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As implicações do reconhecimento de pessoas no Tribunal do Júri

No processo penal, o depoimento de vítimas e testemunhas é altamente valorizado, muitas vezes superando provas técnicas como o exame de DNA. O caso RHC 128.096 do STF ilustra isso, onde a palavra da vítima prevaleceu sobre evidências técnicas que excluíam o réu.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Atualizado às 14:33

Da prova oral no processo penal

De muito que a prova preferida no processo penal é a oral, sendo sem sombras de dúvidas o meio de prova mais utilizado e valorizado na instrução criminal, a oitiva de vítimas e testemunhas inclusive é tratada como verdadeira rainha das provas, detentora de uma verdade absoluta é irrefutável, já tendo superado inclusive provas de maior precisão confirmatória, como o exame de DNA que foi deixado de lado, em contraste com a palavra do acusado que tem seu valor suprimido ou anulado quando em confronto com estas.

A testemunha por prestar compromisso em juízo - ou até mesmo (de ouvir dizer), acabam gozando da presunção de falarem a verdade, e mais, que seu depoimento corresponde exatamente ao evento fático narrado, isto é, que o testemunho é suficiente para condenar e confirmar a acusação.

No julgamento do RHC 128.096 do STF, envolvendo um caso de Estupro, Reconhecimento da Vítima e exame de DNA que atestou ser incompatível o material genético coletado com o do acusado, apontando a presença de outra pessoa na cena do crime, prevaleceu a palavra da vítima em três instâncias (juízo, tribunal e STJ), mesmo ante a contundência do exame de DNA que atestava não ser o réu o autor do crime2.

O ministro Relator (Marco Aurélio Melo, em 18 de dezembro de 2018) ao absolve-lo, ressaltou que a denúncia apontou que o réu adentrou sozinho na residência da vítima, o que foi desconstituído pela prova técnica, razão pela qual concluiu que inviável assentar, acima de qualquer dúvida razoável, a participação do paciente no contexto delituoso.

Do procedimento de reconhecimento de pessoas

O reconhecimento de pessoas tem natureza jurídica de meio de prova e é usado principalmente em procedimentos de investigação criminal ou em processos judiciais para confirmar a autoria de uma infração penal.

Nesse caso, a vítima ou a testemunha ocular de um crime é convidada a fazer o reconhecimento da pessoa acusada da prática do delito.

O art. 226 do CPP - Código de Processo Penal brasileiro estabelece o procedimento para o reconhecimento de pessoas, há uma cadeia de custódia a ser seguida para que a prova seja considerada válida e minimizar os riscos de erros graves e injustiças contra inocentes.

São duas fases previstas no art. 226 do CPP, primeiro deve haver por parte do ofendido ou testemunha uma prévia descrição da pessoa a ser reconhecida (inciso I) e a sua posterior identificação perante outras pessoas que tenham com ela características semelhantes (inciso II).

A primeira etapa constitui a descrição prévia do suspeito. O ideal seria que fosse obrigatório que todo o procedimento fosse gravado ou de alguma forma bem detalhado pela autoridade responsável, seja no IP ou em juízo, por se tratar de uma prova importante em que deveria possibilitar um amplo contraditório e ampla possibilidade de confronto como por exemplo:

  1. verificar se a vítima /testemunha efetuou uma narrativa espontânea, livre de interferências, se detalhou bem a pessoa a ser identificada, isso possibilitaria por exemplo verificar se a pessoa cujo reconhecimento ocorreu guardava semelhanças com as qualidades antes relatadas pelo reconhecedor;
  1. Verificar se eventuais perguntas realizadas pelos órgãos de investigação e acusação direcionadas à vítima/testemunhas foram "abertas" para a livre narrativa, livre de qualquer sugestionamento na resposta.

Deveria nessa primeira etapa ser obrigatório também a averiguação de circunstâncias fáticas e emocionais que envolveram o contato visual com o acusado, como, por exemplos, condições de iluminação, tempo, distância, uso de drogas e/ou álcool, emprego de arma de fogo e nível de estresse.

Embora a Resolução 484/2022 do CNJ, criada para aprimorar e reduzir a possibilidade de falhas no reconhecimento de pessoas, preveja exigência expressa de que "o ato de reconhecimento seja reduzido a termo, de forma pormenorizada e com informações sobre a fonte das fotografias e imagens, para juntada aos autos do processo, em conjunto com a respectiva gravação audiovisual" (art. 10), esse ato normativo ainda não é seguido, e o reconhecimento na fase policial ainda é feito às escuras e com enormes dificuldades de confronto.

A segunda etapa é o reconhecimento propriamente dito, que deverá ser realizado na forma line-up.

O método mais adequado é o perfilamento justo: para além do acusado ser apresentado ao seu lado pessoas com características físicas semelhantes, é importante também que os distraidores sejam sabidamente inocentes.

Para além das semelhanças físicas, deve-se evitar que o suspeito esteja realçado de qualquer forma que induza o seu apontamento, a exemplo de estar algemado ou trajar vestes de presidiário.

A resolução 484/2022 do CNJ, em seu art. 8º, inciso II, a recomenda que, ao lado do investigado, sejam apresentadas no mínimo quatro pessoas "não relacionadas ao fato investigado, que atendam igualmente à descrição dada pela vítima ou testemunha às características da pessoa investigada ou processada". O que nem precisa dizer que não é observado3.

Outrossim, a formalidade no inciso IV do art. 226 do CPP, obriga que seja lavrado auto pormenorizado do ato de reconhecimento, "subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais", o que ao nosso ver não é satisfatório para posterior controle, já que pode ser manuseado com discricionariedade pela autoridade responsável.

O descumprimento de qualquer formalidade do art. 226 tem como consequência a ausência de controle da preservação da cadeia da custódia da prova, inviabilizando a análise de eventuais prejuízos à defesa que deve conduzir à própria invalidade da prova.

Problemáticas do reconhecimento de pessoas

O reconhecimento de pessoas é uma prova adstrita à memória humana e, por conseguinte, para uma justiça penal pautada em evidências científicas, é imprescindível o diálogo do processo penal com outras ciências, como a psicologia do testemunho.

Estudos vem demonstrando que a memória humana é falha e uma pessoa mesmo que de boa-fé pode vir a prestar um depoimento ou um reconhecimento de pessoas que não corresponda a realidade.

Dados estatísticos do Innocence Project, nos Estados Unidos indicaram que aproximadamente 70% das condenações cassadas em sede de revisões criminais derivavam de falsos reconhecimentos.

No Brasil não é diferente, temos decisões judiciais desacertadas e reconhecimentos equivocados, citamos por exemplo o caso recente da 5ª turma do STJ, que em decisão unânime, absolveu um homem que ficou preso injustamente por 12 anos, após ser condenado em vários casos de estupro4.

Segundo o colegiado, as condenações foram baseadas unicamente na palavra das vítimas, que o reconheceram por foto e pessoalmente, mas sem observar as regras legais do reconhecimento, e nas declarações de policiais sobre o envolvimento do acusado em outros crimes semelhantes.

Considerando essas circunstâncias, a turma julgadora anulou os reconhecimentos realizados em quatro dos 12 processos em que o réu foi condenado. Nos outros oito casos, as condenações já haviam sido revertidas após exames de DNA comprovarem que ele não era o autor dos crimes.

O que mais assusta nesse caso é que enquanto um inocente pagava pelo que não fez, o real infrator continuava em liberdade e cometendo inúmeros outros delitos semelhantes e fazendo inúmeras novas vítimas, da análise do material genético no banco de dados foi identificado o perfil genético de outra pessoa, que possuia diversas condenações por crimes semelhantes.

O Innocence Project Brasil, com ajuda do Ministério Público em Barueri, obteve cinco exames de DNA, todos elaborados pelo Instituto de Criminalística do Estado de São Paulo, os quais demonstraram, sem sombras de dúvida, que o acusado preso não era o estuprador noticiado.

É fácil concluir esse tópico afirmando que as condenações equivocadas desprestigiam a credibilidade das decisões judiciais e causam prejuízos não somente às pessoas injustamente encarceradas, mas à sociedade como um todo, enquanto um inocente é preso o real infrator continua vitimizando outras pessoas.

Os erros podem ocorrer por diversos fatores

Os erros no reconhecimento podem vir independentemente de fatores externos de contaminação, como por exemplo da própria natureza limitada da mente humana, que pode fantasiar, criar falsas ilusões como se aquilo fosse uma verdade.

Como também de fatores externos, como: a) a distância entre a vítima/testemunha sobrevivente e o autor do crime no momento da sua prática, bem como o ângulo de visualização e as condições de luminosidade; b) o emprego de arma de fogo - modus operandi frequente nos crimes de homicídio - a atenção da vítima tende a desfocar exclusivamente da fisionomia do agente. Trata-se do fenômeno "foco da arma" (weapon focus effect): "o objeto raro (arma) converge a atenção da vítima e faz com que em nome da sobrevivência a sequência visual preocupe-se basicamente com seu movimento.

Outros fatores externos também podem alterar e levar a erro o reconhecimento, exemplo: a) a cobertura da mídia; b) o contato com outras pessoas, contando detalhes e apontando determinado sujeito como autor do crime. Tudo isso pode suplantar no reconhecedor uma imagem equivocada do infrator ou até mesmo contaminar seu depoimento e reconhecimento com fragmentos de memória de algo que ela não viu, mas absorveu dessas fontes.

A técnica utilizada pela autoridade responsável por conduzir o reconhecimento, como o show-up - conduta que consiste em exibir apenas um suspeito, ou sua fotografia, e solicitar que a vítima ou testemunha diga se foi ele o autor do crime é outra circunstancia que pode levar a erro o reconhecedor, criando uma falsa percepção de que se a autoridade apontou aquela imagem ou pessoa é porque foi aquele mesmo o infrator.

E por fim, o decurso natural do tempo entre o fato e o reconhecimento, geralmente anos no rito do Júri, que prejudica as lembranças, a recuperação de memória e ainda expõe o reconhecedor a fatores externos e novas informações sobre os fatos.

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1 BRASIL. Lei nº 14.836, de 8 de abril de 2024. Altera a Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

2 1ª Turma do STF provê recurso interposto com base em laudo de DNA e absolve condenado. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=398977. Acesso em: 20/07/2024.

3 O reconhecimento a partir da Resolução 484/22 do CNJ no Tribunal do Júri. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-15/tribunal-juri-reconhecimento-partir-res-48422-cnj-tribunal-juri/. Acesso em: 20/07/2024.

4 Quinta Turma absolve homem condenado por estupros que ficou 12 anos preso injustamente. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/17052024-Quinta-Turma-absolve-homem-condenado-por-estupros-que-ficou-12-anos-preso-injustamente.aspx. Acesso em: 20/07/2024.

Flávio Viana

Flávio Viana

Advogado Criminalista. Pós Graduado em Direito e Processo Penal. Especializando em Tribunal do Júri e Execução Penal. Membro da 20ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.

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