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Os fantasmas vivem nas súmulas

Violação do devido processo legal e da legalidade democrática pelo não enfrentamento da superação ou alteração de entendimento enunciado em súmula face à alteração de seu substrato legislativo. Uma discussão à luz do sistema brasileiro de precedentes e do Tema 477 do STF.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Atualizado às 10:23

Nas súmulas dos tribunais, por vezes, habitam fantasmas. Preceitos normativos desencarnados mas que assombram operadores do direito, em especial advogados e jurisdicionados, por encontrar alguma materialidade em enunciados sumulares enunciativos da jurisprudência de determinado tribunal.

Tomaremos por exemplo a esta discussão, a súmula 435 do TST, cujo enunciado é assim redigido:

Aplica-se subsidiariamente ao processo do trabalho o art. 557 do CPC.

Mencionado Enunciado sumular, editado conforme Resolução 185/12, publicada no DEJT - Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho divulgado em 25/9/12, baseia-se em artigo do CPC/73, revogado pelo CPC/15.

Mencionado art. 557 do CPC/73, que disciplina os deveres-poderes do relator e o agravo interno, não teve a redação replicada pelo CPC/15, que passou a disciplinar a matéria, com redação diversa, em seus arts. 932 e 1.021.

Quanto ao art. 932 do CPC/15, Cassio Scarpinella Bueno afirma que sua redação é mais completa e mais bem acabada do que a do art. 577 do CPC/731, se mostrando mais precisa em termos de técnica processual2.

O art. 557, do CPC/73, nos termos da lei 9.756/98, era assim redigido:

Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF, ou de Tribunal Superior. (Redação dada pela lei 9.756/98)

§ 1 o -A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. (Incluído pela lei 9.756/98)

§ 1 o Da decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento. (Incluído pela lei 9.756/98)

§ 2 o Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre um e dez por cento do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor. (Incluído pela lei 9.756/98)

Quanto aos poderes do relator, para além das hipóteses do inciso III2, do art. 932, do CPC/15, permite-se, nos termos do inciso IV e alíneas, do mesmo artigo, seja negado provimento, monocraticamente ao recurso que for contrário a:

  1. súmula do STF, do STJ ou do próprio tribunal;
  2. acórdão proferido pelo STF ou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos;
  3. entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

Quanto à necessidade de cancelamento ou revisão das súmulas vinculantes em razão da alteração do substrato legislativo que ensejou a sua edição, o STF já se manifestou ao julgar o Tema 477 da Repercussão Geral, conforme item 1 de seu enunciado, que:

  1. A revogação ou modificação do ato normativo em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante acarreta, em regra, a necessidade de sua revisão ou cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal, conforme o caso.

Nos parece evidente a necessidade de revisão, pelo Colendo STJ, da súmula 435 de sua jurisprudência, em razão da revogação do CPC/73 e de seu art. 557, substituído pelo art. 932 do CPC/15.

Ao julgar o leading case, RE 1.116.485/RS, de relatoria do excelentíssimo ministro Luiz Fux, o Tribunal Constitucional entendeu, como era esperado que se entendesse, pela ausência de supremacia judicial e pela possibilidade, à luz da Teoria dos Diálogos Constitucionais e do pluralismo dos intérpretes constitucionais, que o Poder Legislativo edite Lei, superveniente à Súmula, com conteúdo divergente desta, com a possibilidade de prevalência do ato normativo que contraria a súmula vinculante.

Neste sentido, a súmula 435 da jurisprudência do Colendo TST, necessita ser revisada, não cabendo a sua aplicação no sentido da manutenção da vigência de artigo legal revogado.

É o que ocorre quando não se analisa a súmula 435 do TST à luz da alteração legislativa, ao que parece, fazendo viger os poderes do relator da forma como disciplinados pelo CPC/73 em seu art. 557, com a redação dada pela lei 9.756/98.

O art. 557, caput, do CPC/73 determinava ao relator, como verdadeiro dever-poder, que negasse seguimento a recurso em confronto com jurisprudência do STF.

Este dever-poder não foi reproduzido no atual CPC, que positivou a possibilidade de, mediante decisão monocrática, o Relator negar provimento a recurso que for contrário a:

  1. súmula do STF, do STJ ou do próprio tribunal;
  2. acórdão proferido pelo STF ou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos;
  3. entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

Onde antes havia a possibilidade de se negar seguimento, hoje há a possibilidade de, monocraticamente, se negar provimento, optando o legislador por privilegiar o julgamento monocrático na hipótese de existir: (I) súmulas do STF, do STJ, ou do próprio tribunal o qual integra o relator; (II) acórdãos proferidos na sistemática dos recursos repetitivos; e (III) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.

Ocorre que, em que se pese o art. 932 do CPC não colocar dentre as previsões que autorizam o julgamento monocrático do relator, para negativa de provimento ao recurso, a existência de ADIN julgada pelo STF acerca de uma determinada matéria, bem como não haver previsão expressa para negar provimento, monocraticamente, a um recurso, em razão da jurisprudência da Corte Constitucional, existem decisões entendendo pela possibilidade de fazê-lo, ampliando-se os limites do inciso IV, do art. 932, do CPC.

O que se estranha, in casu, é o fato de se tratar de hipótese de aplicação subsidiária do CPC na seara trabalhista, em razão da ausência de disposição legal específica na CLT, silente quanto ao tema, em que, além de haver a aplicação do artigo, em razão de súmula superada, do TST, amplia-se os limites do artigo ao se estender as hipóteses do julgamento monocrático outras hipóteses não expressamente previstas no CPC.

Por óbvio que se pode argumentar, por exemplo, que se aplica a súmula 435 do TST, para negar, monocraticamente, provimento ao recurso ordinário da parte, nos termos do art. 932 do CPC, em razão da substituição do art. 557 do CPC/73 pelo mencionado artigo do diploma processual civil vigente, em razão da essência da jurisprudência enunciada na súmula 435, que é a de permitir, em razão do silêncio da CLT, a aplicação subsidiária na Justiça do Trabalho das disposições concernentes aos poderes do relator, inclusive quanto à negativa de seguimento aos recursos e à possibilidade de negar, monocraticamente, provimento, ao apelo ordinário.

Acrescendo-se à fundamentação supra, o argumento de que, no entendimento do julgador, o CPC pretendeu, em seu artigo 932, inciso IV, conforme suas alíneas, privilegiar a possibilidade de julgamento monocrático do recurso, para negar provimento, quando este fosse contrário a entendimento vinculante ou com efeitos erga omnes, do tribunal julgador, ou das Cortes Superiores a que submetido, poder-se-ia ver alguma viabilidade na extensão dos poderes do relator no julgamento monocrático, para negar provimento, ao recurso.

Outrossim, encontram-se, nos mecanismos de busca, decisões que aplicam a súmula 435 do TST, em pleno ano de 2024, sem fazer qualquer referência ao art. 932 do CPC e que, ao que parece, negam, monocraticamente, provimento ao recurso, com fulcro na súmula 435 do TST e na economia e celeridade processuais, usurpando a competência do órgão colegiado, ferindo o devido processo legal e o princípio da legalidade (uma vez que tais decisões tomam por válida súmula que se refere a dispositivo legal já revogado e sequer mencionam a substituição daquele dispositivo por outro da lei nova, aplicando, em razão da súmula, dispositivo legal revogado, como se vigente estivesse).

É estranho, com o devido respeito, que tais decisões, que ampliam os limites estabelecidos por lei para que se possa negar, monocraticamente, provimento a recurso, sejam fundamentadas a partir de artigos como o 765, da CLT, que dispõe que os juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas, uma vez que, a razoável duração do processo, em oposição ao que parte da doutrina e jurisprudência, por vezes, denomina por princípio da celeridade, abrange o tempo devido para o válido e regular desenvolvimento do processo, que deve observar a necessidade de garantir às partes, os recursos e instrumentos previstos em lei, além da observância ao próprio devido processo legal, sem o qual, não há razoável duração do processo, mas mera celeridade, com atropelos, aos ritos e às garantias das partes.

Por fim, necessário salientar que, na hipótese de se interpor agravo interno da decisão monocrática que aplica súmula cujo substrato legal foi alterado, mas que não tenha sido objeto do cancelamento ou revisão que estabelece o item "1" da Tese fixada no Tema 477 da Repercussão Geral pelo STF, ou de decisão que usurpa a competência do órgão colegiado, em razão de o julgamento monocrático se dar fora das expressas hipóteses autorizadas em lei, não há que se falar em justa causa para a aplicação da multa prevista no §4º, do art. 1.021, do CPC.

A multa do §4º, do art. 1.021 do CPC, deve ser aplicado apenas e tão somente em hipóteses de manifesta inadmissibilidade ou de manifesta improcedência, não sendo o caso quando há alargamento, pelo relator, das hipóteses previstas em lei para o julgamento monocrático, com a usurpação da competência do órgão colegiado, hipótese em que o agravo interno é manifestamente cabível e que, a depender do caso concreto, na maior parte das vezes, não haverá manifesta improcedência.

Como bem salienta André Roque, a multa deve ser limitada aos casos de improcedência evidente, de abuso do direito de recorrer - a multa consiste em sanção, que pressupõe comportamento ilícito [...]3.

Por fim, necessário salientar que, outros provimentos vinculantes subsistem em nosso ordenamento jurídico, sem que se enfrente a sua superação ou alteração, em razão da alteração dos textos legais em que se fundamentam, como no caso da súmula 519 do STJ, em razão do advento do art. 85, do CPC/15.

Embora existam decisões de turmas do STJ que analisam a questão, algumas afirmando a não superação da súmula, é certo que o tema precisa ser enfrentado pelo Tribunal, pelo mesmo rito qualificado que ensejou a aprovação do enunciado, não sendo justo ou democrático, que a subsistência, ou não, do provimento vinculante, seja analisado casuisticamente pelos órgãos fracionários, sem a observância do rito qualificado que permite o estabelecimento destes enunciados.

É necessário que olhemos com seriedade o sistema brasileiro de precedentes, não como mero meio de eliminação de casos postos a julgamento ou de aceleração da justiça, sem que se observe o processo devido, adequado, colocando-se celeridade acima da razoável duração do processo, negando vigência aos incisos do §1º do art. 489 do CPC, bem como ao art. 1.022 do mesmo diploma processual e, por vezes (não poucas), ao inciso IX, do art. 93 da CF/88.

Justiça se faz com observância ao processo, à sua adequação, ao seu desenvolvimento regular e válido.

Não se pode, em razão das reconhecidas dificuldades enfrentadas, hoje, na prestação da jurisdição, se prestar "meia justiça", relativizar o devido processo legal, sob pena de criarmos uma grave cultura jurídica de relativização do devido processo e do próprio Estado Democrático de Direito.

Hoje, se relativiza, tendo-se em vista um suposto ideal de justiça, amanhã, se relativiza, pois se tornou cultural a relativização.

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1 Bueno, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. - 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 749. 2 Idem, ibidem.

2 III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida.

3 Roque. André. Comentários ao artigo 1.021. In: Comentários ao código de processo civil / Fernando da Fonseca Gajardoni . [et al.]. 5. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2022 (p. 1563). (grifos nossos)

Guilherme Richena Ferreira

VIP Guilherme Richena Ferreira

Advogado, pós-graduado e mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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