SAF - O novo regime societário para clubes de futebol
Por ser uma atividade com especificidades próprias, se faz necessário a administração pública ter uma agência reguladora da indústria do futebol ou departamento de fiscalização integrado entre a Receita Federal e o Banco Central
sábado, 10 de agosto de 2024
Atualizado em 9 de agosto de 2024 15:16
1- introdução
É histórico no Brasil o problema da relação econômica dos clubes de futebol com a sociedade no que tange a pagamento de impostos, responsabilidade dos administradores e gestão profissional.
Sempre foi desejo da sociedade e das autoridades transformar os clubes de futebol em empresas. Atualmente, a maior parte dos clubes de futebol profissionais são associações, organizadas na forma de pessoas jurídicas sem fins lucrativos.
2- Contexto Legal histórico
A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 217, regulamentou o desporto como promoção social e também atribuiu autonomia às entidades desportivas. O Brasil tinha saído do regime autoritário, em que o Estado tinha interferência total nas entidades e o Constituinte optou pelo regime da independência, gerando uma ruptura ao modelo de sistema desportivo que vigorou por décadas. Antes desta ruptura, o CND - Conselho Nacional de Desporto, exercia a máxima intervenção estatal no desporto.
Com o princípio da autonomia das entidades e a prerrogativa jurídica previstos na Constituição, estas puderam organizar suas regras, sua forma de funcionamento, seus campeonatos e modelo de gestão, mas lógico, sempre fundadas na legislação do Estado e tratando o esporte como direito fundamental.
O Constituinte deixou um grande marco, rompendo a interferência estatal que teve por anos. Hoje temos um campeonato brasileiro organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com 20 equipes participando, jáconsolidado com suas regras e regulamentos contra um campeonato que foi criado na década de 1970, chegou a ter um campeonato brasileiro com 94 equipes, no ano de 1979, em um processo de ampliação dos participantes, incrementado a partir da chegada do Almirante-dirigente Heleno Nunes ao comando da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) após a saída de João Havelange.
A chamada Lei Pelé (nº 9.615/98), promulgada no governo de Fernando Henrique Cardoso pelo então Ministro Extraordinário dos Esportes, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, balançou o futebol nacional e os clubes profissionais, além de alterar a relação entre atleta e clube, com a extinção do "passe", iniciando assim, um novo relacionamento de relações de trabalho e negociações entre os clubes, além de tantas outras alterações significativas ao sistema vigente naquele momento.
De todas as alterações, a de maior relevância, era a prevista no artigo 27 do texto original da Lei Pelé,que assustou futebol nacional, ao estabelecer a obrigatoriedade de os clubes de futebol participantes de competições profissionais adotarem uma das formas empresariais estabelecidas no Código Civil, abandonando o modelo associativo, utilizado pela grande maioria dos clubes. Para tanto,seria concedido prazo de dois anos contados da entrada em vigor da norma para constituir o chamado clube-empresa.
O futebol brasileiro, através dos seus dirigentes, resistiu como pôde às mudanças propostas pela Lei Pelé. No caso da obrigatoriedade de criação do clube-empresa, o enfrentamento à norma se deu com a alegação da interferência do Estado nas organizações, fundamentado no argumento da inconstitucionalidade, em face da disposição contida no artigo 217, I, da Constituição Federal, que confere autonomia de organização e funcionamento às entendidas esportivas, como tratado no início.
Muitos atribuem à Lei Pelé terem os Clubes perdido o benefício da geração dos atletas para os intermediários, hoje os maiores beneficiários da lei. Segundo estes críticos, a Lei Pelé teria sido responsável pelo empobrecimento da qualidade do futebol, por desestimular nos clubes, mesmo os pequenos, o investimento na formação de atletas.
Com essa pressão da "sociedade do futebol" no ano 2000, com mais de dois anos após a entrada em vigor da Lei Pelé, diversos dos seus dispositivos originais foram modificados pela Lei 9.981/2000.
No caso específico do artigo 27, a Lei 9.981/2000 revogou a obrigatoriedade de constituição do clube-empresa, tornando-a facultativa.
Alguns clubes do futebol nacional, concordando com a adoção do clube-empresa, alteraram sua forma de constituição. São os casos do Vitória da Bahia, Paulista de Jundiaí, São Caetano FC, e outros.
Mesmo tornando facultativa, o §2º do art. 27 da Lei 9.981/2000, trouxe um grande complicador para transformação das associações em clube-empresa: a obrigatoriedade de realizar assembleia dos sócios, com concordância da maioria absoluta do quadro associativo, o que tornava muito difícil se realizar, principalmente nos grandes clubes com quadro associativo elevado.
O outro grande complicador era o regime de tributação. Quem sairia de um regime isento, tratamento dado para as associações civis, para um regime de tributação adotado para as empresas, lucro real ou lucro presumido?
Alguns clubes, como o Vitória da Bahia, que tinha se transformado em clube empresa, reverteu a transformação pela questão tributária. Não era possível disputar campeonatos contra equipes que não eram tributadas pelo seu regime societário, e continuar desembolsando grandes valores com impostos e tributos. Tratar-se-ia, pois, de uma disputa desleal, um desequilíbrio na competição.
3- Crise nos clubes e entidades no Brasil
É histórica no Brasil a crise econômica dos clubes de futebol tendo em vista o não pagamento de verbas trabalhistas, com inúmeros processos e acordos;não pagamento de impostos, inclusive os de retenção na fonte, oque configura crime de apropriação indébita; dívidas financeiras com instituições públicas e antecipações futuras de venda de direitos. Como o futebol é uma paixão nacional, também é histórico o auxílio do Estado aos clubes, haja vista os inúmeros benefícios que já foram criados;vantagens que o setor privado não tem.
Nesta esteira, a lei 10.671/2002 instituiu o Estatuto do Torcedor, que prevê várias exigências para as organizações de campeonatos e relacionamento com o torcedor, bem como estabelece alguns incentivos para adoção destas práticas.
A lei 11.345/2006 institui a Timemania, que é uma loteria organizada pela Caixa Econômica Federal para arrecadar valores e quitar os débitos tributários dos times de futebol. Assim, valores que não passavam pelo caixa dos clubes, eram abatidos diretamente do débito.
A lei 12663/12, por sua vez, ficou conhecida como a "Lei Geral da Copa", que prevê inúmeras anistias e renúncia fiscal com o objetivo de organização da Copa das Confederações de 2013 e Copa do Mundo de 2014. Fora aprovada sob o argumento de sanear o futebol brasileiro no seu passado, através de recursos e legado que a FIFA deixaria no país.
Por fim, a lei 13.155/2015 instituiu o Profut, que é o programa de regularização do futebol brasileiro, com princípios e práticas de responsabilidade financeira, fiscal e governança dos clubes de futebol.
Como se vê, mesmo com inúmeras soluções e benefícios, os clubes de futebol não organizaram suas finanças e continuam endividados.
4- Autorregulamentação
O melhor caminho para não ter intervenção estatal nas entidades é a sua regulamentação própria, sem necessidade de leis que as disciplinem.
Na Europa, a Uefa, entidade que organiza os campeonatos europeus, implantou no ano de 2009, às suas normas de licença de clubes, o chamado "fair play financeiro", que são critérios que estabelecem padrões mínimos de infraestrutura, capacitação, certificados e gestão a serem seguidos pelos clubes filiados. Com o não cumprimento destas normas o clube é proibido de participar das competições.
Este é um ótimo caminho, mas no Brasil não há normas de licenciamento pelas entidades e o Estado sempre termina intervindo no futebol, para amenizar os erros na gestão.
5- A SAF - Sociedade Anônima de Futebol
"O futebol não pode ficar só nas páginas do esporte, precisa ir para as páginas da economia também."
Assim falou o Senador Carlos Portinho, que foi o relator do PL 5516/19, que institui a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei 14.193/2021.
Incluiríamos que o futebol precisava sair das páginas policiais, haja vista matéria sobre o Cruzeiro de MG, que foi divulgada no Fantástico, da Rede Globo de Televisão, em que mostrava a Polícia Federal concluindo a investigação por suspeita de crimes praticados pelos gestores da associação civil.
Desenvolver um novo modelo societário e organizacional dos clubes de futebol brasileira é um sonho antigo, pois transformá-los em clube-empresa era uma necessidade e pedido da sociedade brasileira, que tem a maioria dos clubes organizados como associações sem fins lucrativos.
A lei da SAF prevê uma forma específica de sociedade anônima exclusivamente para o futebol, complementando a lei geral das sociedades anônimas de 1976, lei 6.404/76.
Sendo assim,as SAFs estão sujeitas à Lei 14.193 aprovada em 2021e, automaticamente, à lei geral de sociedades anônimas, às normas gerais do desporto e, respeitando a hierarquia das normas do direito brasileiro, ao Código Civil e à Constituição Federal.
Em outras palavras, além da lei regulamentar a gestão de clubes de futebol, ela cria um modelo jurídico específico para esta atividade, que difere das atividades comerciais, industriais e de serviços abrangidas pela lei das sociedades anônimas.
A nova lei é organizada em três capítulos: o primeiro trata da sua constituição, regime de execução e recuperação judicial e extrajudicial, modelo de governança, obrigações e quitação dessas obrigações; o capítulo segundo trata das disposições especiais como programa de desenvolvimento educacional e regime específico de tributação, e o terceiro elenca as disposições finais.
Assim, lei da SAF teve como objetivo tornar os clubes de futebol economicamente interessantes, cativando investidores, tendo no seu objeto social específico a prática de futebol profissional masculino e feminino, nos termos do artigo 1º, §2º:
§ 2º O objeto social da Sociedade Anônima do Futebol poderá compreender as seguintes atividades:
I - o fomento e o desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática do futebol, obrigatoriamente nas suas modalidades feminino e masculino;
II - a formação de atleta profissional de futebol, nas modalidades feminino e masculino, e a obtenção de receitas decorrentes da transação dos seus direitos desportivos;
III - a exploração, sob qualquer forma, dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade ou dos quais seja cessionária, incluídos os cedidos pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu;
IV - a exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol;
V - a exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos;
VI - quaisquer outras atividades conexas ao futebol e ao patrimônio da Sociedade Anônima do Futebol, incluída a organização de espetáculos esportivos, sociais ou culturais;
VII - a participação em outra sociedade, como sócio ou acionista, no território nacional, cujo objeto seja uma ou mais das atividades mencionadas nos incisos deste parágrafo, com exceção do inciso II.
Portanto, com a lei da SAF passamos a ter no nosso ordenamento jurídico uma modalidade societária com o fim específico de atender as demandas do futebol profissional competitivo, não podendo ser utilizado para outro ramo da economia.
5.1- Constituição da Sociedade
A lei da SAF não obriga a transformação de associação civil em SAF, sendo este um dos principais pontos da lei que deixou a escolha para o quadro associativo e possíveis investidores.
Aliás, pela legislação brasileira, o clube de futebol pode ser sociedade anônima ou limitada, como previsto na lei 6.404/76, pode ser associação civil, e agora pode ser SAF, sendo livre a escolha do modelo societário para o investidor ou sócios.
A SAF passa a ser um novo ordenamento jurídico na constituição de novas empresas para o futebol, transformação por completo ou cisão de associações já existentes.
A sua constituição ou transformação foi regulamentada no artigo 2º:
A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:
I - pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol;
II - pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol;
III - pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
Vejam que o inciso III permite que uma pessoa natural constitua sua sociedade de futebol, mas o mais importante no texto legal foi a regulamentação da transformação de um clube de futebol com regime de associação civil em sociedade do futebol, atendendo aos interesses dos sócios desta associação civil e de acordo com o estatuto que o rege. O inciso II permite a esta associação civil separar, cindir o futebol das demais atividades esportivas e transformar somente esta parcela em SAF, para atender à exigência de objeto social como previsto no artigo 1º da lei, cujo objetivo principal é fomentar o futebol.
5.2 - Governança nas Sociedades Anônimas do Futebol
Comparando com o universo das gestões nas associações dos clubes de futebol, este é o item de maior avanço, com muito rigor nas práticas de governança. As regras de gestão e governança tornam mais rígidas na sociedade anônima do futebol, com a finalidade de evitar conflitos, assegurar uma maior transparência e regular a administração individual em face dos interesses coletivos para a empresa, havendo a obrigatoriedade de cumprimento de todo o ordenamento jurídico aplicado às sociedades do setor privado e com responsabilidade dos seus administradores na esfera cível, respondendo inclusive com seu patrimônio pessoal.
Evidentemente, há associações civis que são premiadas por sua gestão com alta performance e sistema de governança de excelência, mas tratam-se de exceções, principalmente porque há um sistema político por trás, com eleição de diretoria executiva para exercer os cargos de gestão.
Na SAF não há sistema político, pois o investidor-sócio passa a ser o responsável pelo gestor para profissionalização da governança visando maximização do seu lucro e retorno do capital investido nos moldes das demais empresas regulamentadas pela lei das sociedades anônimas.
Passa a ser importante ao sócio investidor, além da montagem de um time vencedor dentro do campo, aquele cuja torcida gosta e quer para fazer gols, ganhar jogos e campeonatos; um time de campeões em gestão, profissionais que trazem resultado, fazendo da governança um papel fundamental na estrutura da SAF, de modo que novos investidores integrem o grupo de acionistas não só pelo resultado dentro de campo, mas sim pelo resultado financeiro da empresa.
A lei é rígida: exige maior transparência e por este motivo possui regras específicas para a administração previstas do seu artigo 4º ao 8º.
O acionista controlador da Sociedade Anônima do Futebol não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra SAF, inclusive para evitar conflito de interesses e combinação de resultados para benefício próprio. É um ponto muito importante: imaginem um time A com o dono X, jogando contra o time B do mesmo dono X. A lei se preocupou com isso e não permitiu a participação do mesmo acionista em equipes diferentes.
Na SAF é obrigatória a criação do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal com regras próprias e exigências rígidas como, por exemplo, atletas e árbitros em atividades ou pessoas que integram entidades de desporto não podem ser membros.
A lei diferenciou Sociedade Anônima de Futebol com receita anual de R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões), correspondendo a R$ 6.500.000,00 (seis milhões e quinhentos mil) por mês, prevendo alguns benefícios para atender as exigências da lei das sociedades anônimas (lei 6.404/76). Distingue, portanto, empresa de pequeno porte da de grande porte, ou,no caso, clube pequeno e clube grande. Portanto, o Clube grande que se transforma ou se constitui em SAF tem que cumprir todas as exigências previstas na lei das sociedades anônimas, como as publicações de demonstrações financeiras e outras.
5.3 - TEF - Regime de Tributação Específica do Futebol
O artigo 31º da lei prevê a solução do grande problema da lei Pelé, que inicialmente exigiu a obrigação da constituição de clube empresa com tributação plena, contra a associação civil, sem tributação. Neste artigo há a previsão do regime tributário específico para as SAFs, ou seja, para os clubes de futebol:
Art. 31. A Sociedade Anônima do Futebol regularmente constituída nos termos desta Lei fica sujeita ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF). (Promulgação partes vetadas)
§ 1º O regime referido no caput deste artigo implica o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições, a serem apurados seguindo o regime de caixa:
I - Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);
II - Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep);
III - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL);
IV - Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e
V - contribuições previstas nos incisos I, II e III do caput e no § 6º do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Lei da Seguridade Social.
O artigo 32º determina a alíquota do imposto e a base de cálculo para o devido recolhimento aos cofres públicosem guia única, na modalidade do já existente Simples Nacional:
Art. 32. Nos 5 (cinco) primeiros anos-calendário da constituição da Sociedade Anônima do Futebol ficará ela sujeita ao pagamento mensal e unificado dos tributos referidos no § 1º do art. 31 desta Lei, à alíquota de 5% (cinco por cento) das receitas mensais recebidas. (Promulgação partes vetadas)
§ 1º Para fins do disposto no caput deste artigo, considera-se receita mensal a totalidade das receitas recebidas pela Sociedade Anônima do Futebol, inclusive aquelas referentes a prêmios e programas de sócio-torcedor, excetuadas as relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.
§ 2º A partir do início do sexto ano-calendário da constituição da Sociedade Anônima do Futebol, o TEF incidirá à alíquota de 4% (quatro por cento) da receita mensal recebida, compreendidos os tributos referidos no § 1º do art. 31 desta Lei, inclusive as receitas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.
A lei prevê o Recolhimento de 5% do total da receita bruta mensal nos primeiros 5 anos e depois a alíquota é reduzida para 4%.
Trata-se de mais um benefício fiscal ao futebol, pois nenhuma outra atividade empresarial com porte de faturamento dos clubes de futebol tem uma tributação tão baixa. Comparando, entretanto, com a tributação das associações civis, há um ganho ao Estado, com recebimento maior de tributos do que o que recebe das associações civis e previsão da responsabilidade tributária das SAFs.
Espera-se com isso que os clubes de futebol, através das SAFs, possam cumprir com suas obrigações tributárias e não precisem mais do socorro do Estado em questões fiscais.
5.4- PDE-Programa de Desenvolvimento Educacional e Social
A lei da SAF exige uma contrapartida para todas as sociedades que são constituídas ou convertidas para este regime societário, com benefício de tributação baixa.
Os artigos 28 e 29 regulamente quais são as contrapartidas sociais das SAFs:
Art. 28. A Sociedade Anônima do Futebol deverá instituir Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), para, em convênio com instituição pública de ensino, promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação.
§ 1º A Sociedade Anônima do Futebol poderá investir, no âmbito das obrigações do Plano de Desenvolvimento Educacional e Social, mas não exclusivamente:
I - na reforma ou construção de escola pública, bem como na manutenção de quadra ou campo destinado à prática do futebol;
II - na instituição de sistema de transporte dos alunos qualificados à participação no convênio, na hipótese de a quadra ou o campo não se localizar nas dependências da escola;
III - na alimentação dos alunos durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento;
IV - na capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para ministrar e conduzir as atividades no âmbito do convênio;
V - na contratação de profissionais auxiliares, especialmente de preparadores físicos, nutricionistas e psicólogos, para acompanhamento das atividades no âmbito do convênio;
VI - na aquisição de equipamentos, materiais e acessórios necessários à prática esportiva.
§ 2º Somente se habilitarão a participar do convênio alunos regularmente matriculados na instituição conveniada e que mantenham o nível de assiduidade às aulas regulares e o padrão de aproveitamento definidos no convênio.
§ 3º O Programa de Desenvolvimento Educacional e Social deverá oferecer, igualmente, oportunidade de participação às alunas matriculadas em escolas públicas, a fim de realizar o direito de meninas terem acesso ao esporte.
Sobre a obrigação de firmar convênios com o setor público, visando a formação escolar dos jovens, vale destacar a importância que o futebol tem de estar muito além do campo de jogo. Por ser o Brasil popularmente conhecido como o país do futebol, é necessário o atendimento aos jovens que sonham em se tornar jogadores profissionais de futebol e, haja vista a ilusão de ganhar dinheiro e dar uma condição financeira melhor para a família, torna-se necessário que eles sejam preparados para a sociedade, mesmo diante da frustração de não se profissionalizarem no futebol.
Art. 29. Além das obrigações constantes da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, para as entidades de práticas desportivas formadoras de atletas e das disposições desta Seção, a Sociedade Anônima do Futebol proporcionará ao atleta em formação que morar em alojamento por ela mantido:
I - instalações físicas certificadas pelos órgãos e autoridades competentes com relação à habitabilidade, à higiene, à salubridade e às medidas de prevenção e combate a incêndio e a desastres;
II - assistência de monitor responsável durante todo o dia;
III - convivência familiar;
IV - participação em atividades culturais e de lazer nos horários livres; e
V - assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças.
No artigo 29º a lei manteve as obrigações dos clubes de futebol na formação de atletas, conforme previsto na Lei Pelé, 9.615/98, transferindo as mesmas obrigações para as SAF e exigiu qualificação do centro de treinamento e alojamento para os jovens jogadores.
Portanto, a Sociedade Anônima de futebol tem responsabilidade total na formação dos jovens jogadores, proporcionando ao atleta em formação que morar no alojamento, que ela mantém, as condições adequadas de moradia. Busca-se, assim, evitar alojamentos inadequados como é possível encontrar em algumas associações civis.
5.5- Dívidas da Associação Civil
Este é o ponto crítico da lei da SAF para clubes que se convertem de Associação Cível para o regime de Sociedade Anônima do Futebol, principalmente após passados quase três anos da promulgação da lei e com várias adesões de alguns clubes que estavam endividados. Os credores criticam o prazo alongado e a dificuldade de recebimento.
A lei prevê a execução centralizada, disponibilizando em um único juízo as dívidas em execução para otimizar e simplificar o cumprimento dos acordos judiciais. É sabido que as más gestões do passado, com contratações de jogadores, períodos de crise, financiamentos com juros altos, despesas superiores ao arrecadado, sempre geraram endividamento e não cumprimento das obrigações por parte dos clubes.
Houve, pois, um divisor de águas: antes e depois da lei da SAF, concedendo um prazo para pagamento das dívidas do passado, sem interferir no dia a dia das finanças da nova sociedade.
As SAFs concedem uma oportunidade a muitos clubes para tentar se reestruturar e sair da crise. A transformação em clube empresa traz a possibilidade de os clubes recorrerem à recuperação judicial ou extrajudicial, instituto já previsto no ordenamento jurídico brasileiro e que concede prazo para sanear as finanças, sem impacto nos negócios e sem afetar o caixa diário, evitando bloqueio judicial e cobrança total da dívida.
Para os clubes é uma solução, mas para os credores é um problema, por alongar demais o prazo para recebimento, mesmo a lei definindo prioridades para recebimento, como idosos, gestantes e outros.
5.6 - Financiamentos das SAFs
Outra grande vantagem para a Sociedade Anônima de Futebol foi a possibilidade de captar recursos por meio de emissão de debêntures, denominadas "debêntures-fut", e com características próprias, conforme previsto no artigo 28º da lei.
A CVM - Comissão de Valores Mobiliários, que regula o mercado de capitais, já normatizou as SAFs, emitindo o Parecer de Orientação nº 41 com orientações ao mercado e aos investidores.
O importante é ser mais uma opção para captação de recurso com investidores, onde estes aplicariam seu capital quando enxergarem governança na sociedade e perspectiva de retorno no investimento.
6- Modelos no Exterior
A comunidade europeia já opera com clube empresa e investidores estrangeiros, permitindo aporte de capitais para incremento do elenco de jogadores de renome com valor patrimonial elevado.
A SAF criada no Brasil é similar ao modelo adotado em Portugal, onde foi criada a SAD - Sociedade Anônima Desportiva, com o objetivo de salvar os principais clubes portugueses que estavam endividados no fim do século passado, regime societário que foi implantado no ordenamento jurídico português em 1997.
7- Atualizações na Lei da SAF
Está em tramitação no Senado Federal o PL 2978/2023 de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, que usou da experiência dos modelos de SAF adotados e das primeiras decisões judiciais para justificar alguns ajustes na lei, com seguintes objetivos: i) dirimir dúvidas para atrair investimentos e permitir o desenvolvimento do futebol; ii) conciliar os interesses envolvidos e iii) reforçar a segurança jurídica dos contratos.
As alterações propostas buscam, portanto, aperfeiçoar a governança das entidades desportivas e resguardar os investidores, trazendo mais segurança jurídica no mercado de capitais.
8- Conclusões
Passados quase três anos da nova legislação das Sociedades Anônimas do Futebol, mais de cinquenta clubes aderiram a este novo regime societário e inúmeros outros de grande, médio e pequeno portetambém desejam fazê-lo, demonstrando, assim, que a lei, que atende a todos, foi aceita pela comunidade do futebol.
Também é notório o interesse de investidores, aportando mais capital na indústria do futebol e tendo um incremento de pessoas que nunca atuaram no ramo, participando com aporte de capital.
Com esta mudança não há outro caminho que não seja a governança profissional, modelo de gestão que também pode ser implantado no clube constituído em forma de Associação Civil pela concorrência entre eles no campo de jogo. Ter um time de futebol constituído na forma de SAF não é uma obrigação; tem suas vantagens e desvantagens, sendo o interessado quem vai optar pelo melhor modelo societário.
Vale ressaltar, entretanto, que ter gestão profissional nos times de futebol, com normas rígidas de governança, é uma obrigação em qualquer modelo societário, sob pena de o clube não ganhar jogos e nem campeonatos.
Por ser uma atividade com especificidades próprias, se faz necessário a administração pública ter uma agência reguladora da indústria do futebol ou departamento de fiscalização integrado entre a Receita Federal e o Banco Central, com criação de obrigações acessórias que possam ser auditados de forma eficiente a movimentação financeira e o resultado contábil das SAFs.
Ives Gandra da Silva Martins
Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio/SP. Professor emérito da Universidade Mackenzie e das Escolas do Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) e Superior de Guerra (ESG). Advogado e fundador da Advocacia Gandra Martins.
Salvio Spinola
Advogado com especializações em Direito Desportivo e em Direito Tributário.Pós-graduado em gestão do Futebol pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professor na ESA - Escola Superior da Advocacia. Conselheiro no Conselho Superior de Direito daFECOMÉRCIO - SP. Ex-árbitro de futebol credenciado pela FIFA.