As concessionárias de rodovia, o julgamento do Tema 1.122 pelo STJ e o risco de erosão dos pressupostos da responsabilidade civil
Este artigo tem por finalidade demonstrar que a solução do Tema 1.122 pelo STJ, para além da questão delimitada, terá o condão de conter, ou injetar, insegurança no ordenamento jurídico.
terça-feira, 20 de agosto de 2024
Atualizado em 19 de agosto de 2024 11:24
O Brasil é um país de extensão continental e possui a quarta maior malha viária do mundo, com mais de 1,7 milhão de quilômetros de estradas, que cruzam regiões diversas, viabilizando o transporte de pessoas e bens, assim como o escoamento de parte relevante da produção nacional.
À luz do art. 99, do Código Civil, as estradas "são bens públicos de uso comum do povo", de modo que a sua gestão caberia, a princípio, ao Poder Público. No entanto, dada a falta de recursos federais e estaduais para manutenção, recuperação, melhoria e expansão da malha viária, arquitetou-se, na década de 90, a implantação do Programa de Concessões de Rodovias.
Por meio do Programa de Concessões, implementado no ano de 1997, com base na lei geral de concessões (lei 8.987/95), o Poder Público, diretamente ou através das suas agências reguladoras, nas esferas Federal e Estadual, passou a promover a concessão de rodovias à iniciativa privada.
Os leilões, desde àquela época, visavam a seleção de empresas que não fossem apenas tecnicamente habilitadas, mas também capazes de explorar o serviço público - garantindo a manutenção, recuperação, melhoria e expansão da malha viária - mediante a menor contraprestação tarifária possível pelos usuários, a fim de atender, a um só tempo, aos princípios da eficiência e da modicidade tarifária, consagrados na Constituição Federal e na lei geral de concessões.
Como se sabe, os contratos de concessão contemplam custos fixos de gestão das rodovias bastante elevados.
Neste cenário, a prévia definição das obrigações a serem cumpridas pela Concessionária é medida elementar para que o Contrato de Concessão cumpra a sua finalidade, qual seja: conferir maior eficiência ao serviço público com o menor impacto financeiro aos usuários.
Ao longo de anos, múltiplos Contratos de Concessão foram celebrados entre o Poder Público e empresas privadas, estabelecendo direitos e obrigações às Concessionárias, para balizar a sua atuação e conferir previsibilidade jurídica e financeira diante da matriz econômico-financeiro previamente definida.
Dentre as diversas obrigações estabelecidas pelo Poder Público às Concessionárias, é ponto comum a adoção de medidas fiscalizatórias para atenuar o risco de acidentes de trânsito de todas as espécies, seja entre veículos, entre veículos e objetos, entre veículo e animais etc.
Regra geral, como a ocorrência de acidentes envolve múltiplos fatores de risco, inclusive relacionados à conduta dos condutores e de terceiros, o dever contratual fiscalizatório da Concessionária fica adstrito às medidas que são efetivamente passíveis de cumprimento à luz da matriz econômica-financeira do Contrato de Concessão e de aspectos materiais da realidade subjacente.
A propósito, as Concessionárias não têm condições de controlar a mente humana, tampouco de aportar investimentos a ponto de garantir o isolamento completo da rodovia ou a supervisão metro a metro, segundo a segundo, de todas as intercorrências passíveis de ocorrer ao longo da extensão rodoviária.
Não por outra razão, os Contratos de Concessão costumam exigir:
- A manutenção da malha viária em condições de trafegabilidade;
- Monitoramento da rodovia por meio de rondas veiculares periódicas;
- Manutenção de um Sistema de Atendimento aos Usuários;
- Instalação de placas de sinalização vertical e horizontal, contendo informações sobre velocidade, aclives, declives e risco de animais;
- Adoção de medidas de conscientização aos transeuntes e proprietários de imóveis lindeiros;
- Comunicação às autoridades competentes que, em exercício do Poder de Polícia, possam intervir para a apreensão de animais.
Sucede que, mesmo quando comprovam o cumprimento de todos as obrigações regulatórias e contratuais atinentes ao dever fiscalizatório, as Concessionárias de Rodovia vêm enfrentando uma situação inusitada.
Precedentes judiciais ensejaram a multiplicação de pleitos de responsabilização civil por acidentes entre veículos e animais domésticos, sob alegação de "omissão na prestação de serviço adequado".
A discussão ganhou relevo e o STJ selecionou o REsp 1.908.738, representativo da controvérsia, para pacificar a seguinte questão:
Tema 1.122: (a) responsabilidade (ou não) das concessionárias de rodovia por acidente de trânsito causado por animal doméstico na pista de rolamento; e (b) caráter objetivo ou subjetivo dessa responsabilidade à luz do CDC e da lei das concessões.
Espera-se que, ao julgar o caso, o STJ enfrente a questão da responsabilidade civil (ou não) da Concessionária a partir dos seus pressupostos obrigatórios, quais sejam: (i) a existência de ação ou omissão que configure ilícito; (ii) a culpa ou dolo do agente (caso de responsabilidade subjetiva); (iv) o nexo causal entre a conduta e o resultado; e (iii) o dano. Deixando de identificar qualquer um dos pressupostos obrigatórios, não deve haver responsabilização civil.
É, portanto, imprescindível que para configuração da responsabilidade civil ou sua exclusão na hipótese, sejam ponderadas as condições fáticas e jurídicas das operações das Concessionárias, porquanto o seu dever fiscalizatório encontra limites materiais e financeiros que tornam impossível o monitoramento onipresente e temporalmente instantâneo de milhares de quilômetros de rodovias, tampouco a retirada imediata, no mesmo milissegundo, de qualquer animal doméstico que venha a invadir qualquer trecho da rodovia.
Trata-se de obrigação que jamais poderia ser suportada pelas concessionárias, pois simplesmente não está estabelecida em nenhum contrato de concessão ou sequer na lei de concessões. Além disso, contraria a lógica econômico-financeira da relação contratual, pois resultaria em um custo fixo estratosférico e, portanto, impossível de ser equalizado com a inegociável modicidade tarifária em prol dos usuários.
Dentre as obrigações transferidas pelo Poder Concedente às Concessionárias não se inclui a de "seguradoras universais" de todo e qualquer acidente ocorrido nas rodovias, sob pena da inviabilidade do próprio programa de concessões.
Nesse sentido se posiciona parcela dos Tribunais:
"Conquanto inegável o dever específico do DEER/MG de adotar todas as medidas necessárias e possíveis para assegurar o tráfego seguro de veículos pela rodovia estadual, não se pode atribuir-lhe, no caso concreto, a responsabilidade pelo acidente causado por cachorro que adentrou a via. Prevenção do dano que exigiria a adoção de medidas irrazoáveis por parte do poder público, tal como fiscalização ininterrupta e ao longo de toda a extensão da rodovia." TJ/MG - AC: 10000205416126001 MG, relator: Áurea Brasil, Data de Julgamento: 12/11/20, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 17/11/20.
"A invasão de pequenos animais na pista configura situação que está fora do controle de fiscalização da concessionária, [...] além da realização de monitoramento contínuo no trecho respectivo, não se mostra juridicamente possível sua responsabilização pecuniária ante o reconhecimento da ocorrência de caso fortuito." [...] (TJ/SC - RI: 03223972720178240038 Joinville 0322397-27.2017.8.24.0038, relator: Davidson Jahn Mello, Data de Julgamento: 23/7/20, 1ª turma recursal) (Destacou-se).
Já na esfera do nexo causal, o cumprimento das medidas previstas nos Contratos de Concessão é suficiente para afastar qualquer cogitação de vício nos serviços das Concessionárias (§ 3º, I, do art. 14 do CDC), especialmente quando a Lei impõe (i) às Polícias Rodoviárias a obrigação de apreender eventuais animais que "se encontrem soltos nas vias e na faixa de domínio das vias de circulação" (arts. 20, 21 e 269, X, do CTB); e (ii) aos proprietários de animais a responsabilidade (§ 3º, I, do art. 14 do CDC) pelos danos por eles causados (art. 936, do Código Civil).
A "erosão" dos filtros da responsabilidade civil constitui mola propulsora de uma litigiosidade crescente, erigida sobre a ideia de que o só fato de haver experimentado um dano autoriza alguém a demandar de outrem reparação, mesmo na total ausência de ato ilícito e nexo de causalidade entre a conduta e o dano. A solução do Tema 1.122 portanto, para além da questão delimitada, terá o condão de conter, ou injetar, insegurança jurídica no nosso ordenamento.
Alexandre Cunha de Andrade
Advogado, atuante na área de Concessões e Infraestrutura, sócio do Fraga & Trigo Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e em Direito e Gestão Imobiliária pela Faculdade Baiana de Direito.