esmagadora das mulheres entrevistadas dizendo ter sido violentadas em algum momento.
O estudo do DataSenado, embora mostre um tratamento ligeiramente melhor para as mulheres do Brasil, publica um número alarmante de incidentes de violência doméstica e familiar e, assim, evidencia que a lei Maria da Penha, embora tenha sido um ganho, ainda não está em vigor de maneira implementável. Ou seja, apesar da lei Maria da Penha ser um marco legal para criminalizar a violência doméstica, a legislação não impediu o aumento da violência contra a mulher no Brasil. Isso requer, por um lado, uma ação mais firme do Estado e da sociedade contra a estrutura de dominação masculina e, por outro, medidas muito mais concretas de proteção às vítimas.
Estudos indicam um agravamento da percepção das mulheres brasileiras em relação ao machismo. O percentual de mulheres que consideram o Brasil um país "muito machista" diminuiu para 62%, vindo de 71% em 2021, e o conhecimento sobre a lei Maria da Penha e os dispositivos de proteção, como as Delegacias da Mulher e a Defensoria Pública, aumentou. Mas, de fato, é perturbador que 75% das mulheres considerem que sabem "pouco ou nada" sobre a lei Maria da Penha, e é por isso que as campanhas de informação sobre a legislação e os mecanismos de proteção associados devem ser aprimoradas.
Embora os números do estudo demonstrem uma ligeira mudança na tendência de violência contra as mulheres, a verdade é que a violência doméstica e familiar ainda é muito alta. 30% das mulheres afirmaram que em algum momento de suas vidas haviam sofrido violência doméstica ou de gênero causada por um homem; a mesma porcentagem sofreu nos últimos 12 meses. A violência psicológica é a mais prevalente, afetando 89%, seguida de violência moral (77%) e física (76%). Também, deve-se observar que há uma possibilidade de viés sob a divulgação dos casos de abuso sexual, uma vez que a pergunta relacionada a esse tópico foi feita pela primeira vez no ano de 2023 e apontou que 30% das mulheres conhecem alguém que foi vítima de abuso doméstico.
A pesquisa do DataSenado também corrobora o fato de que há problemas na aplicação eficaz da lei Maria da Penha. Sessenta e dois por cento das mulheres (62%) concordam que as vítimas de agressão relatam o crime à polícia apenas em minoria dos casos, e 22% dessas mulheres concordam que elas simplesmente não relatam. O medo do agressor (73%), a não punição (61%) e a dependência financeira (61%) são as causas principais pelas quais o caso não foi registrado. A pesquisa também indica que 48% das mulheres que registraram uma Medida Protetiva afirmaram que houve descumprimento do lado do agressor. Esses dados explicam a necessidade de fortalecer os mecanismos de aplicação da lei e de proteção para as vítimas, garantir o castigo dos agressores e investir em políticas públicas que permitam a autonomia financeira das mulheres.
A continuação da violência contra mulheres pode ser atribuída à continuidade da estrutura de dominação masculina que faz com que a violência de gênero e a dominação masculina se naturalizem. De acordo com dados do DataSenado, entre as mulheres que foram vítimas de violência doméstica ou familiar, 49% acreditavam que o agressor "estava com ciúmes" no momento mais grave de violência, enquanto 46% acreditavam que ele "não aceitava o fim do relacionamento". Isso aponta para a necessidade de políticas educacionais e culturais que trabalhem pela igualdade de gênero e desmintam a lógica da dominação masculina.
Um dos grandes desafios enfrentados quanto à aplicação da lei Maria da Penha, é no que diz respeito à integração entre os diferentes órgãos e serviços de proteção à mulher. A falta de comunicação e articulação entre polícia, judiciário, saúde e assistência social pode resultar em falhas na proteção às vítimas e na responsabilização dos agressores. A necessidade de uma rede integrada de atendimento, com fluxos de comunicação eficientes e atuação conjunta dos diversos atores, é fundamental para garantir a proteção integral da mulher em situação de violência.
Outro ponto crucial é a necessidade de aprimorar e fortalecer os mecanismos de proteção previstos na lei Maria da Penha. A morosidade na concessão de medidas protetivas, a dificuldade na fiscalização do seu cumprimento e a baixa efetividade na punição dos agressores que as descumprem e até mesmo a violência institucional, quando órgãos e instituições, por ação, omissão ou tolerância, deixam de garantir os direitos das mulheres, perpetuando a violência e a impunidade, são falhas graves que precisam ser corrigidas. A revisão periódica da legislação, incorporando as demandas da sociedade e os avanços jurídicos, é essencial para garantir a sua atualização e eficácia na proteção da mulher contra a violência.
A lei Maria da Penha, ao completar 18 anos, se consolida como um instrumento fundamental na luta contra a violência de gênero no Brasil. Mas a própria legislação - segundo um levantamento do DataSenado - tem arestas a aparar para garantir sua aplicação completa e eficaz. Os níveis persistentemente elevados de violência doméstica e familiar ilustram a necessidade de reforçar esforços contra a subnotificação, a morosidade do sistema judicial, a falta de investimento em políticas públicas e, o mais importante de tudo, a rede de dominação masculina através da qual a violência contra as mulheres é normalizada. Há uma necessidade de uma ação contínua por parte do Estado, do sistema de justiça e da sociedade em geral a fim de fazer a lei Maria da Penha operar em sua devida prática de defesa da mulher e na construção de uma sociedade livre de violência de gênero.
A tarefa de eliminar a violência contra as mulheres é difícil e requer esforços inter-setoriais do Estado, do sistema de justiça e da sociedade. A lei Maria da Penha é uma grande conquista, mas ainda há muito a ser feito para que todas as mulheres possam viver sem violência e medo.
Caroline Ribeiro Souto Bessa
Advogada da área Penal Empresarial do escritório Martorelli Advogados.