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A indenização de investimentos: É a hora e a vez das agências reguladoras no saneamento básico

Artur de Sousa Carrijo e Antonio Costa Lima Junior

O desafio da mensuração dos investimentos a serem indenizados dependerá, fundamentalmente, de uma atuação assertiva e autônoma das agências reguladoras, à luz da Norma de Referência editada pela ANA.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Atualizado às 12:28

O marco regulatório do saneamento básico, consubstanciado pelas relevantes mudanças introduzidas pela lei 14.026/20 na lei 11.445/07, se propõe a alterar o paradigma do setor de saneamento. Em especial, o marco regulatório vigente estabelece a orientação de realização de procedimentos licitatórios para a seleção do prestador dos serviços, em progressiva substituição aos contratos de programa celebrados e em andamento.

Apesar das controvérsias a respeito das escolhas legislativas realizadas, notadamente em função do peso conferido à suposta capacidade de solução pela iniciativa privada dos problemas de investimento no setor, sustentado em concepções dicotômicas de enfrentamento do problema que opõem empresas estatais versus empresas privadas e estatização versus privatização, fato é que o Marco Legal do Saneamento tem na segurança jurídica um dos seus grandes vetores.

Em especial, diante da mudança paradigmática do modelo, é preciso garantir respeito aos contratos vigentes e, quanto às concessões que serão substituídas por parceiros privados, o devido respeito aos ativos e aos investimentos dos atuais prestadores como premissa para o aumento do fluxo de investimentos na seara pública e na privada.

Os contratos relativos à prestação dos serviços públicos de saneamento básico são instrumentos que vinculam o prestador a um universo de obrigações, refletidas em ações para o cumprimento de metas físicas e financeiras, viabilizadas a partir da garantia de contrapartidas tarifárias que permitam equilibrar a equação econômico-financeira inicial.

Por essa razão é que, inafastavelmente, ao final de um contrato de concessão - e principalmente em meio à condução de um processo de transição entre o atual e o novo prestador - os atos praticados pelo poder concedente devem ser obrigatoriamente monitorados e normatizados pelas agências reguladoras.

A ideia de um Estado prestador de serviços públicos essenciais que, ao mesmo tempo, admite subsidiariamente a delegação de sua prestação ao setor privado, demanda o fortalecimento de um modelo regulatório que assegure não apenas os interesses dos atores envolvidos, mas principalmente os interesses da coletividade. No setor do saneamento básico, a designação de entidade reguladora e a metodologia de cálculo de eventual indenização são condições de validade dos contratos, previstas nos arts. 10-A e 11, da lei 11.445/07.

Isso porque os saldos dos investimentos não amortizados ou depreciados, incluídos ainda os investimentos de melhoria, necessários para a manutenção do funcionamento dos bens reversíveis, deverão, obrigatoriamente, ser quitados como condição para a transferência do serviço ao novo prestador (art. 42, § 5º da lei 11.445/07)1.

No âmbito regulatório, o tema foi disciplinado na Norma de Referência 3, de 3/8/23, editada pela ANA - Agência Nacional de Águas e Saneamento2, que estabelece metodologia de indenização de investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados dos contratos de prestação de serviços de abastecimentos água esgotamento sanitário.

Segundo a normativa, o Poder Concedente poderá assumir o repasse indenizatório ou transferi-lo ao novo prestador - o que implica consequências distintas:

  1. quando o concedente assume o risco, ele necessariamente precisa obedecer aos regramentos da lei de concessões, procedendo com os levantamentos e avaliações necessárias, a partir da metodologia de apuração da indenização estabelecida pela agência reguladora, para conclusivamente liquidar a indenização devida ao antigo prestador, e assim se adequar às exigências da lei de responsabilidade fiscal (impacto orçamentário-financeiro e declaração de conformidade do ordenador da despesa), programando o pagamento da indenização que, por sua vez, sairá dos cofres públicos;
  2. quando o concedente transfere ao atual prestador a obrigação de pagar a indenização, a verificação desta é fundamental porque impactará diretamente nas propostas apresentadas pelos licitantes.

O quadro retratado evidencia com clareza a importância do papel a ser desempenhado pelas agências reguladoras competentes, que terão fundamental atuação na definição de questões tão cruciais ao setor, a ser exercida com capacidade técnica e, principalmente, autonomia.

De fato, as agências reguladoras não podem ser marginalizadas desse processo e, muito menos, restarem omissas diante de certames licitatórios que sejam deflagrados sem qualquer respaldo metodológico prévio para a apuração da indenização devida ao atual prestador, o que muitas vezes é tolerado em hipóteses de enfraquecimento das agências e da sua captura.

Esse aspecto, a propósito, é objeto de inúmeros estudos, voltados à análise da independência de órgãos regulatórios como um fenômeno multidimensional, subdividido principalmente na independência frente aos grupos de interesse e na independência frente aos políticos, isto é, na captura por grupos de interesse ou na captura política3.

No caso do setor de saneamento básico, marcadamente regulado por ERIs - Entidades Reguladoras Infranacionais, a captura política ou econômica compromete a confiabilidade do mercado concretização dos preceitos legais trazidos pela lei 14.026/20, inclusive nos casos ora em debate, sendo crucial que haja a devida regulamentação e o atendimento a normativas que disciplinem, em prol do interesse coletivo, as regras a serem seguidas . 

Nesse sentido, a Norma de Referência 3, ao dispor sobre metodologia de indenização de investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados dos contratos de prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, orienta a atuação das ERIs, trazendo em seu bojo inúmeros cenários para a promoção da segurança e da lisura no processo, garantindo com isso o equilíbrio econômico-financeiro entre as partes interessadas.

No âmbito infranacional, é possível constatar melhorias nos processos das entidades reguladoras infracionais, inclusive com a assimilação das diretrizes apresentadas pela ANA. A título de exemplo, vale citar a AGESAN/RS - Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento do Rio Grande do Sul, que editou a Resolução CSR 007/244, instituindo os critérios para indenização dos ativos não amortizados ou depreciados para as operações executadas nos municípios de sua competência.

A edição da Norma de Referência ANA 3, bem como a sua assimilação pelas ERIs, materializam passos fundamentais para a realização de procedimentos impessoais e capazes de atender com razoabilidade um aspecto tão importante para a universalização do saneamento básico, que é a segurança jurídica dos contratos e a proteção dos investimentos já realizados.

Tais medidas expressam, também nesse sentido, a importância das agências reguladoras nas interações durante a toda vigência do contrato, inclusive no aspecto de apoio e interlocução com os órgãos de controle externo, como o Tribunal de Contas e o Ministério Público, mediante a apresentação de subsídios para efetivamente exercer a atividade constitucional de fiscalização das contas públicas.

De todo o exposto, observa-se que, juntamente a uma atuação independente, técnica e ativa das agências reguladoras capaz de trazer para o setor de saneamento básico a segurança no efetivo cumprimento das regras contratuais, é crucial que os órgãos reguladores assumam posicionamento firme e assertivo no exercício do seu papel decisório e condutor das regras do setor para todo o ciclo contratual, notadamente nas transições entre prestadores de serviços, garantindo o pagamento indenizatório justo para todos os envolvidos e concretizando a segurança técnica e jurídica dos processos sob as regras vigentes do Marco Legal do Saneamento Básico.

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1 Sobre o tema, vale citar o artigo Dilema das indenizações no término dos contratos do setor de saneamento, de Caio Freitas. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-13/caio-freitas-indenizacoes-fim-contratos-saneamento/

Disponível em: https://arquivos.ana.gov.br/_viewpdf/web/?file=https://arquivos.ana.gov.br/resolucoes/2023/0161-2023_Ato_Normativo_03082023_20230804082725.pdf

3 Batista, M. (2022). MENSURANDO A INDEPENDÊNCIA DAS AGÊNCIAS REGULATÓRIAS BRASILEIRAS. Planejamento E Políticas Públicas, (36). Recuperado de Disponível em: //www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/227

4 Disponível em: https://agesan-rs.com.br/wp-content/uploads/2024/05/Resolucao-CSR-no-007_2024_assinado.pdf

Artur de Sousa Carrijo

Artur de Sousa Carrijo

Advogado e professor em direito administrativo. Mestre em Direito Administrativo pela FD/ULisboa. Autor do livro "Novo regime jurídico das Empresas Estatais Brasileiras" (Lumen Juris).

Antonio Costa Lima Junior

Antonio Costa Lima Junior

Advogado, membro da comissão especial de saneamento da OAB Nacional, pós-graduando no MBA- PPPs e Concessões, pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

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