Precedentes judiciais em debate: Técnicas processuais para a justiça brasileira
No Brasil, garantir segurança jurídica é desafiador devido à diversidade de decisões judiciais, aumentando litígios e dificultando a previsibilidade das consequências legais para os cidadãos.
sexta-feira, 26 de julho de 2024
Atualizado em 25 de julho de 2024 14:32
A ideia de segurança jurídica, que acompanha a noção de Estado Democrático de Direito, exige uniformidade nas decisões judiciais. É preciso que os cidadãos possam antever as consequências jurídicas de seus atos, especialmente quando os conflitos são levados ao Poder Judiciário.
Contudo, em um país de dimensões continentais e com intensa litigiosidade, como o Brasil, é bastante difícil assegurar essa segurança. Os conflitos geram muitas demandas judiciais e o direito pode se tornar instável, ao sabor de diferentes decisões. Como destaca Teresa Arruda Alvim, a carga normativa das decisões judiciais gera, para o Judiciário, responsabilidades que vão muito além de decidir o caso concreto: os juízes participam da criação do próprio direito1.
Tudo se torna ainda mais complexo diante do grande número de julgadores e da imensa dispersão da jurisprudência. Interpretar a lei, para aplica-la de forma isonômica, impõe um exercício de lógica, coerência e racionalidade. Isso nem sempre é possível, diante do volume de recursos. As Cortes, assoberbadas de trabalho, tendem a proferir decisões menos refletidas. O diálogo entre advogados, membros do MP e magistrados igualmente tende a ser cada vez mais rarefeito.
Todavia, se não existe isonomia na aplicação da lei, o desfecho judicial deixa de ser previsível, o que faz com que mais recursos sejam interpostos. Afinal, os jurisdicionados querem sempre tentar obter, em cada caso, a solução que lhes pareça mais adequada. Cria-se, então, um verdadeiro círculo vicioso.
Nesse cenário desanimador, a observância aos precedentes judiciais revela ser não apenas o cumprimento de um dever legal (CPC art. 927) mas, principalmente, uma opção consciente das Cortes em prol da isonomia e da segurança jurídica. Isso porque não basta julgar. É preciso decidir os conflitos de forma isonômica e coerente.
Como bem lembra Luiz Guilherme Marinoni, se a previsibilidade não depende da norma em que a ação se funda, mas da sua interpretação judicial, é evidente que a segurança jurídica está ligada à decisão judicial e não à norma jurídica em abstrato2.
Por outro lado, diante do grande volume de trabalho, é igualmente necessário atuar de forma rápida e eficiente. Não há nem tempo, nem muito menos recursos materiais a perder.
Daí porque é tão relevante tentar construir decisões judiciais baseadas nesses quatro elementos: isonomia, segurança jurídica, celeridade e eficiência. Tal conjugação constituirá o foco dos debates que serão realizados pelo IBDP, nas XV Jornadas Brasileiras de Direito Processual.
Apesar de a solução não ser simples, o respeito aos precedentes judiciais, somado à utilização de algumas técnicas processuais pode contribuir de forma bastante significativa para a melhoria da prestação jurisdicional.
A aplicação da tutela provisória, por exemplo, pode gerar decisões mais céleres e eficientes, mesmo nos casos em que não existe periculum in mora. Com isso, ganha-se tempo e efetividade. A tutela da evidência consiste justamente na técnica concebida para atender uma outra exigência de celeridade, diversa da urgência. Ela se caracteriza pela possibilidade de satisfazer imediatamente as pretensões baseadas em prova documental quando estas se mostrarem muito mais verossímeis que os argumentos frágeis dos réus. Atende, portanto, o anseio por uma justiça imediatamente eficaz.
Verifica-se, ainda, particularmente nos últimos quinze anos, a vigorosa expansão do fenômeno da desjudicialização em nosso país, por meio do qual a solução de determinados litígios e a prática de certos atos da vida civil passam a poder ser conduzidos por agentes externos ao Poder Judiciário, especialmente por notários e registradores, como corolário da noção de Justiça Multiportas. Esse fenômeno possui, ao menos, dois relevantes pontos de convergência com o sistema de precedentes, a saber: (i) os precedentes judiciais têm influído decisivamente no incremento da desjudicialização, como, ad exemplum tantum, para admitir inventário e partilha por escritura pública ainda que o falecido tenha deixado testamento;3 e (ii) para que o sistema de precedentes efetivamente alcance os almejados ideais de isonomia e segurança jurídica, faz-se necessário que também notários e registradores observem os precedentes judiciais firmados, sob pena de, apenas a depender da via eleita (judicial ou extrajudicial), casos idênticos receberem tratamentos substancialmente díspares.
A forma de atuação das Cortes Superiores também poderia ser aprimorada, de maneira a gerar mais eficiência e credibilidade. Nesse sentido, a participação de amicus curiae em questões sensíveis mostra-se um fator de grande importância. Até mesmo para defender a modulação de decisões polêmicas ou evitar que as teses fixadas nos Recursos Repetitivos apresentem conteúdo semântico dúbio ou impreciso. Relevante, assim, pensar na maneira de vinculação das decisões dos tribunais.
Em suma, tutela provisória, desjudicialização e amicus curiae são apenas alguns dos temas que serão tratados nas próximas Jornadas de Direito Processual.
Novas ideias serão debatidas neste grande evento científico que o IBDP - Instituto Brasileiro de Direito Processual realizará em Curitiba, de 18 a 20 de setembro. Mais de 250 palestrantes, incluindo estrangeiros e ministros das Cortes Superiores, analisarão o sistema de precedentes, de modo a aprimorá-lo no Brasil.
Por iniciativa da Diretoria do Instituto, estas Jornadas serão dedicadas aos professores Luiz Guilherme Marinoni e Teresa Arruda Alvim. Juristas de grande destaque, têm eles uma contribuição acadêmica valiosíssima para o desenvolvimento do sistema de precedentes em nosso país. Apenas por isso, a homenagem já lhes seria imensamente justa. Mas, sendo também professores e advogados, vivenciam na teoria e na prática, os anseios, as dificuldades e a esperança diária de todos nós, jurisdicionados.
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1 ALVIM, Teresa Arruda. Modulação: na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 53.
2 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 126.
3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp n. 1.808.767/RJ, relator o Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 15/10/2019, DJe de 3/12/2019. REsp n. 1.951.456/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/8/2022, DJe de 25/8/2022. AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.460.192/RN, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 20/5/2024, DJe de 23/5/2024.
Cassio Scarpinella Bueno
Livre-Docente, doutor e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da qual é também Professor-Doutor de gradução e pós-graduação. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Flávia Pereira Hill
Doutora e mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da qual também é Professora de graduação e pós-graduação. Vice-Secretária Geral do IBDP, Oficial do Registro Civil de Pessoas Naturais.
Rogéria Dotti
Sócia e coordenadora dos Núcleos de Direito CIvil e Processo Civil do Escritório Professor René Dotti.