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Despersonalização do Direito Civil: O surgimento da persona digital

A transformação digital está redefinindo o Direito Civil, levantando questões sobre autonomia da vontade, execução automatizada e os desafios regulatórios dos contratos inteligentes. Entenda os riscos e oportunidades desta nova era jurídica.

domingo, 18 de agosto de 2024

Atualizado em 16 de agosto de 2024 09:43

O neoconstitucionalismo, surgido no cenário jurídico pós-segunda guerra mundial, marca uma nova fase na interpretação e aplicação do Direito, com profundos reflexos na constitucionalização do Direito Civil. Essa corrente filosófico-jurídica caracteriza-se pelo reconhecimento da força normativa dos princípios e valores constitucionais, atribuindo-lhes primazia sobre as regras jurídicas positivadas e sobre o próprio Direito Civil enquanto campo autônomo.

A importância conferida aos princípios, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade e a função social da propriedade, reflete uma concepção de Direito mais aberta à influência de valores morais e sociais. Tal abordagem permite uma hermenêutica jurídica que transcende a mera aplicação mecânica das leis, favorecendo uma interpretação mais dinâmica e adaptável às complexidades das relações sociais contemporâneas.

O processo de constitucionalização do Direito Civil evidencia a inserção desses princípios constitucionais nas relações privadas, redefinindo o papel das normas civis. O Código Civil, tradicionalmente visto como a "Constituição" do direito privado, deixa de ser o único referencial para a regulação das relações civis, cedendo espaço para uma normatividade constitucional que orienta e condiciona a interpretação e aplicação das leis civis. Isso se manifesta na reinterpretação de institutos clássicos do Direito Civil, como contrato, propriedade e família, sob a ótica dos valores e princípios constitucionais.

A adoção desse enfoque não apenas enriquece a análise jurídica, mas também promove uma maior justiça nas relações civis, ao garantir que a aplicação do Direito Civil esteja alinhada com os objetivos maiores da ordem constitucional. A necessidade de harmonizar os interesses individuais com os valores sociais e coletivos implica uma transformação na compreensão e na prática do Direito Civil, que passa a incorporar considerações éticas e sociais de maior envergadura.

No entanto, essa abertura do Direito Civil aos princípios constitucionais não está isenta de desafios. A indeterminação e a abstração, características intrínsecas dos princípios, podem conduzir a uma certa imprevisibilidade nas decisões judiciais, exigindo dos operadores do direito uma capacidade de ponderação e de equilíbrio entre os interesses em jogo. Esse cenário demanda dos juristas uma profunda compreensão dos princípios constitucionais e da sua aplicação prática, além de uma constante reflexão sobre o papel da justiça civil na promoção de uma sociedade mais justa e solidária.

Autonomia da vontade e os contratos inteligentes

No cenário contemporâneo, a autonomia da vontade e a concepção de contratos inteligentes redefinem as fronteiras do Direito Civil, apresentando novas perspectivas sobre a forma como as partes manifestam suas vontades e sobre o papel da tecnologia na execução dos acordos. A evolução tecnológica, especialmente a blockchain e os smart contracts, instaura um paradigma onde a execução contratual é automatizada, desafiando os princípios clássicos da autonomia da vontade sob uma nova luz.

A autonomia da vontade, princípio basilar do Direito Contratual, sustenta que as partes têm liberdade para estipular, dentro dos limites da lei, as cláusulas de seus contratos. Tradicionalmente, esse princípio reflete a liberdade individual e a igualdade das partes na negociação. Contudo, os contratos inteligentes, enquanto expressões da vontade codificada e autoexecutáveis, introduzem uma dimensão adicional à autonomia da vontade, colocando em evidência a precisão e a inalterabilidade das condições previamente estabelecidas pelas partes.

Esta nova configuração implica que, uma vez que as condições do contrato são programadas e inseridas na blockchain, elas se tornam imutáveis e a execução do contrato ocorre automaticamente quando as condições predefinidas são atendidas. Essa característica fundamental dos contratos inteligentes reforça o princípio do "pacta sunt servanda" (os acordos devem ser mantidos), garantindo uma maior segurança jurídica através da prevenção de descumprimentos contratuais. Por outro lado, levanta questionamentos acerca da flexibilidade contratual e da capacidade das partes de adaptar-se a circunstâncias imprevistas ou alterar os termos do acordo post facto.

O debate em torno da autonomia da vontade nos contratos inteligentes centra-se, portanto, na tensão entre a rigidez da execução contratual automatizada e a necessária flexibilidade para acomodar nuances e complexidades inerentes às relações humanas. Críticos apontam para a possibilidade de situações injustas decorrentes da rigidez dos termos programados, que podem não prever todas as variáveis relevantes ou adaptar-se a mudanças contextuais significativas. Por outro lado, defensores enfatizam a eficiência, a redução de custos e a maior segurança proporcionadas pela automação e pela imutabilidade das condições contratuais.

A questão fundamental reside em como harmonizar a essencial liberdade contratual com as inovações trazidas pelos contratos inteligentes, garantindo que tais instrumentos sirvam aos interesses das partes sem comprometer os princípios éticos e jurídicos fundamentais. Isso requer uma reflexão aprofundada sobre a natureza da autonomia da vontade na era digital, contemplando tanto a potencialidade dos contratos inteligentes para promover transações mais seguras e eficientes quanto os riscos associados à sua rigidez e à despersonalização das relações contratuais.

A (des)personalização do Direito Civil e os desafios da regulação

A despersonalização do Direito Civil, impulsionada pela emergência de tecnologias disruptivas como os contratos inteligentes, traz à tona desafios regulatórios significativos. Essa nova realidade, caracterizada pela automação e pela execução autônoma de acordos, levanta questões cruciais sobre a adequação dos marcos regulatórios existentes e a necessidade de novas abordagens normativas para abraçar a complexidade das relações jurídicas digitais.

Os desafios da regulação nesse contexto são multifatoriais. Primeiramente, existe a questão da jurisdicionalidade dos contratos inteligentes: até que ponto o ordenamento jurídico atual pode acomodar mecanismos de execução contratual que operam independentemente da intervenção humana ou judicial? Tradicionalmente, o sistema legal provê mecanismos de interpretação e revisão contratual, permitindo ajustes em face de imprevistos ou injustiças. Os contratos inteligentes, por outro lado, são executados de maneira rigorosamente aderente aos termos pré-programados, o que pode limitar a flexibilidade necessária para ajustar acordos à luz de circunstâncias imprevistas ou alterações legislativas.

Além disso, a incorporação de princípios éticos e jurídicos em algoritmos de contratos inteligentes apresenta um desafio regulatório ímpar. Como garantir que esses contratos não apenas cumpram com a letra da lei, mas também reflitam os valores e princípios subjacentes ao Direito Civil, como justiça, equidade e boa-fé? Essa preocupação se estende à necessidade de proteção contra práticas abusivas ou a exploração de assimetrias informativas, especialmente em relações que envolvem consumidores e grandes corporações.

O desafio se intensifica com a consideração da autonomia da vontade em ambientes digitais. A natureza despersonalizada dos contratos inteligentes e a redução do contato humano na formação do contrato podem levar a uma percepção distorcida da autonomia, onde as partes, especialmente a mais fraca, podem não ter plena compreensão ou controle sobre os termos aos quais estão concordando. Assim, a regulação deve buscar formas de assegurar que a autonomia da vontade seja genuinamente preservada e que os contratos inteligentes sejam formados e executados de maneira que as partes tenham clareza e justiça em suas relações.

A resposta a esses desafios passa pela elaboração de um marco regulatório que reconheça e se adapte às peculiaridades dos contratos inteligentes e outras tecnologias emergentes. Isso pode incluir a criação de padrões e protocolos para a programação de contratos inteligentes, assegurando que estes incorporam mecanismos para a resolução de disputas, a revisão de termos e a adaptação a mudanças nas circunstâncias ou na lei. Ademais, é imperativo o desenvolvimento de estruturas de governança que promovam a transparência, a accountability e a ética na aplicação dessas tecnologias.

Análise final

A Justiça Brasileira enfrenta o desafio de adaptar-se à nova realidade trazida pela digitalização e pela emergência da persona digital, marcada por avanços tecnológicos e mudanças nas relações sociais. Isso exige uma profunda reflexão sobre como o sistema jurídico deve responder às transformações, garantindo a eficácia do Direito e a proteção dos direitos fundamentais. A interpretação e aplicação de princípios tradicionais do Direito Civil devem considerar as novas formas de interação mediadas pela tecnologia, reconhecendo os direitos e obrigações da persona digital. Além de atualizações tecnológicas, é necessário um paradigma jurídico dinâmico, que incorpore avanços tecnológicos sem comprometer valores fundamentais. A criação de marcos regulatórios e práticas judiciárias que refletem a realidade digital, juntamente com a colaboração entre juristas, tecnólogos, legisladores, e a sociedade, é essencial para promover a inovação responsável e a inclusão digital. Esse processo reflete o compromisso com a justiça social em uma sociedade cada vez mais digitalizada, desafiando a Justiça Brasileira a evoluir para garantir a legalidade e a legitimidade na era digital.

Gilmara Nagurnhak

VIP Gilmara Nagurnhak

Pós Graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil Pós Graduanda em Direito Tributário Uma advogada apaixonada pelo mundo empresarial!

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