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Direito ao saneamento básico: Um dos pilares da saúde e de uma cidade sustentável

O tão aclamado direito à felicidade, numa concepção plena e utilitarista, perpassa por amplas condições de saúde para a população, que exigem a oferta de condições básicas de saneamento.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Atualizado em 1 de agosto de 2024 11:24

Como o próprio nome sugere, o saneamento básico é um dos pilares fundamentais para a promoção da saúde pública, do bem-estar social e do desenvolvimento sustentável do país, noção que se extrai dos arts. 1º, III, 5º, 6º, 60, §1°, inciso IV c/c art. 225 da CRFB.

Para assegurar a efetivação dos serviços que envolvem esse direito fundamental, é necessária a adoção de medidas específicas e organização de toda uma infraestrutura para garantir o abastecimento de água potável, o tratamento adequado do esgoto, a coleta e destinação correta dos resíduos sólidos, além do controle de vetores e ações de educação sanitária, como já era regulamentado pela lei 11.445/07 e atualizado pela lei 14.026/20 - o Novo Marco do Saneamento Básico.

É notório que, quando o acesso ao saneamento básico é adequado, há uma redução significativa de doenças transmitidas pela água e pelo esgoto, como diarréia, hepatite A, cólera, entre outras. Estudos mostram que a melhoria no saneamento reduz a incidência de doenças relacionadas à água em até 80%. Além disso, o saneamento básico contribui para a melhoria da qualidade de vida da população, pois proporciona condições mais dignas de moradia, direito social materialmente fundamental, evita a contaminação do solo e dos recursos hídricos, reduzindo, assim, também o impacto ambiental decorrente da ocupação humana no planeta.

A transversalidade do tema revela o que André Carvalho Ramos (2020) expõe como a indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais. Em outros termos, a efetivação de um direito está intrinsecamente ligada à garantia dos demais. A indivisibilidade é uma característica central dos direitos humanos, o que significa que direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais são interdependentes e inter-relacionados, devendo ser tratados de forma integrada a fim de que a dignidade humana seja plenamente assegurada, contribuindo, assim, para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e equitativa.

Lamentavelmente, e naturalmente, quem mais sofre com a falta de saneamento básico é a população mais pobre1. Como exemplo, temos a região da baixada fluminense do estado do Rio de Janeiro, onde, de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Trata Brasil, com base nos dados do SNIS - Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, divulgada em março de 2024, quatro cidades da baixada ficaram entre as 20 piores do Ranking de Saneamento Básico de 2024, sendo elas São João de Meriti, São Gonçalo, Duque de Caxias e Belford Roxo.

Vale ressaltar que a falta de saneamento ocasiona o adoecimento da população, que, por sua vez, com problemas de saúde, tem suas atividades do cotidiano afetadas, interferindo nas economias locais e do próprio país.

Além disso, este problema social já prejudica, per si, o desenvolvimento de crianças e adolescentes, interferindo no desenvolvimento de maneira sustentável dos municípios, nele contemplado a noção de equidade social.

Atendo-se a exemplos concretos, ainda é surpreendente o fato de alguns Municípios apresentarem índices incompatíveis com a sua realidade econômica e relevância geopolítica local.

Exemplificativamente, este é o caso de São João de Meriti, cidade com a maior densidade demográfica do estado do Rio de Janeiro, que está entre as cinco cidades do estado com o pior índice de Saneamento Básico, com uma perda de distribuição de água em torno de 66,12%, sendo a falta de água naquele município um dado que não se pode ignorar. Destaque-se: a despeito do fato de ter sido este um dos municípios que recebeu os maiores valores de outorga na concessão da CEDAE.

É inquestionável que o desenvolvimento sustentável de uma cidade passa diretamente pelo saneamento básico, uma vez que o uso racional dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente são essenciais para garantir a qualidade de vida das gerações futuras (equidade intergeracional prevista não só na Bíblia Política do Estado Brasileiro, como também em normas internacionais ecológicas, a exemplo da ECO-92 e da Agenda 2.030 da ONU). Portanto, investir em saneamento básico é fundamental para a construção de uma sociedade mais saudável, justa e sustentável, objetivo erigido a princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito (art. 3º, incisos I e III da CF/88).

É cediço que os desafios jurídicos que os municípios enfrentarão para se adequarem e cumprirem o novo Marco regulatório do saneamento básico são complicadores que deverão ser enfrentados, uma vez que a falta de estrutura e capacidade técnica são fatores relevantes a serem contornados no exercício dos deveres fundamentais público-privados de implementação de políticas públicas eficientes e responsivas.

A jurisprudência do STJ tem reconhecido a responsabilidade do Estado pela omissão na prestação de serviços de saneamento básico, imputando penalidades e obrigações para gestores e aos entes responsáveis.

Nesse sentido, sem pretensão de exaurir o tema, vamos destacar alguns desafios jurídicos para os municípios.

a. Criação, revisão e adequação da legislação municipal: Os municípios precisam revisar e adequar sua legislação local para estar em conformidade com as novas diretrizes estabelecidas pelo marco regulatório. Isso pode envolver a elaboração de leis e regulamentos municipais que estabeleçam as regras e procedimentos para a prestação dos serviços de saneamento básico.

Nesse contexto, é imperioso destacar que a maioria dos municípios brasileiros, inclusive os cariocas, não têm sequer um código ambiental aprovado.

b. Contratos de concessão e parcerias público-privadas: O novo marco regulatório incentiva a participação do setor privado na prestação dos serviços de saneamento básico. Nesse sentido, os municípios irão enfrentar desafios na elaboração e negociação de contratos de concessão ou parcerias público-privadas, que devem atender aos requisitos legais e garantir a eficiência e a qualidade na prestação dos serviços.

c. Licitações e processos seletivos: Para a contratação de empresas privadas ou públicas para a prestação dos serviços de saneamento básico, os municípios devem realizar licitações ou processos seletivos, seguindo as regras estabelecidas pela legislação de contratações públicas. Isso requer conhecimento jurídico e capacidade de conduzir esses processos de forma transparente e conforme as exigências legais, consoante os princípios do Direito Administrativo Contemporâneo do accountability e da juridicidade.

d. Regulação e fiscalização: O novo marco regulatório estabelece a necessidade de órgãos reguladores e fiscalizadores garantirem o cumprimento das metas e padrões de qualidade estabelecidos. Desse modo, os municípios enfrentarão desafios na criação e estruturação desses órgãos, bem como na definição de suas atribuições e competências.

e. Resolução de conflitos: A implementação do novo marco regulatório pode gerar conflitos entre os diferentes atores envolvidos - públicos e privados -, como prefeituras, empresas estatais e empresas privadas, órgãos reguladores e usuários dos serviços. Assim, os municípios precisam estar preparados para lidar com esses conflitos, buscando mecanismos eficientes de solucioná-los, a exemplo da mediação e a arbitragem (art. 3º, §2º, do CPC/15 e lei 9.307/96), quando necessário.

É importante destacar que a superação desses desafios jurídicos e técnicos requerem uma boa assessoria jurídica, o conhecimento da legislação aplicável e uma gestão transparente e eficiente por parte dos municípios.

Outrossim, a busca pelo cumprimento do novo marco regulatório deve ser pautada pela legalidade e ancorada no interesse público na prestação dos serviços de saneamento básico, princípios estes gerais do Direito Administrativo e, também, setoriais, quando falamos de políticas públicas de saneamento responsivas, colaborativas e integradas.

Conclui-se, assim, que é fundamental que haja comprometimento por parte dos gestores municipais e integração entre os diversos setores envolvidos, com vistas à tão almejada universalização dos serviços de saneamento básico, essencial à promoção da saúde pública, e à proteção do meio ambiente, conceito este abrangido na visão holística do Direito Ambiental (art. 200, VIII, da CF/88).

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1 Saliente-se que o tema guarda relação com a teoria do impacto desproporcional, alinhada com ao que no Direito Estrangeiro se denomina "disparate impact", sendo ela uma ferramenta essencial para compreender como normas aparentemente neutras podem resultar em discriminação indireta. Essa teoria surgiu na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, mais especificamente no caso Griggs v. Duke Power, e foi incorporada na análise de legislações e práticas que, embora não intencionem discriminar, produzem efeitos negativos desproporcionais sobre determinados grupos.

No contexto brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem aplicado a teoria do impacto desproporcional para abordar questões de igualdade e não discriminação. Por exemplo, na ADI 1.946, foi discutido como a limitação dos benefícios previdenciários poderia afetar desproporcionalmente as mulheres no mercado de trabalho, incentivando empregadores a preferirem homens para evitar custos adicionais durante a licença-maternidade .

Ademais, a aplicação dessa teoria é relevante para assegurar que políticas públicas e normas jurídicas não perpetuem desigualdades estruturais. Isso é de suma importância ao falar  do direito ao saneamento básico, o qual deve ser garantido de forma a não discriminar, direta ou indiretamente, qualquer grupo da sociedade. Portanto, a teoria do impacto desproporcional complementa a abordagem de indivisibilidade dos direitos humanos ao garantir que todas as políticas e práticas sejam examinadas sob a ótica de seus impactos reais sobre a população, promovendo uma verdadeira igualdade de condições e oportunidades.

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RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos - 9ª edição 2022, Saraiva Jur; 9ª edição (18 fevereiro 2022)

SARMENTO, Daniel. A igualdade étnico-racial no direito constitucional brasileiro: discriminação "De Facto", teoria do impacto desproporcional e ação afirmativa.mIn: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.

Disponível em: https://tratabrasil.org.br/ranking-do-saneamento-2024/

Disponível em: https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2024/04/Relatorio-Completo-Ranking-do-Saneamento-de-2024-TRATA-BRASIL-GO-ASSOCIADOS.pdf.

Daniel Charliton

VIP Daniel Charliton

Advogado especializado em Direito Penal, Ambiental, Cível e Empresarial. Com experiência em gestão pública, foi superintendente do IBAMA, gestor em Itaguaí/RJ, São João de Meriti/RJ

Walter Rego Ferreira Filho

Walter Rego Ferreira Filho

Advogado especializado em consultoria jurídica direcionada à implementação e regulamentação de políticas públicas.

Adilson Gil

Adilson Gil

Advogado especializado em Administração, Altos Estudos de Política e Estratégia.

Crystal Muller

Crystal Muller

Advogada especializada em Direto Ambiental, atualmente atua como advogada na secretaria de Meio Ambiente no município de Itaguaí/RJ, sócia no escritório CHARLITON MÜLLER ADVOGADOS.

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