MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Direito de marcas e concorrência - Reflexões sobre o caso "Língua de Gato"

Direito de marcas e concorrência - Reflexões sobre o caso "Língua de Gato"

A sentença de nulidade da marca "Língua de Gato" destaca a intersecção entre direito de marca e semiótica, essencial para entender seus impactos legais e econômicos no Brasil.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Atualizado em 26 de julho de 2024 13:54

Em 3/7 do ano corrente, em ação movida perante a 12ª vara Federal do Rio de Janeiro, foi proferida sentença declarando a nulidade de registro para a marca nominativa "Língua de Gato". A disputa ganhou amplo destaque na mídia e foi objeto de discussões nas redes sociais. O interesse pelo caso sublinha a relevância de examinar seus desdobramentos e implicações, especialmente considerando a complexidade dos argumentos envolvidos e a possível influência sobre futuros litígios de marcas no Brasil.

Entre outros aspectos que não serão abordados no presente artigo, é particularmente importante considerar a intersecção entre a proteção legal das marcas e os princípios semióticos que norteiam a interpretação dos signos. Isto em conta, a análise da sentença e a consideração de suas possíveis consequências jurídicas e econômicas serão precedidas de relato pontual, abordando três tópicos de interesse: i) direito de marca e semiótica, ii) natureza concorrencial do direito de marca e iii) direito de marca e a proteção da qualidade da concorrência.

Direito de marca e semiótica

A marca é um signo e, por conseguinte, releva ter em conta o ramo da ciência que estuda a relação entre signos e significados. 

Para a semiótica1, o signo é um algo que representa um outro algo para alguém. Ele é composto por dois elementos principais: o significante (a forma física do signo, como uma palavra, imagem ou som) e o significado (o conceito ou ideia que o signo evoca). A relação entre o significante e o significado é fundamental para a comunicação e interpretação dos sinais, pois que os signos são mediadores de significados entre o emissor e o receptor, permitindo a construção de sentido e entendimento.

No que tange os signos do tipo marca (registradas ou de fato), a semiótica fornece uma base teórica para avaliar a eficácia comunicativa e a proteção jurídica das marcas2.

Os conceitos de denotação e conotação são especialmente relevantes para a análise do caso proposto3. Denotação reporta ao primeiro nível de significação, âmbito onde o signo é vinculado a seu significado literal e direto. Conotação, por sua vez, reporta ao segundo nível de significação, quando o signo adquire, por influência do contexto social e cultural, significado adicional. Exemplificando, o significado literal e direto da palavra estrela --- denotação --- reporta, no vernáculo, ao corpo celeste que emite luz própria. Adicionalmente, o signo passou a ser utilizado para simbolizar fama, sucesso, no sentido de algo ou alguém notável --- conotação.

Direito de marca - natureza concorrencial

Na falta de concorrência, a marca não é necessária. Imagina-se que, no Brasil, as escovas de dentes fossem produzidas e oferecidas ao mercado por um único agente econômico. Na ausência de concorrência, não haveria necessidade de assinalar o produto com um sinal voltado a diferenciá-lo de outros oferecidos ao mercado por terceiros.

Por outro lado, quando há múltiplos agentes econômicos oferecendo o mesmo tipo de produto ao mercado, é adequado que utilizem sinais que permitam distinguir seus produtos dos de terceiros4. A marca, ao ser percebida pelo consumidor, desencadeia um processo associativo que culmina na individualização e consequente diferenciação de um produto e/ou serviço de outros produtos e/ou serviços do mesmo gênero oferecidos por concorrentes no mercado.

Além de meio de individualização e distinção de produtos e/ou serviços, a marca ainda serve como referencial de qualidade e, adicionalmente, como veículo para a propagação dessa qualidade. O consumidor desenvolve, em relação à marca, expectativa de constância quanto às características dos produtos e/ou serviços por ela assinalados, o que, a seu turno, fomenta a criação de um vínculo de confiança entre consumidor e agente econômico. Esse vínculo de confiança influencia significativamente o processo de escolha e preferência no mercado, além de revestir o sinal com valor de propaganda. 

Em síntese, a marca é um instrumento de comunicação destinado a viabilizar e contribuir para a eficiência do processo de informação essencial para o funcionamento do mercado pautado pela livre concorrência (individualização e determinação do produto e/ou serviço oferecido ao mercado por um agente econômico), cumprindo, ainda, função de catalisador de valor econômico-concorrencial (referencial de qualidade dos produtos ou serviços oferecidos ao mercado por um agente econômico; valor de propaganda do sinal). Ela é fator que viabiliza a concorrência no mercado, facilitando a disputa dos agentes econômicos pela preferência dos consumidores.

Nessa circunstância, compreende-se a razão pela qual sinais descritivos, i.e., aqueles que reportam à essência daquilo que assinalam - por exemplo "escova de dentes" para assinalar o produto escova de dentes - não serem adequados para serem empregados como marca.

Direito de marca e a proteção da qualidade da concorrência

Porque foi acima afirmado que a marca é um fator que viabiliza a concorrência no mercado, é importante entendê-la no contexto do instituto jurídico denominado "mercado".

Mercado5 é instituição jurídica constituída pelo direito positivo. A noção de mercado pressupõe, a seu turno, a de livre concorrência.  

Na esfera da livre concorrência os agentes econômicos competem para excluir ou superar seus concorrentes. Essa disputa é legítima e desejável enquanto utiliza meios que não ameaçam a existência ou a qualidade das relações concorrenciais. Contudo, quando os meios empregados põem em risco a existência ou a qualidade da concorrência, a disputa se torna indesejável, uma vez que pode comprometer o próprio sistema de organização do mercado.

Uma ordem jurídica que tenha na concorrência o princípio organizador dos acontecimentos no mercado deve, por um lado, proibir condutas que limitem a liberdade de concorrência (direito da concorrência lato sensu ou direito antitruste) e, por outro lado, coibir comportamentos que afetem a qualidade da concorrência (direito que reprime as práticas desleais).6  

No que tange às marcas e considerando a proteção da qualidade da concorrência, o agente econômico que conquista mercado por esforço próprio, agregando valor concorrencial ao sinal que emprega para individualizar e distinguir seus produtos e/ou serviços dos de seus concorrentes, age por meio de prestações positivas, também denominadas de leais, mesmo que isso resulte na exclusão de seus concorrentes.    

Por outro lado, o agente econômico que, ao invés de se esforçar para agregar um valor concorrencial a um sinal próprio, se apodera daquele usado por seu concorrente, confundindo o público consumidor, age por meio de prestações negativas (desleais). Dessa forma, abusa de seu direito à liberdade de concorrência, prejudicando a qualidade da concorrência e violando o direito de seus concorrentes de, nas palavras de Gama Cerqueira7, "não ser(em) molestado(s) nas suas relações com a clientela pelas manobras desleais de um competidor inescrupuloso". 

Considerando o exposto, encontra-se o objeto de tutela do direito de marcas na proteção da qualidade da concorrência, ao passo que sua gênese alude à utilização do sinal para cumprir com os fins de identificar e distinguir produtos ou serviços no mercado, transformando-o, pela agregação de valor comercial, em marca8.

Enquanto o direito de marca emana da função da concorrência de organizar os acontecimentos no mercado, especificamente da necessidade de proteção da qualidade da concorrência, o Estado intervém nesse contexto para, ainda na lição clássica de Gama Cerqueira, promover o acertamento, ou organização jurídica, dessa situação de fato9. E assim o faz, por uma, pela previsão de normas que têm por objeto a repressão à concorrência desleal e, por outra, pela introdução de um sistema de registro de marcas. Enquanto as normas voltadas à repressão da concorrência desleal são dotadas de caráter geral, a índole daquelas que introduzem e organizam o sistema de registro de marcas é de direito especial. Vale destacar, no entanto, que o direito especial está contido no direito geral10.

No Brasil, as normas que reprimem as condutas desleais e aquelas que instituem e organizam o sistema de registro de marcas estão contidas na Lei 9.279/96, doravante denominada LPI - Lei da Propriedade Industrial.  

Reportando à lição de ASCARELLI11, estando destinadas a cumprir um mesmo fim, qual seja o de proteção da qualidade da concorrência, há entre o direito voltado à repressão da concorrência desleal e a proteção oriunda do sistema jurídico de registro de marcas uma relação integrativa não derrogatória. Nesse sentido é o disposto no art. 2º da LPI, cujos incisos III e V estipulam que a proteção aos direitos de propriedade industrial (categoria ampla que abarca a proteção a marcas) é implementada pela concessão de registros de marca e pela repressão à concorrência desleal.  

O caso língua de gato - breve síntese

A autora requer a anulação dos registros de marcas nominativas "Língua de Gato" da ré, alegando que o signo evoca conteúdo descritivo, uma vez que seria comumente empregado para identificar chocolates em formato determinado12. No seu entender, a concessão dos registros das marcas em questão impacta negativamente a livre concorrência e a iniciativa econômica. Argumenta, ainda, que o uso do termo "Língua de Gato" para identificar o formato do chocolate é antigo e tornou-se comum mundialmente, sendo utilizado em diversos idiomas, o que seria facilmente comprovável por meio de fontes de fácil acesso ao público em geral. Postula que o tipo de chocolate "Língua de Gato", em alemão "Katzenzungen", foi criado no ano de 1892, em Viena, pela chocolateria austríaca Küfferle, hoje pertencente à Lindt & Sprüngli, que utiliza atualmente a expressão "Cat Tongues" para designar o tipo de chocolate sob a marca Lindt. Acrescenta que diversas marcas comercializam o chocolate no formato de "língua de gato" no Brasil.

A base legal de seu pedido é encontrada no art. 124, inciso VI, da LPI (lei 9.279/96), que estabelece não serem registráveis como marca:

VI- sinal de caráter genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir, ou aquele empregado comumente para designar uma característica do produto ou serviço, quanto à natureza, nacionalidade, peso, valor, qualidade e época de produção ou de prestação do serviço, salvo quando revestidos de suficiente forma distintiva;

A ré, a seu turno, destaca ser titular do direito exclusivo ao uso da marca "Língua de Gato" desde a década de 1940, sendo notoriamente conhecida no Brasil. Defende que "Língua de Gato" não é de uso comum no Brasil, que sua marca possui distintividade adquirida e que o uso do signo por concorrentes tem caráter parasitário13.

Na sentença, o juízo explicou que para a aferição do alegado caráter descritivo da expressão "Língua de Gato", é necessário verificar se, na data do deferimento dos registros de marca em questão, isto é, em 2/2/16, "os agentes econômicos recorrentemente se valeriam do uso da expressão para diretamente caracterizar ou designar chocolates e produtos correlatos." Seguindo, acrescentou:

"Embora seja incontroverso que outras empresas fazem uso do termo "Katzenzungen", "Cat Tongue", "Langue de Chat" há muitas décadas em outras jurisdições, o contexto brasileiro e o uso da expressão "Língua de Gato" é que deve ser analisado para a solução da lide. No entanto, esse fato não é irrelevante, pois demonstra que a marca anulanda, em sua origem, não é arbitrária, sendo mera tradução de expressões de uso comum no exterior."

Como primeiro indício de que "Língua de Gato" seria de uso comum na data mencionada, o juízo valeu-se de um verbete de dicionário que vincula o signo a chocolates e biscoitos. Lembrando ser necessário haver prova de que o uso da expressão seria comum, faz referência à marca mista de terceiro, depositada em 2011 para assinalar "chocolates", que apresentava as expressões "Língua de", seguidas do desenho de um gato14. Tal fato comprovaria haver, já em 2011, um concorrente da ré utilizando o signo "Língua de Gato" para assinalar chocolates. Considera, ainda, outros produtos que foram colocados no mercado em 2014 vinculando a expressão "Língua de Gato" a chocolates, de forma que teria restado comprovado que, "antes de 2016, além do próprio grupo econômico da ré, pelo menos outros cinco concorrentes usavam a expressão "LÍNGUA DE GATO" para designar seus produtos de chocolate em formato oblongo e achatado, incluindo-se um dos maiores varejistas do Brasil."

De especial relevância as seguintes passagens da sentença:

"A alegação de que os concorrentes fariam uso parasitário da marca da autora não é verossímil, dado o fato incontroverso nos autos de que os chocolates em tal formato são popularmente comercializados no mundo desde o século XIX, sempre sendo designados por expressões relativas a sua forma.

Não foi a empresa ré quem inventou o formato do chocolate ou mesmo a expressão que o denomina. Tampouco há indícios de que a ré tenha sido a primeira a vender tais formatos de chocolate no país, bem como não é a única que o faz atualmente ou quando do exame dos pedidos de registro questionados.

É fato comprovado que a ré tem como um de seus principais produtos o chocolate do tipo "LÍNGUA DE GATO". A partir dele, criou diversas marcas mistas compostas por este elemento nominativo, mas também por outros elementos gráficos que conferem aos conjuntos-imagem distintividade, possibilitando seu registro. Por outro lado, a expressão de uso comum isoladamente não pode ser apropriada.

Observa-se que, ao obter exclusividade para o uso do elemento nominativo "LÍNGUA DE GATO" para assinalar chocolates, a sociedade ré vem se utilizando deste registro para compelir as suas concorrentes a não comercializar os chocolates no formato comum oblongo, mesmo que o termo "LÍNGUA DE GATO" não esteja sendo usado como elemento marcário e sim descritivo, em clara atitude anticoncorrencial.

Vejam-se os exemplos abaixo, trazidos pela própria ré no evento 7.8 e 7.9, em que houve notificações extrajudiciais encaminhadas a concorrentes que adotam a expressão "LÍNGUA DE GATO" para descrever seus chocolates:

(...)

Assim, denota-se que a sociedade ré buscou o registro da marca na forma nominativa após décadas possuindo apenas marcas mistas, porque tais marcas mistas não serviam de impedimento para que seus competidores usassem a expressão "LÍNGUA DE GATO" para descrever seus próprios produtos.

Nesse sentido, reputo estar provado que a expressão "LÍNGUA DE GATO" é, há anos antes do exame dos pedidos de registro das marcas nominativas da empresa ré, de uso comum no segmento mercadológico de chocolates, sendo utilizada para designar um determinado formato do produto, que se assemelha à língua de um gato".

No que diz respeito à questão da distintividade adquirida, o juízo concluiu ter faltado prova desse fato, tornando inaplicável a exceção prevista na parte final do art. 124, VI, da LPI ao caso em análise. Em conclusão, entendeu comprovado que o signo "Língua de Gato" é de uso comum para designar chocolates em formato oblongo e achatado. No entanto, considerou que, ao longo dos anos, a ré desenvolveu uma ampla linha de produtos sob as marcas registradas "Língua de Gato", os quais merecem proteção. Dessa forma, decidiu que, para esses outros produtos, não se aplica a hipótese de que o sinal, seja ele misto ou nominativo, tenha caráter genérico.

Análise da sentença

No vernáculo, o signo "língua" denota (primeiro nível de significação, sentido literal), de acordo com o dicionário da empresa Google, que é proporcionado pela Oxford Languages15, o "órgão muscular recoberto de mucosa, situado na boca e na faringe, responsável pelo paladar e auxiliar na mastigação, deglutição e produção de sons". Por outro lado, o signo "gato" denota um "pequeno mamífero carnívoro, doméstico, da família dos felídeos (Felis catus), descendente do gato selvagem encontrado na África e no Sudoeste da Ásia (Felis silvestris libyca)". No primeiro nível de significação, o signo "língua de gato" denota, portanto, o órgão muscular recoberto de mucosa, situado na boca e na faringe do gato.

Contudo, a disputa jurídica não se refere ao uso literal do signo "língua de gato", mas sim à sua aplicação para um tipo de chocolate, o que reporta ao segundo nível de significação (conotação). É necessário investigar quais fatores contribuíram para a associação do signo a esse significado adicional, considerando o contexto sociocultural do público-alvo brasileiro.

Antes disso, é importante esclarecer que, ao contrário do que foi postulado na sentença em análise, é irrelevante para o caso o fato de os signos "Katzenzungen", "Cat Tongue" ou "Langue de Chat" serem conhecidos em outras jurisdições há muitas décadas e "Língua de Gato" ser uma tradução dessas expressões. Isso porque, para a maioria do público brasileiro, que não domina línguas estrangeiras, esses signos não denotam ou conotam qualquer conteúdo, pois não se referem a um objeto, conceito ou ação conhecida pelos falantes de português. Sem denotação em português, esses signos também não carregam conotações culturais ou contextuais.

Mas mesmo que assim não fosse, é questionável, no que tange o signo "Katzenzungen", se seria possível defender ser termo genérico para o público falante alemão, ao menos no que tange o consumidor austríaco. Uma busca internacional de registros de marcas indica o registro da marca austríaca "Original Wiener Katzenzungen" para produtos de confeitaria e padaria, bolos, chocolates16. Considerando que os signos "Original" (original) e "Wiener" (vienense) são descritivos na língua alemã, é razoável presumir que o escritório austríaco de marcas não teria registrado o sinal se também o signo Katzenzungen fosse considerado descritivo17.

Nota-se, ademais, que dicionários frequentemente apresentam verbetes que vinculam marcas de sucesso aos produtos que designam18. Por exemplo, o signo "havaianas" é definido como sandálias de borracha19, e "Lego" como brinquedos compostos por peças plásticas encaixáveis20. Se a presença de um verbete no dicionário fosse indicativo de que uma marca se tornou de uso comum, isso significaria que marcas amplamente reconhecidas e estabelecidas, como Coca-Cola, Havaianas e Google, poderiam estar em risco de perder sua proteção como marca simplesmente por serem incluídas em dicionários com definições associadas aos produtos ou serviços que designam.

Seguindo então a inquirir a razão que levou à associação do signo "Língua de Gato" a chocolate com uma determinada forma, observa-se que, semelhante ao caso das "Havaianas", que conotam sandálias de borracha, o signo "Língua de Gato" foi associado ao chocolate devido ao trabalho desenvolvido ao longo de mais de 80 anos pelo agente econômico por trás da marca "Kopenhagen". O direito de marcas visa proteger a qualidade da concorrência, e o agente econômico que conquista mercado através de esforço próprio e agrega valor ao sinal que utiliza, desfruta de proteção jurídica. Isso se aplica tanto às marcas registradas quanto às de fato, protegidas contra concorrência desleal.

A proteção do trabalho próprio associado ao sinal é a regra, pois o bem maior tutelado é a qualidade da concorrência. Assim, um agente econômico que alcança grande sucesso não deve temer ser punido pelo seu êxito21. Nesse contexto, é irrelevante se a ré "inventou" ou não o formato do chocolate, que não é nem mesmo objeto da disputa22, ou a expressão que o denomina. O que importa é que o uso contínuo do signo por mais de 80 anos fez com que ele fosse vinculado pelo público consumidor ao chocolate em questão.

Em razão de sua importância como regulador das relações econômicas no mercado, a proteção concorrencial garantida às marcas (regra) vem vinculada à responsabilidade social do agente econômico em relação ao valor agregado à marca. Isto em consideração, a exceção à regra de proteção ocorre quando há negligência na preservação desse valor.  

Para apurar casos em que se aventa a possibilidade de um signo ter se tornado de uso comum (genérico), é necessário verificar se e em que medida o titular negligenciou a proteção garantida à sua marca, permitindo, especialmente, que terceiros a utilizassem no mercado como um termo descritivo, levando à sua generalização. No caso em análise, a própria sentença destaca os esforços da ré em preservar sua marca por meio de ações judiciais.

É importante nunca perder de vista que o valor protegido pelo direito de marca está centrado no trabalho associado à marca, com foco na qualidade da concorrência. Na falta de tal proteção, o funcionamento do mercado seria comprometido, prejudicando a ordem econômica.

Por essas razões, entre outras, não é possível concordar com as conclusões da sentença, embora ela tenha proporcionado uma oportunidade valiosa para revisar os princípios do direito de marcas e aprofundar o entendimento da semiótica.

-------------------------

1 Sigo adotando a tradição das universidades na Alemanha, que empregam os termos semiótica (Semiotik) e semiologia (Semiologie) como sinônimos.

2 Considerando a produção acadêmica no Brasil, o tema marcas e semiótica faz recordar o saudoso Denis Borges Barbosa. Sua tese de doutoramento versou sobre a matéria. Vide BARBOSA, Denis Borges. A proteção das Marcas - Uma perspectiva semiológica. Rio de Janeiro, Lumen Juris: 2023, 2ª edição.

Vide no que toca denotação e conotação, por exemplo, as obras de Roland Barthes, filósofo e semiólogo francês. Barthes explorou os conceitos de denotação e conotação em diversos trabalhos, por exemplo, em Elementos de semiologia e em Sistema da Moda.  Para o presente artigo é feita referência direta à obra Mitologias, na tradução em alemão: BARTHES, Roland. Mythen des Alltags, Suhrkamp, Berlin, 2010, págs. 251 ss.

4 Havendo multiplicidade de agentes econômicos e na falta da marca, os produtos só poderiam ser diferenciados por preços.

5 Sob uma perspectiva econômica o vocábulo mercado reporta ao ambiente real ou virtual onde, na presença de oferta e demanda, os agentes econômicos interagem entre si formando o preço. Sob a perspectiva jurídica o mercado é considerado como instituição, i.e., como um sistema integrado de regras que estrutura a interação econômica entre agentes.

6 Vide o postulado em outra ocasião: "As leis antitrustes ocupam-se com a liberdade da concorrência, enquanto as normas sobre concorrência desleal se ocupam da qualidade da concorrência. Ambas, liberdade e qualidade pressupõem, necessariamente, existência da concorrência: daí afirmar que a proteção à concorrência se procede por duas vias." GRAU-KUNTZ, Karin. Da defesa da concorrência, in Revista do IBPI N. 14.

7 CERQUEIRA, José da Gama, Tratado da Propriedade Industrial, Volume 2, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pág.1274.

8 Vide SILVEIRA, Newton, Propriedade Intelectual, Barueri: Manole, 2018, pág. 25: "É que tudo o que cerca o produto e permite seu reconhecimento pelo consumidor é marca, na medida de seu valor distintivo."

9 CERQUEIRA, José da Gama, Tratado da Propriedade Industrial, Volume 2, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pág. 839.

10 Vide nessa linha BERCOVITZ, La formación del derecho de competência, Actas de Derecho Industrial, Tomo 2, 1975, págs. 61-82.

11 ASCARELLI. Teoria de la concurrencia y de los bienes imateriales. Madrid: Bosch, 1970, pág. 178.

12 O formato do chocolate pode ser descrito como oblongo, achatado, com uma superfície plana e extremidades arredondadas.

13 A marca "Língua de Gato" é tradicionalmente comercializada pela empresa conhecida como "Kopenhagen".

14 O pedido da marca em questão foi deferido e posteriormente arquivado por falta de pagamento da taxa de concessão de marca. Mas mesmo que não tivesse sido arquivado, culminando em marca registrada, não teria o condão de servir como prova de comercialização do produto.

15 Os verbetes aparecem automaticamente, quando o usuário busca por uma palavra determinada, seguida pelo termo "sinônimo", usando os serviços de busca da empresa Google.

16 Trata-se de registro de 11.08.2000, com o número 190105. Disponível em: https://www.patentamt.at/.

17 Sem que tenha sido procedida a uma análise detalhada dos resultados e a título meramente informativo, destaca-se que a busca internacional ainda indicou a existência de registros dos signos "Katzenzungen", "Langue du Chat" e "Cat Tongue" para a classe 30 em diferentes países.

18 A explicação oferecida na página eletrônica do dicionário Oxford Languages referente à cooperação Oxford Languages e Google auxilia a compreender a razão de dicionários apresentarem verbetes que vinculam marcas de sucesso aos produtos que designam. Disponível em: https://languages.oup.com/google-dictionary-pt/.

19 Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/havaianas.

20 Disponível em: https://dicionario.priberam.org/lego.

21 Por esta razão, a sentença chamou a atenção nas redes sociais de profissionais da área de marketing, dando ensejo a críticas. O sucesso de uma marca, construído ao longo do tempo e através de um esforço considerável, é visto por estes profissionais como um reflexo da eficácia das estratégias de branding e marketing. Negar proteção a uma marca quando alcança sucesso foi recebido como um golpe na essência da profissão.

22 Reportando ao trecho da sentença acima transcrito, nota-se dificuldade do juízo em identificar o objeto da disputa, que não versa sobre a comercialização de "chocolates no formato oblongo", mas antes no emprego do signo "Língua de Gato" no mercado para denotar este tipo de chocolate.

Karin Grau Kuntz

VIP Karin Grau Kuntz

Doutora e Mestre (LL.M) em Direito pela LMU - Munique, Alemanha. Incorpora em Munique o time do escritório Meissner Bolte (www.mb.de) e atua no Brasil como jurista no escritório Grau e Hansen.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca