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O caso Alan Ruschel e a legítima defesa no direito desportivo

Aplica-se o instituto da legítima defesa ao jogador de futebol Alan Ruschel, expulso da partida entre Juventude e Internacional pela Copa do Brasil após desferir um soco num torcedor que invadiu o gramado e tentou agredir os jogadores?

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Atualizado às 14:52

No dia 13/7/24, em partida válida pela Copa do Brasil, o jogador do Juventude, Alan Ruschel, foi expulso de campo após desferir um soco num torcedor do Internacional que invadiu o gramado para supostamente agredir um jogador do próprio time que acabara de perder um pênalti, conforme fartamente noticiado pela mídia esportiva1.

O árbitro da partida anotou na súmula do jogo: "Foi culpado de conduta violenta - Por dar um soco no rosto de um torcedor identificado com um agasalho do Internacional, após o mesmo ter invadido o campo de jogo e partir de forma agressiva em direção aos atletas. Conforme estipula a regra do jogo 2024-2025, em conduta violenta página 118. Informo que o atleta expulso saiu de campo normalmente sem causar problema"2.

Esse fato gerou grande debate nos programas esportivos acerca da correção da expulsão de um atleta que teria agido em defesa de si e de seus companheiros.

A fim de auxiliar no debate do tema, trazemos uma análise do ponto de vista jurídico.

Em primeiro lugar, os fatos ocorridos durante uma partida profissional de futebol estão sujeitos a normas de diversas naturezas. Ao contrário do ditado popular do que acontece no campo fica no campo, a verdade é que o estádio de futebol não é uma nação independente, estando as condutas ali ocorridas sujeitas às leis, tal como o Código Civil e o Código Penal, mas, também, às normas desportivas, como o Regulamento Geral de Competições para 2024 da CBF - Confederação Brasileira de Futebol e o Livro de Regras do Jogo 2023/2024 da IFAB - The International Football Association Board.

A Regra 12 do Futebol estabelece: "A conduta violenta ocorre quando um jogador usa ou tenta usar força excessiva ou brutalidade contra um adversário quando não está disputando a bola, ou contra um companheiro de equipe, um membro da comissão técnica, um membro da equipe de arbitragem, um espectador ou qualquer outra pessoa, independentemente de haver contato físico"3.

Foi com base nisto que Alan Ruschel foi expulso de campo. Além da expulsão, há possibilidade de o atleta vir a sofrer sanção pela Justiça Desportiva.

Especificamente acerca da prática de infrações disciplinares desportivas, a lei 9.615/98, no inciso VI do artigo 11, atribui ao Conselho Nacional do Esporte a competência para aprovar os Códigos de Justiça Desportiva e em seus artigos 49 e seguintes regulamenta a Justiça Desportiva no país4.

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva5, reformado pela Resolução CNE 29/09, em seu art. 254-A, prevê a prática de agressão física como uma infração disciplinar.

Referida normativa estabelece, em seu art. 156, o conceito de infração disciplinar como fato típico, antidesportivo e culpável. Fica evidente o paralelo à visão tripartida do delito, durante décadas maturada pela dogmática penal, que define que crime é o fato típico, antijurídico e culpável.

Ainda, em seus arts. 160 e 161, prevê excludentes de culpabilidade. O art. 160 aborda a coação irresistível e a obediência hierárquica, que também são previstas no art. 22 do Código Penal, ao passo que o art. 161 trata da inexigibilidade de conduta diversa, considerada pela doutrina penal uma causa supralegal de exclusão de culpabilidade.

Infelizmente, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, em nosso entender, peca ao não prever adequadamente aquilo que no Direito Penal são hipóteses de excludente de ilicitude, tal como estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito. 

Na seara penal, as excludentes de ilicitude (ou antijuridicidade) e as excludentes de culpabilidade desempenham papéis distintos na análise de um crime.

As excludentes de ilicitude são circunstâncias que tornam uma conduta, que em princípio seria típica (preenchendo todos os elementos do tipo penal), juridicamente permitida, portanto, lícita6. As excludentes de culpabilidade, por outro lado, referem-se às circunstâncias que, mesmo diante de um fato típico e ilícito, afastam o juízo de reprovação da conduta por falta de um dos elementos da culpabilidade (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa)7.

Assim, as excludentes de ilicitude justificam o ato, tornando-o permitido apesar de ser típico. Já as excludentes de culpabilidade exculpam o agente, reconhecendo que, apesar de ter cometido um ato típico e ilícito, não deve ser penalizado devido a certas circunstâncias pessoais ou contextuais.

A conduta de Alan Ruschel, do ponto de vista penal, é lícita em razão de ter agido em legítima defesa sua e de terceiros, o que a fasta a antijuridicidade, razão pela qual não pode ser criminalmente responsabilizado pela eventual lesão corporal causada no torcedor invasor. É o que prevê o art. 25 do Código Penal: "Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.".

O art. 188, inciso I do Código Civil, também afasta a ilicitude civil de atos praticados em legítima defesa.

Ocorre que não há uma previsão expressa na norma desportiva da legítima defesa como uma excludente de antidesportividade. Entendemos, contudo, que o atleta que age em tal situação não fere o espírito de fair play, as regras do esporte, tampouco demonstra falta de ética e respeito pelos participantes do evento.

No caso em discussão, em que o atleta agiu em defesa de um adversário, sua conduta carrega forte espírito esportivo, demonstrando apreço por seu companheiro de profissão.

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva, contudo, além de não prever excludentes de antijuridicidade ou, especificamente, de antidesportividade, impede a aplicação de analogia ao Código Penal, nos termos de seus arts. 282 e 283.

Assim, numa leitura fria da norma desportiva, Alan Ruschel, que não pode ser civil e penalmente responsabilizado por sua conduta, já que agiu em legítima defesa e, portanto, licitamente, poderia ser punido disciplinarmente na Justiça Desportiva.

Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro é uma teia de normas que deve ser interpretado de maneira sistemática. Uma conduta que é lícita civil e penalmente por ser em defesa de legítimo direito não poderia caracterizar infração disciplinar desportiva, fazendo-se necessário um aperfeiçoamento do Código Brasileiro de Justiça Desportiva.

Enquanto isso, uma solução jurídica dentro das normas desportivas seria aplicar, por analogia, o §2º do art. 257 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, que prevê a infração disciplinar de participar de rixa, conflito ou tumulto durante partida, dispondo: "§ 2º Não constitui infração a conduta destinada a evitar o confronto, a proteger outrem ou a separar os contendores."

A situação envolvendo o atleta Alan Ruschel poderia até ser enquadrada como participação em tumulto, mas ainda que se enquadre como prática de agressão física, o §2º do art. 257 é uma expressa previsão de legítima defesa dentro das normas desportivas, afastando o caráter antidesportivo da conduta e sendo solução suficiente ao caso, por analogia.

Não bastasse, convém destacar que a lei geral do esporte (lei 14.597/23), prevê como crime a conduta daquele que invade local restrito aos competidores, com pena de reclusão de um a dois anos, nos termos do art. 201. Portanto, além de agir em legítima defesa, Alan Ruschel agiu impedindo a perpetuação da prática de um crime.

Portanto, uma eventual punição do atleta nesse contexto violaria todo o ordenamento jurídico pátrio. Além disso, considerando a grande exposição do futebol e sendo o esporte um instrumento de educação, passar-se-ia uma equivocada noção ao povo brasileiro de que pessoas que agem para impedir o errado também são punidas.

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1 Vide notícia sobre em: https://ge.globo.com/rs/futebol/copa-do-brasil/noticia/2024/07/13/jogador-do-juventude-e-expulso-apos-agredir-torcedor-do-inter-que-invadiu-o-campo-veja.ghtml.

2 Súmula da partida noticiada em: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2024/07/15/juventude-e-inter-podem-ser-punidos-por-invasao-em-jogo-da-copa-do-brasil.

3 Disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202306/20230630155701_267.pdf, p. 111/112.

4 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm

5 Disponível em: https://www.gov.br/mds/pt-br/composicao/orgaos-colegiados/cne/arquivos/codigo_brasileiro_justica_desportiva.pdf

6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal volume 1. 26ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 421.

7 SOUZA, Luciano Anderson. Direito Penal: parte geral - vol. 1. 2ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021, p. 365/366.

Leandro Sarcedo

Leandro Sarcedo

Advogado. Sócio da Massud, Sarcedo e Andrade Sociedade de Advogados. Doutor e mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde é graduado.

Renato Losinskas Hachul

VIP Renato Losinskas Hachul

Advogado. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP. Sócio do Massud, Sarcedo e Andrade Sociedade de Advogados

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