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Direito das sucessões e planejamento sucessório

Direito das sucessões, conceitos, institutos centrais e algumas relações aos manejos necessários. A onda do planejamento sucessório, vantagens e riscos jurídicos.

sábado, 20 de julho de 2024

Atualizado em 19 de julho de 2024 10:28

1. Generalidades. Com a morte natural de alguém é aberta a sucessão, que é a transferência de herança de bens do morto aos herdeiros vivos; ou transmissão de bens, direitos e obrigações. A sucessão pode ser de duas formas, legítima e testamentária. Fala-se em morte natural, porque o direito brasileiro, como outros tantos, não reconhece a morte civil como causa constitutiva de sucessão.

Alguns conceitos e diferenças são importantes. Uma diferença, é entre sucessão e inventário. Sucessão, aqui, se liga à morte, e é a transmissão da propriedade dos bens. Já inventário tem por finalidade apenas a descrição dos bens, e é um procedimento obrigatório mesmo havendo um só herdeiro. Também, o conceito de sucessão aberta é, juridicamente, um bem imóvel (CC, art. 80, II), e exige para ultimação da transmissão, escritura pública.

Outro conjunto de conceitos é com herança, a universalidade de direitos (CC, art. 91), e que se mantém íntegra até que seja feita a partilha. E espólio, que pode ser conceituado como a herança em juízo, responsável pelo pagamento das dívidas do morto. Caso o espólio não consiga pagar o que deve, arrostará a situação jurídica de insolvente.

Vê-se que praticamente tudo na matéria é regulada pela morte, sendo importante ficar claro que não pode haver herança de pessoa viva, como também não existe herdeiro de alguém vivo. Quando um pai, por exemplo, apresenta um filho como seu herdeiro há erro, porque o pai ainda não morreu. Herança e herdeiro são conceitos jurídicos que só surgem com o evento morte.

Assim, será ilegal um contrato de herança com pessoa viva, o pacto sucessório. E aqui se tornam aflitivas algumas situações já meio 'populares', vez que tem havido decisões superiores1 nulificando as chamadas holdings2 familiares, por considerarem, corretamente, ato simulado o esvaziamento patrimonial de uma pessoa, utilizando-se como gatilho epocal o evento morte. Vê-se que o vetusto princípio da autonomia de vontade não é absoluto3, como o próprio direito de testar também não será, já que, mesmo sendo o testamento um negócio jurídico unilateral com efeito mortis causa, em havendo herdeiro necessário o testador só poderá dispor da metade dos bens (CC, art. 1.789).

Uma coisa é certa e costuma assustar leigos que acreditam em 'blindagens' jurídicas: sempre toda e qualquer declaração jurídica, deixa testamentária, negócio, contrato, ou qualquer forma de acordo ou transação podem ser discutidos judicialmente, em razão de dois fatores bifrontes: a inércia do Judiciário e o direito constitucional de ação. Qualquer pessoa que não concordar com alguma situação jurídica, relativa à sua pessoa ou situação, pode propor demanda e se tornar autora processual. Se vai ter seu pedido julgado procedente ou não, é outra questão. Vê-se, então, que um fator que pode valer muito, em termos de planejamento sucessório, serão mecanismos otimamente bem concebidos que, de uma forma ou de outra, inibam seriamente - é o máximo que se consegue- ações judiciais. As pessoas mudam suas cabeças, casam-se, juntam-se, divorciam-se, têm filhos, introduzem terceiros na família e o que era manso e pacífico, pode se tornar conflituoso.

A Constituição da República e o Código Civil resolveram diversas questões provincianas e de valor, brasileiras, que representavam verdadeiros entraves e preconceitos nas relações pessoais, amorosas, parentais e jurídicas do país. Bem como melhoraram outras tantas. Inclusive ligadas ao bom e velho casamento.

Passa-se a examinar algumas delas.

2. União estável. Foi reconhecida como entidade familiar pela lei 8.971/94, e passou a valer para os direitos sucessórios equiparadamente ao casamento, com a inconstitucionalidade do Código Civil, art. 1790. Ainda, ao contrário de o que muitos pensam, a união estável não exige prazo mínimo para configuração; nem contrato escrito como prova da existência; bem como não obriga a que os unidos residam no mesmo imóvel. Talvez por isso, o medo de muitos namorados ou mesmo noivos4 -relações não jurídicas- em serem confundidos com união estável - relação jurídica-, e, daí, o grande número de contratos preventivos impeditivos de união estável, conforme artigo meu neste Migalhas5.

3. União homoafetiva. Em maio de 2011 foi finalmente reconhecida a união homoafetiva por espetacular unanimidade no STF (ADI 4.277 e ADPF 132) como união estável, em boa interpretação jurídica ao Código Civil, art. 1.723. Depois, o CNJ mandou, em 2013, pela Resolução 175, os cartórios do país realizarem o casamento, normalizando a situação. O fundamento jurídico da interpretação é a proibição constitucional a qualquer tipo de discriminação, aí, no caso, a por sexo. Meritoriamente, um triunfo do amor, sobre o ranço do preconceito, conforme artigo meu de 20156.

4. Sucessão do cônjuge ou companheiro. Além de seu direito à meação no patrimônio, que não se confunde com herança, cônjuges e companheiros passaram a ser herdeiros - desde que não separados judicialmente, ou não separados de fato há mais de 2 anos-, concorrendo com filhos ou ascendentes. Um nobre reconhecimento à relação conjugal em si. Também, na ausência de descendentes e ascendentes, receberão por inteiro a herança, afastando o parentesco colateral do morto. Todavia, não herdarão em três situações: se o regime era o da comunhão universal (CC, arts. 1.667 a 1.671); se era da separação obrigatória (CC, art. 1.641); ou se o regime era da comunhão parcial de bens, e o morto não deixou bens particulares.

Aqui, alguns aspectos importantes. Em 'troca' da sucessão legítima, que foi reconhecida ao cônjuge, tornando-o herdeiro necessário, tirou-se o usufruto vidual, assim ele não mais poderá usufruir os bens do morto, ficando, todavia, o direito real de habitação (CC, art. 1831), havendo quem o limite à permanência da viuvez. Também, vê-se que há variações para efeito sucessório, a depender do regime de casamento. E haverá a divisão da herança entre descendentes e cônjuge ou companheiro sobreviventes em duas situações: se o regime for da separação convencional de bens, quando não há qualquer comunhão; e na comunhão parcial se o morto deixou bens particulares.

5. Testamento. Ato em que uma pessoa, maior de 16 anos, faz declarações de última vontade, não somente de cunho patrimonial, e/ou dispõe de seus bens para após sua morte. Sílvio Venosa7 ensina, magistralmente, que é no testamento 'que se revela a maior amplitude de autonomia da vontade privada'. Esta lição precisa ser muito bem absorvida. Por testamento pode-se reconhecer filho (art. 1.609, III); nomear tutor (art. 1.729, par. único); determinar o próprio funeral; dispor sobre o próprio corpo (art. 14); instituir fundação (art. 62); e condomínio edilício (art. 1.332). Em relação aos bens, de qualquer valor, também é possível gravá-los com cláusulas de impenhorabilidade, incomunicabilidade e inalienabilidade, desde que fundamentadas.

São cinco os tipos de testamento: público, em cartório, com duas testemunhas; cerrado, que envolve uma escrita secreta e entregue em cartório, pelo próprio testador, perante duas testemunhas, para aprovação; particular ou ológrafo - se escrito pelo testador talvez a forma mais difícil de ser contestada dada a autenticidade documentoscópica-, podendo ser também digitado, só por ele, e lido a três testemunhas, sendo que todos o assinarão; marítimo e aeronáutico, para casos especiais nestas viagens; e militar, para quem estiver em serviço militar, funcionando o comandante da unidade como notário. Excepcionalmente admite-se a forma nuncupativa, oral, por exemplo de alguém ferido em combate.

Ainda, só o testamento admite o legado, que é uma deixa testamentária para determinado bem, seja ele de que espécie for, móvel, imóvel, joia, ações de sociedade, alimentos para determinada pessoa etc. Se à herança não concorrerem herdeiros, pode o testador dispor de todo o patrimônio por legados especificados.

Paralelamente, há ainda o instituto do codicilo, que não se trata de testamento, posto que seja declaração de última vontade, só que relativamente a disposições especiais sobre o próprio enterro, bens de pequena monta, móveis, roupas, joias não valiosas etc.

6. Colação. Qualquer herdeiro necessário que tiver recebido um bem em vida, do agora morto, como dote ou provisão de fundos, terá recebido uma antecipação da legítima, um pedaço antecipado de seu quinhão. Com isto, com a morte, terá que restituir ao monte o valor nominal atualizado para equiparação dos quinhões, com os outros herdeiros necessários. Se a doação for ao cônjuge, a necessidade de colação dependerá do regime de bens. Se for comunhão total, há colação; se for parcial ou separação, não há.

Vê-se que muita coisa pode ser feita por meio do testamento, inclusive relativamente a bens ilimitadamente vultosos, e empresas, envolvendo decisões e planejamentos perspicazes e inteligentes.

7. Planejamento sucessório. Passou-se a falar, muito, em planejamento sucessório. Por tudo que se vê acima, envolve ele uma complexa atividade preventiva e consultorial, aliada a atos e medidas efetivos que visam a optimizar decisões e projetos familiares com patrimônio, pensando-se na morte. O conceito atrai análises familiares, pessoais, relacionais, inclusive ligadas a regimes de casamento, previdenciária, financeira, patrimonial e tributária, principalmente agora que se antevê algum aumento no ITCMD, imposto de herança, à ordem progressiva de 8%, com a PEC 45, ou reforma tributária.

Sem sombra de dúvida, o planejamento sucessório é um cenário ideal para quem quer organizar patrimônio e relações, contando com evitação de atritos entre cônjuges, companheiros, herdeiros, legatários e familiares, podendo, também, nalguns casos, ter redução de despesas tributárias por meio da elisão fiscal, evitação do fato gerador.

Caso à parte, e juridicamente complexo, é a questão da chamada holding familiar, quando se choque com a vedação de contrato de herança de pessoa viva, o pacta corvina, regulada no Código Civil, art. 426. Também, a constituição de holding visando à blindagem patrimonial, cuja intenção seja esconder ou blindar bens de dívidas já existente, podendo ser considerada fraude a credores, se o devedor ainda não foi citado; ou fraude à execução, se já tiver havido a citação, neste caso envolvendo crime de ação pública (CP, art. 179). Assim, além de ilícito civil, pelo esvaziamento pessoal de bens, o que gera nulidade absoluta por simulação, pode haver incidência criminal. Há se reparar que a nova lei, 14.754, de dezembro de 2023, conquanto tenha tratado do trust no exterior, diz respeito somente à tributação, tendo sido omissa quanto à situação sucessória. Assim, por exemplo, se o settlor8 dispuser de todo o patrimônio à instituição de um trust, não deixando bens quando morrer, abrirá potencial questionamento judicial de um ou outro herdeiro necessário quanto ao empecilho ao pacta corvina, CC, art. 426.

Um dos pontos nodais de todos os planejamentos, atos e negociações é um fator meio singelo ou inocente, que muitos consideram óbvio, mas continua passando despercebido na prática negocial brasileira, com potência suficiente para nulificar atos jurídicos: é a exigência expressa da boa-fé, instituto que passou a ser cobrado no Código Civil, arts. 113, 128, 187, 307, par. único, 309, para as relações jurídicas no país9. Ocorre que a cultura brasileira, sabidamente com seus inúmeros jeitinhos, malandragens, espertezas, escapismos, contratos de gaveta, e outros tantos contorcionismos ilegais e fraudulentos contra o fisco, o sócio, o cônjuge, o companheiro, o herdeiro, ou quem mais se supuser possa ser ludibriado, não tem por espontaneidade antropológica a boa-fé como padrão10. Assim o controle da boa-fé objetiva nos contratos se torna elemento seriamente definidor de sua higidez.

8. Blindagem patrimonial. Não se pode confundir planejamento sucessório com blindagem patrimonial. Parece haver certa confusão, às vezes não totalmente inocente, entre os conceitos. Se planejamento sucessório é sabidamente um ambiente jurídico, envolvendo complexiva consultoria, a chamada blindagem patrimonial talvez seja apenas malandramente jurídica, quando promete, nalguns casos, a mirabolância da proteção total a um patrimônio, quando ele já se encontra comprometido. É comum clientes recorrerem ao advogado buscando blindagens totais a seus patrimônios, e saírem razoavelmente frustrados quando não são enganados, acerca da relativização do sonho da garantia.

Foi sedimentado um abismo entre uma produção jurídica científica mínima, e o que muitos vêm 'aprendendo' sobre Direito na internet, principalmente com vídeos, em que apenas falar envolve a facilidade da informalidade e a leveza do comprometimento ajustável com o interlocutor, que pode entender o que quiser. Já na produção jurídica escrita, há toda uma necessidade de concatenação, lógica jurídica e ordenação inclusive gramatical, que ficará gravado para sempre, conforme artigo11 meu sobre a diferença entre palavra escrita e palavra falada.

Pelo estudo do Direito das Sucessões, e o de Família, veem-se inúmeros conceitos, possibilidades e necessidades que se intercalam, alterando decisivamente soluções e efeitos. Uma boa metodologia de planejamento sucessório será necessária para o tratamento destas e outras questões.

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1 STJ, REsp 1.424.617/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJE 16/06/2014.

2 São tipos de holdings: pura, de controle, de participação, de administração mista, patrimonial e imobiliária.

3 Heloísa Carpena Vieira de Mello, in TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 311, em capítulo intitulado Crise da Autonomia da Vontade e Dirigismo Contratual, mostra que 'A vontade individual como elemento essencial do contrato... deixa de ser soberana.'

4 É claro que atualmente um noivado, que em muito já perdeu sua essência protocolar e preparatória do casamento, pode ser uma união estável anterior ao casamento, mas o conceito tradicional de noivado não importa em relação jurídica.

5  Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/346144/contrato-de-namoro-e-o-triunfo-de-ma-fe

Disponível em: https://observatoriogeral.com/2015/05/25/casamento-gay-e-o-preconceito-contra-o-amor/

7 VENOSA. Sílvio de Salvo. Direito civil - direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2001, p. 98.

8 Art. 12 da lei, 'pessoa física que, por meio da escritura do trust, destina bens e direitos de sua titularidade para formar o trust.'

9 Nestor Duarte, in PELUSO, Cesar (coord.). Código civil comentado. 15 ed. Barueri: Manole, 2021, p. 122, comentando o art. 187, que trata da boa-fé e do ato ilícito afirma: 'Não exige a lei o elemento subjetivo, ou a intenção de prejudicar, para a caracterização do abuso de direito, bastando que seja distorcido o seu exercício.'

10 Não se trata de visão escatológica, mas de uma sociedade que ocupa o 2º lugar em fraude digital no mundo, só perdendo para a China, fonte: Visa Merchant Fraud Report 2023; aplica um golpe a cada 16 segundos e furta 2 celulares a cada minuto no país. Disponível em: https://www.cbncaruaru.com/artigo/dois-celulares-sao-roubados-ou-furtados-por-minuto-no-brasil .

11 Disponível em: https://observatoriogeral.com/2022/08/12/qualquer-chimpanze-fala-e-reenvia-mensagens-ja-escrever/

Jean Menezes de Aguiar

VIP Jean Menezes de Aguiar

Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas da FGV e da RDA - Revista de Direito Administrativo, FGV.

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