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Vitória do absurdo: por maioria de votos TJ/SP valida confissão obtida sob tortura

Infelizmente, quase quatro décadas após o fim da ditadura militar, o emprego da tortura permanece fazendo milhares de vítimas anônimas em um Estado que se pretende democrático e de direito, com algumas diferenças.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Atualizado às 09:10

"É responsabilidade do Estado brasileiro prevenir e punir a tortura no âmbito de sua jurisdição, o que inclui a não-admissão de prova obtida mediante tortura nos processos judiciais".

(Marcelo Semer)

O Caso:

Em matéria intitulada "Juiz vota contra confissão obtida sob tortura pela PM paulista" publicada no UOL1, FREDERICO VASCONCELOS informa que:

O desembargador Marcelo Semer, da 13ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi voto vencido ao defender a absolvição de um traficante por entender que é ilegal a prova obtida sob tortura.

"Não há qualquer margem de tolerância que permita a admissão de prova obtida mediante violência policial. Ao contrário, a conduta é considerada crime em todos os seus níveis de gravidade".2

"O réu reiterou que foi agredido e afirmou que foi ameaçado de ser mais agredido se não confessasse, alegando que ficou com medo de morrer. Os indícios são corroborados pelo laudo de corpo de delito do réu".

A condenação original foi mantida por 2x1 na apelação. A Defensoria Pública entrou com recurso [embargos infringentes]. Após manifestação da Procuradoria de Justiça pela absolvição, por ilegalidade das provas, a decisão condenatória foi mantida por 3x2. Ficaram vencidos os desembargadores Marcelo Gordo e Marcelo Semer.

Ainda cabe recurso da decisão no Superior Tribunal de Justiça".

Tortura:

A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes - Resolução 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1984 - em seu artigo 1º  definiu tortura  como sendo:

qualquer acto pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência... 

Quando se fala em tortura no Brasil logo se remete ao passado e o regime militar (1964 a 1985). Embora o Brasil tenha, em 28 de setembro de 1989, ratificado a Convenção contra a tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a tortura não acabou, não é coisa do passado e nem exclusividade do regime militar ditatorial e de exceção. Naquele período o emprego da tortura pelas forças de segurança era política de Estado e sua pratica tornou-se institucionalizada.

Infelizmente, quase quatro décadas após o fim da ditadura militar, o emprego da tortura permanece fazendo milhares de vítimas anônimas em um Estado que se pretende democrático e de direito, com algumas diferenças.

Enquanto durante a ditadura a tortura era praticada, principalmente, contra os estudantes, os intelectuais e os que de uma maneira ou outra se opunham ao regime, atualmente, a tortura é perpetrada, maiormente, contra os excluídos de uma vida com o mínimo de dignidade, marginalizados, miseráveis, favelados, negros, analfabetos, enfim, aqueles que compõem a clientela do sistema penal brasileiro.

No regime militar de exceção os opositores - inimigos - eram etiquetados como "terroristas" e "comunistas"; os criminalizados de hoje são etiquetados como "perigosos" e "traficantes".

Constata-se que o emprego da tortura e dos maus-tratos deixou de ser arma da repressão política para se transformar em instrumento de "investigação", de "punição" e de "vingança" na mão de policiais civis e militares. Além das torturas, há aqueles que são sumariamente executados pelo sistema penal - os "indignos de vida".3

A Anistia Internacional já constatou que práticas como aplicação de eletrochoques, espancamentos com palmatória, afogamento parcial, pau-de-arara e outros meios infames são constantemente empregados pela polícia, seja no momento da prisão de um "suspeito" por integrante da Polícia Militar ou em um "interrogatório", onde se obtém uma "confissão espontânea", realizado por agente da Polícia Civil.

Segundo o delegado MARCELO BARROS CORREIA4, muitos policiais começam a torturar amparados por uma moralidade socialmente aceita de que a tortura é legítima para solucionar e resolver crimes. No entanto, na prática, "a tortura é usada para fins pessoais como na resolução de crimes patrimoniais que oferecem recompensas e ascensão profissional ao policial". 

Lamentavelmente, boa parte da sociedade elitizada não só tolera a tortura praticada pela polícia como também glorifica, sob o argumento de que "bandido" não é torturado, assim como "policial" que combate a criminalidade não é "torturador".

Prova ilícita:

Segundo a Constituição da República "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos" (art. 5º, LVI).

Embora seja manifesto que a tortura constitui prova ilícita, muitas vezes o óbvio precisa ser dito, ainda que se trate de "óbvio ululante" na expressão de NELSON RODRIGUES.

Não é demais martelar que a tortura é crime equiparado a hediondo. No caso em comento, após examinar os vídeos das câmeras dos policiais militares WILLIAN BARBOSA PEREIRA DOS SANTOS e MÁRCIO JOSÉ CARNIEL JÚNIOR, o desembargador MARCELO SEMER constatou a ocorrência de violência policial, com diversas agressões que incluem socos e tapas na cabeça e rosto do réu, empurrões que o levaram ao chão, enforcamento que durou ao menos um minuto e segurar o réu com a camisa levantada para que fosse chicoteado por um terceiro.

Do ponto de vista do direito material, assevera o processualista GUSTAVO BADARÓ que

a prova ilícita será colhida com infringência de normas ou princípios previstos na Constituição para proteção das liberdades públicas e dos direitos de personalidade. Constituem provas ilícitas, por exemplo, as obtidas com violação de domicílio (CR, art. 5º, X), ou das comunicações telefônicas ou postais (CR, art. 5º, XII), as conseguidas mediante tortura ou maus tratos (CR, art. 5º, III), as colhidas com infringência à intimidade (CR, art. 5º, X), entre outras.5

Conclusão

A história recente do Brasil, como bem observou LEONARDO BOFF6, "está em continuidade com seu passado, quase sempre escrita apenas pela mão branca. Nela não falaram e se falaram não foram ouvidos, os negros, os índios, os mulatos, as mulheres e os pobres em geral".

Urge que esta história comece a ser escrita pelas vítimas da opressão, pelas minorias, pelos discriminados, pelos vulneráveis, pelos torturados, enfim, por todos que foram sempre excluídos por uma sociedade perversa. Para tanto é necessário que a democracia deixe de ser apenas formal e passe a ser material, social e participativa, efetivamente.

Por fim, necessário que haja por parte do Estado e da sociedade um compromisso indissociável com a dignidade humana e com os direitos humanos. Que os direitos humanos sejam realmente de todos e para todos, inclusive, para aqueles que torturam ou defendem a tortura, porque tortura nem para os que a defendem.

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1 https://www1.folha.uol.com.br/blogs/frederico-vasconcelos/2024/07/juiz-vota-contra-confisao-obtida-sob-tortura-éla-pm

2 Processo nº 1500621-76.2023.8.26.0628

3 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

4 CORREIA, Marcelo Barros. Polícia e tortura no Brasil: conhecendo a caixa das maças podres. Curitiba: Appris, 2015.

5 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed.rev.atual. e ampl. Sâo Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p.406.

6 BOFF, Leonardo. A violência contra os oprimidos: seis tipos de análise. . In Discursos Sediciosos. Crime, direito e sociedade. Ano 1, n. 1. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

Leonardo Isaac Yarochewsky

VIP Leonardo Isaac Yarochewsky

Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Ciências Penais pela UFMG.

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