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A possibilidade de arguição da impenhorabilidade da pequena propriedade rural pelo possuidor do imóvel

Thágatty Carneiro

O artigo analisa se o possuidor de uma pequena propriedade rural pode arguir sua impenhorabilidade, mesmo sem ser o proprietário registral, com base na Constituição e jurisprudência brasileira.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Atualizado em 20 de agosto de 2024 10:44

1. Introdução

A impenhorabilidade da pequena propriedade rural, garantida pela CF/88 (art. 5º, XXVI), visa assegurar a subsistência e a moradia do trabalhador rural e de sua família. Esta proteção, entretanto, tem gerado debates sobre sua aplicabilidade ao possuidor do imóvel, que, apesar de não ser o proprietário registral, exerce a posse do bem de forma mansa e pacífica, utilizando-o como meio de subsistência. O presente estudo busca analisar essa possibilidade, à luz da legislação vigente, da doutrina e da jurisprudência.

2. A impenhorabilidade da pequena propriedade rural na legislação brasileira

A impenhorabilidade da pequena propriedade rural é prevista na Constituição Federal e no CPC/15 (art. 833, VIII). A legislação protege a pequena propriedade rural trabalhada pela família, impedindo que esta seja objeto de penhora em execuções civis. A lei 8.629/93, que regulamenta a reforma agrária, define a pequena propriedade rural como o imóvel rural que possua extensão de até quatro módulos fiscais. Esta proteção jurídica visa garantir que o pequeno produtor rural não seja despojado do seu meio de subsistência, fundamental para a sobrevivência de sua família.

3. A situação jurídica do possuidor do imóvel e a possibilidade de invocação da impenhorabilidade

3.1. A posse e a função social da propriedade

O possuidor do imóvel, mesmo sem o título de propriedade formal, desempenha papel crucial na função social da propriedade, conceito que é basilar no ordenamento jurídico brasileiro. A função social da propriedade exige que esta seja utilizada de maneira produtiva e em benefício da sociedade. O CC/02, em seu art. 1.228, § 1º, reforça que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais. Assim, o possuidor que utiliza o imóvel rural para fins de subsistência e sustento familiar, cumprindo a função social, deveria gozar das mesmas proteções conferidas ao proprietário formal.

3.2. A usucapião e seus efeitos na proteção patrimonial

A usucapião é um instituto que permite ao possuidor adquirir a propriedade do bem após exercer a posse por determinado período, de forma contínua, mansa e pacífica. A jurisprudência do STJ tem reconhecido que a usucapião, uma vez declarada, opera efeitos ex tunc, ou seja, retroativos, consolidando o direito de propriedade desde o momento em que foram preenchidos os requisitos para sua aquisição.

4. A jurisprudência e a legitimidade do possuidor para invocar a impenhorabilidade

A jurisprudência brasileira tem evoluído no sentido de reconhecer a proteção da impenhorabilidade ao possuidor, especialmente quando este exerce a posse com animus domini e utiliza o imóvel como meio de subsistência familiar. Decisões judiciais têm destacado que a proteção à pequena propriedade rural deve ser interpretada de maneira ampla, visando preservar o sustento do núcleo familiar que dela depende, ainda que o possuidor não tenha formalizado a propriedade por meio do registro imobiliário.

5. A alegação da impenhorabilidade pelo possuidor: Embargos de terceiro como via processual

Quando o possuidor de uma pequena propriedade rural não está formalmente incluído no processo executivo que culminou na penhora do imóvel, a via processual adequada para a defesa de seus direitos é a interposição de embargos de terceiro. Este recurso judicial é uma medida protetiva destinada a salvaguardar a posse ou a propriedade de alguém que, não sendo parte na demanda original, vê seu bem ameaçado por atos de constrição judicial.

5.1. A natureza dos embargos de terceiro

Os embargos de terceiro, previstos nos arts. 674 a 681 do CPC/15, constituem um meio eficaz para que o possuidor ou proprietário não formalmente parte no processo defenda seus direitos contra atos de penhora, arresto ou qualquer outro tipo de apreensão judicial de bens. A finalidade dos embargos de terceiro é evitar que a execução prejudique direitos de quem não figurou na relação processual original.

No contexto da pequena propriedade rural, quando um possuidor que exerce a posse mansa e pacífica do imóvel é surpreendido com a penhora do bem, ele pode e deve utilizar os embargos de terceiro para arguir a impenhorabilidade do imóvel, com base na proteção constitucional e infraconstitucional que essa categoria de bem possui.

5.2. Procedimento para a interposição dos embargos de terceiro

O possuidor deve apresentar os embargos de terceiro ao juízo responsável pela execução, dentro do prazo estabelecido pelo CPC/15, tão logo tenha conhecimento do ato constritivo. O possuidor deve demonstrar:

  1. Legitimidade ativa: Embora não conste no registro do imóvel como proprietário, o possuidor pode comprovar sua condição mediante documentos que evidenciem a posse e o uso do imóvel para fins de moradia e sustento familiar. Exemplo disso são contratos de arrendamento, recibos de pagamento de tributos como o ITR - Imposto Territorial Rural, e declarações de vizinhos atestando o exercício da posse.
  2. Impenhorabilidade da pequena propriedade rural: Nos embargos de terceiro, o possuidor deve invocar a proteção prevista no art. 833, VIII, do CPC/15 e no art. 5º, XXVI, da Constituição Federal, argumentando que, ainda que não seja o proprietário registral, o imóvel deve ser protegido contra a penhora em razão de sua condição de pequena propriedade rural trabalhada pela família.
  3. Prova do exercício da posse: A posse deve ser demonstrada de forma clara, por meio de documentos e testemunhas, que comprovem o uso contínuo e pacífico do imóvel para atividade rural e residência familiar. Documentos fiscais, comprovantes de pagamento de tributos, e testemunhos de vizinhos e funcionários podem reforçar a alegação.

5.3. Consequências da procedência dos embargos de terceiro

Caso os embargos de terceiro sejam julgados procedentes, o juiz determinará a desconstituição da penhora, liberando o imóvel da execução. Este resultado não apenas protege o possuidor do ato constritivo, mas também reafirma a aplicabilidade das normas constitucionais e infraconstitucionais de proteção à pequena propriedade rural.

Além disso, a procedência dos embargos poderá fortalecer a posição do possuidor em futuras ações, como uma eventual usucapião, consolidando seu direito de propriedade sobre o bem, com todos os benefícios e proteções que a propriedade rural impenhorável acarreta.

6. Conclusão

O estudo demonstrou que a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, prevista na legislação brasileira, pode ser arguida pelo possuidor do imóvel, desde que este cumpra a função social da propriedade e utilize o bem como meio de subsistência familiar. A interpretação da norma deve ser ampliada para incluir o possuidor que, embora ainda não tenha formalizado a propriedade, já preenche os requisitos para usucapir o imóvel. Esta abordagem é coerente com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade, garantindo assim a proteção necessária ao trabalhador rural e à sua família.

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BRASIL. Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017. Altera o sistema de usucapião extrajudicial e outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 2017.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 2015.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil. 9. ed. São Paulo: RT, 2020.

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Superior Tribunal de Justiça - STJ. REsp 1.598.781/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 2016.

Thágatty Carneiro

Thágatty Carneiro

Advogado no escritório João Domingos Advogados.

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