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Militares considerados incompatíveis com as Forças Armadas e a pensão por "morte ficta"

As consequências da declaração de incompatibilidade com o exercício da função militar e a controversa pensão aos beneficiários do militar considerado indigno.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Atualizado às 13:31

O que acontece quando um oficial ou praça das Forças Armadas é considerado indigno ou incompatível com a continuidade nas fileiras da instituição? Os procedimentos disciplinares de exclusão de militares a bem da disciplina são assuntos pouco ventilados no meio jurídico, embora sejam de grande relevância para a manutenção da ordem e da disciplina militar e, como veremos adiante, também para os cofres públicos.

Os Conselhos de Justificação e Disciplina são formados por militares de graduação superior à do militar acusado e são responsáveis, respectivamente, por julgar a capacidade de oficiais e praças com estabilidade para permanecerem na ativa, ao mesmo tempo em que criam condições para que exerçam sua defesa. Os procedimentos são disciplinados pela lei 5836/72, para os casos envolvendo oficiais e pelo decreto 71500/72.

A principal diferença entre eles decorre da previsão do artigo 142, § 3º, inciso VI, da Constituição Federal, que assegura que "o oficial só perderá o posto e a patente se for considerado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de um tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra". Quanto às praças, por não possuírem a garantia constitucional de posto e patente, se consideradas culpadas pelos conselhos disciplinares, podem ser julgadas incompatíveis e excluídas a bem da disciplina pelos Comandantes das Forças.

Os casos mais comuns que podem levar aos procedimentos acima descritos são: (I) acusações oficiais de má conduta no cargo, comportamento irregular ou ações que comprometam a honra pessoal ou o decoro militar; (II) incompatibilidade ou incapacidade para as funções militares e (III) condenação por crime doloso com pena de até dois anos de restrição de liberdade, após a decisão judicial final. No caso de crimes, se a pena for superior a dois anos, dispensa-se a instância administrativa inicial dos conselhos, e o processo segue diretamente para a autoridade competente para considerar se o militar é compatível ou não com as Forças.

Talvez alguns exemplos evidenciem mais claramente as situações que dão origem aos conselhos. O mais emblemático dos exemplos é, sem dúvida, o caso do ex-Presidente Jair Bolsonaro. Em 3 de setembro de 1986, foi publicado o exemplar nº 939 da Revista Veja, contendo um artigo assinado pelo então capitão paraquedista Jair Messias Bolsonaro, na época com 31 anos e atuando no 8º GAC, onde criticava os salários e as condições dos militares do Exército Brasileiro1. Em decorrência do artigo, Bolsonaro foi submetido a um julgamento por um Conselho de Justificação, sendo acusado de ter uma conduta irregular e de praticar atos que afetavam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.

Na primeira instância, o Conselho decidiu por unanimidade pela condenação do acusado. No STM, instância constitucionalmente competente para decisão sobre a perda do posto e patente, em 16 de junho de 1988, após intensos e acalorados debates, Bolsonaro foi absolvido e pôde prosseguir com sua carreira no Exército2. Em novembro do mesmo ano Bolsonaro acabou deixando o Exército por outro motivo. Foi eleito vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão e passou para a reserva remunerada.

A mesma sorte não tiveram outros militares das Forças Armadas que foram considerados culpados após o mesmo procedimento pelo qual passou Bolsonaro. O sargento da reserva da Aeronáutica Juenil Bonfim de Queiroz, que foi condenado a 30 anos de prisão por matar a esposa e um vizinho, no Distrito Federal, em 2019, foi expulso da corporação, após ser julgado pelo Conselho de Disciplina, com decisão ratificada pelo Comandante da Aeronáutica. 

Assim também ocorreu com o sargento Manoel da Silva Rodrigues, detido na Espanha, em junho de 2019, com 39 quilos de cocaína em um dos aviões da FAB que dava apoio à comitiva do presidente Jair Bolsonaro (PL) e excluído das fileiras da Força pelo Comandante da Aeronáutica, após Conselho de Disciplina, após ter sido condenado pela Justiça Espanhola.

Não foi diferente o destino do coronel da reserva do Exército Paulo Roberto Saback de Macedo, que recentemente foi considerado pelo Superior Tribunal Militar (STM) indigno com o oficialato e teve declarada a perda da patente, após ser condenado por corrupção passiva. Em fevereiro de 2012, o militar recebeu propina para facilitar a compra de um fuzil por um civil.

A consequência para todos esses casos é a mesma. Conforme estipulado no Estatuto dos Militares (Lei 6880/80) "o oficial que perder o posto e a patente será demitido ex officio, sem direito a qualquer remuneração ou indenização" e "a exclusão da praça a bem da disciplina implica a perda de seu grau hierárquico e não a isenta das responsabilidades por indenizações de prejuízos causados à Fazenda Nacional ou a terceiros, nem das obrigações decorrentes de sentenças judiciais". Até aqui, a consequência parece não surpreender.

Por outro lado, o que pode não parecer tão óbvio é a previsão de um outro diploma legal ainda mais antigo, a Lei 3.765, de 4 de maio de 1960, que trata das pensões militares. Segundo a mencionada lei, "o oficial da ativa, da reserva remunerada ou reformado, contribuinte obrigatório da pensão militar, que perder o posto e a patente, deixará aos seus beneficiários a pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao tempo de serviço". Além disso, "nas mesmas condições referidas no caput deste artigo, a praça contribuinte da pensão militar com mais de dez anos de serviço, expulsa (.):".

A lei 3.765/60 prevê o benefício que ficou comumente conhecido como "morte ficta" e que visa amparar os dependentes do militar considerado indigno ou incompatível. Que fique claro: todos os casos envolvendo militares considerados incompatíveis com a continuidade nas fileiras das Forças, seja por terem tido conduta irregular ou por terem sido condenados por crime, e que por isso perdem sua patente ou são excluídos a bem da disciplina, geram o direito à pensão pela "morte ficta", um benefício que muitas das vezes pode der como destinatário indireto o próprio militar excluído. Uma rápida pesquisa pelo Diário Oficial da União demonstrará que não são raros os casos em que militares se encontram nessa situação.

É importante ressaltar que o "benefício" da pensão decorrente da incompatibilidade com as Forças não é assegurado constitucionalmente, mas sim por legislação infraconstitucional, sendo, portanto, passível de revisão. Nas vezes em que as legislações mencionadas foram revistas, a pensão em questão nunca foi revogada.

A última oportunidade ocorreu com a lei 13.954/19, que amplamente revisou diversas legislações militares. Ao invés de revogar a pensão por morte ficta, a mencionada o legislador infraconstitucional fez questão de reinseri-la como está hoje no corpo da Lei de Pensões, já que, por algum tempo, a pensão por morte ficta encontrava-se apenas no regulamento da Lei 3.765/60, o decreto 49.096/60.

Talvez por entender que a via infraconstitucional não fosse a mais efetiva ou mesmo pelo simbolismo do ato, no apagar das luzes de seu tempo como Senador, em fevereiro de 2024, o agora Ministro do STF Flávio Dino apresentou a Proposta de Emenda à Constituição 3/2024, que altera os artigos 42, 93, 128 e 142 da Constituição Federal, para vedar o uso da aposentadoria como sanção quando do cometimento de infração disciplinar para juízes, membros do Ministério Público e militares.

Caso aprovada, em relação aos militares, a Emenda inserirá proibição expressa no artigo 142 da Constituição, que passará a prever que "é vedada a transferência do militar para a inatividade como sanção pelo cometimento de infração disciplinar, assim como a concessão de qualquer benefício por morte ficta ou presumida, devendo ser aplicada, em face de faltas graves, a penalidade de demissão, licenciamento ou exclusão, ou equivalente, conforme lei disciplinadora do respectivo regime jurídico". A PEC encontra-se ainda no início de sua longa jornada, aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde 24 de fevereiro de 2024.

Em um momento em que maior atenção tem sido destinada, para o bem ou para o mal, à realidade nas casernas, talvez seja importante reconsiderar o exemplo deixado aos militares na ativa e à sociedade em geral, ao se manter um benefício que, embora pudesse ser compatível com o contexto histórico de sua criação, parece não encontrar mais justificativa social.

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1 CARVALHO, Luiz Maklouf. O cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel. Todavia, 2019.

2 CARVALHO, Luiz Maklouf. O julgamento que tirou Bolsonaro do anonimato. 2018. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/545208/noticia.html?sequence=1&isAllowed=y.

Tatiana Cruz

VIP Tatiana Cruz

Doutora em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Aluna de PhD em Ciências Políticas na University of Wisconsin - Madison.

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