A herança digital e o PL 1.689/21
A herança digital tem se tornado um assunto relevante no direito civil. No presente artigo, visa-se compreender a herança digital e as suas consequências.
quarta-feira, 21 de agosto de 2024
Atualizado às 12:17
O direito de herança é garantido pela CF/88 (art. 5º, XXX). A herança, que é o patrimônio de defunto, pode ser a título universal (herdeiro) e a título singular (legatário), além de ser uma universalidade de direito - universum jus, universa bona.
Com o avanço lento e gradual da sociedade, a tecnologia precisa ser compreendida pelo Direito, visto que, existem bens incorpóreos encontrados no campo digital, conhecidos como bens virtuais. No presente artigo, visa-se analisar a herança digital.
A herança digital, como dito anteriormente, é o conjunto de bens virtuais do falecido, podendo ser composto por fotos, vídeos, arquivos de texto, e-mails, e-books, conversas, assinaturas digitais e entre outros.
Na Alemanha, a Suprema Corte de Justiça garantiu aos pais acesso à conta do Facebook da filha falecida, visto que, a rede social não forneceu voluntariamente. A referida corte argumentou que não existem motivos para impedir o acesso dos pais a conta da filha (menor de 15 anos) pois era necessário que eles soubessem com quem a filha conversou, assim os pais compreenderiam às circunstâncias que levaram ao suicídio da filha1.
Em outro caso, o tribunal de Massachusetts determinou ao Yahoo que fornecesse aos familiares de um marine morto no Iraque um CD contendo as cópias dos e-mails arquivados na conta do filho, entretanto, não fora permitido o fornecimento da senha ou o acesso à conta digital do filho.
Em um caso recente no Brasil (2021/2022), a Justiça garantiu a um pai o acesso aos arquivos digitais salvos no Iphone do filho, que morrera em acidente de trânsito. O juiz Guilherme de Macedo Soares, da 2ª vara do Juizado Especial Cível de Santos, julgou procedente o pedido do pai e determinou a expedição de alvará judicial autorizando a Apple a transferir a conta Apple ID usada pelo filho falecido para o seu pai. O Marco Civil da Internet (lei 12.905/14) disciplina que é inviolável e sigiloso o fluxo das comunicações pela internet, exceto se houver ordem judicial. Vejamos o que ensina o marco civil citado:
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
- inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
- inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
- inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;
[...]
VII. não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei;
A empresa Apple criou um recurso que permite aos usuários designarem um ou mais sujeitos que poderão ter acesso à sua conta do ID Apple em caso de falecimento. O referido recurso é conhecido como Legado Digital, pois, como dito anteriormente, permite o acesso após o falecimento do usuário. O acesso ao recurso citado é por meio de chave de acesso, que pode ser via IMessage ou por meio de um QR Code específico para cada legatário.
O PL 1.689/21 foi apresentado para alterar a lei 10.406/02 (CC/02), para dispor sobre perfis, páginas contas, publicações e outros dados pessoas concernentes a pessoa falecida, além da possibilidade de testamentos e codicilos. Vejamos os acréscimos pretendidos pelo referido projeto:
'"Art. 1.791-A Incluem-se na herança os direitos autorais, dados pessoais e demais publicações e interações do falecido em provedores de aplicações de internet.
§ 1º O direito de acesso do sucessor à página pessoal do falecido deve ser assegurado pelo provedor de aplicações de internet, mediante apresentação de atestado de óbito, a não ser por disposição contrária do falecido em testamento.
§ 2º Será garantido ao sucessor o direito de, alternativamente, manter e editar as informações digitais do falecido ou de transformar o perfil ou página da internet em memorial.
§ 2º Morrendo a pessoa sem herdeiros legítimos, o provedor de aplicações de internet, quando informado da morte e mediante apresentação de atestado de óbito, tratará o perfil, publicações e todos os dados pessoais do falecido como herança jacente, consignando-os à guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância..
Art.1.857 ...........................................................................................................................................................................................
§ 3º A disposição por testamento de pessoa capaz inclui os direitos autorais, dados pessoais e demais publicações e interações do testador em provedores de aplicações de internet. ......................................................................................................
Art. 1863-A O testamento cerrado e o particular, bem como os codicilos, serão válidos em formato eletrônico, desde que assinados digitalmente com certificado digital pelo testador, na forma da lei." (NR)'3.. (grifos meus).
O projeto citado também altera o art. 41 da lei 9.610/98 para que a nova redação acrescente aos direitos patrimoniais do autor as publicações em provedores de aplicações de internet, garantindo que os referidos direitos patrimoniais perdurem por setenta anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao de falecimento do autor, obedecida a ordem sucessória da lei civil.
Algo interessante no referido projeto é a possibilidade de a herança digital se tornar vacante, ou seja, os bens serem entregues ao Poder Público, entretanto, é algo que deveria ser revisado porque certos bens digitais não interessam e nem podem ser de interesse do Poder Público, como no caso de fotos, músicas e conversas do falecido. Sendo assim, deveria existir uma limitação a possibilidade de os bens digitais serem dados ao Poder citado, isto é, bens digitais que possuam valor econômico, como NFTs, contas e investimentos digitais, podem ser acrescentados ao patrimônio público, entretanto, bens que envolvam a privacidade e, principalmente, a imagem e honra do falecido não deveriam ser acrescentados ao patrimônio citado.
O projeto de lei tratado no presente artigo é relevante e necessário porque trata da destinação de lembranças, memórias e até segredos do falecido, entretanto, estes devem ser limitados aos herdeiros e legatários, ou seja, não interessam ao patrimônio público. Caso a herança se torne vacante, é necessário apresentar uma solução para os bens que não possam ser acrescentados ao referido patrimônio, como a destruição ou simplesmente a impossibilidade de qualquer pessoa acessá-los, como já ocorre na maioria dos casos (a segunda solução é mais fácil que a destruição). De acordo com o projeto:
"Nesse sentido, fica estabelecido que o sucessor legal possui direito de acesso à página pessoal do de cujus, mediante apresentação de atestado de óbito. O direito só não incidirá se houver vedação disposta pelo falecido em testamento, indicando que deseja que suas informações permaneçam em sigilo ou sejam eliminadas". (grifos meus).
A possibilidade de o falecido proibir acesso referente às informações sigilosas é correta, visto que, o falecido deve ser respeitado em relação ao seu testamento. Em virtude do que foi dito, compreende-se que o PL 1.689/21 é relevante, apesar de ser necessária uma revisão concernente a vacância. A respeito de bens digitais com valor econômico, seria interessante acrescentá-los ao patrimônio público, caso não existam herdeiros. O projeto de lei tratado no presente artigo é necessário e relevante.
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SANKIEVICZ, Alexandre. A herança digital nos EUA e na Europa: os direitos à privacidade e à herança. Acesso em 05 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-06/alexandre-sankievicz-heranca-digital-eua-europa
VELOZO FUCCIA, Eduardo. Pai obtém na Justiça acesso aos arquivos 'na nuvem' do filho morto em acidente. Acesso em 05 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-14/pai-obtem-justica-acesso-aos-arquivos-iphone-filho-morto
Projeto de lei nº 1689/2021 da Deputada Federal Doutora Alessandra da Silva (Alê da Silva), PSL - MG. Acesso em 05 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0156org3z8c1jw1k0mkhc0ljkd034064991.node0?codteor=2003683&filename=PL+1689/2021