A ANPD no banco dos réus
A ANPD enfrenta desafios judiciais pela primeira vez, acusada de favorecer o WhatsApp em questões de privacidade, violando direitos como informação e consentimento dos brasileiros, segundo ação do MPF e IDEC.
sexta-feira, 19 de julho de 2024
Atualizado em 18 de julho de 2024 14:36
Quatro anos após sua criação, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, mais conhecida por sua sigla "ANPD", enfrenta, pela primeira vez, questionamentos judiciais sobre sua capacidade de cumprir seu papel institucional na defesa dos dados pessoais dos cidadãos brasileiros, supostamente favorecendo uma empresa em detrimento do chamado enforcement regulatório.
Tal questionamento é realizado por meio de uma Ação Civil Pública, em trâmite perante a 2ª vara Cível Federal de São Paulo, ajuizada esta semana pelo MPF - Ministério Público Federal e pelo IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor contra a ANPD e o WhatsApp LLC.
Na ação, o parquet e a associação de defesa dos consumidores destacam vários problemas relacionados à política de privacidade do WhatsApp, que vigorou desde 2021 até junho deste ano, apontando que os termos ali constantes configuram-se como uma fonte significativa de violações de direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, dentre eles o direito à informação e ao consentimento informado.
A ação alega, inicialmente, que a política de privacidade falhava em fornecer informações claras e precisas sobre o real tratamento de dados pessoais dos usuários, violando o direito à informação previsto na LGPD. Isso porque, embora o WhatsApp sempre tenha sustentado que o teor das conversas seja estritamente confidencial devido à tecnologia de criptografia de ponta a ponta, a empresa coleta uma série de metadados que revelam informações substanciais sobre o comportamento dos usuários. Esses metadados podem indicar desde a localização habitual até os gostos e preferências de 99% dos brasileiros, tendo em vista a abrangência do uso do aplicativo em nosso país, configurando uma invasão significativa de privacidade que não é devidamente esclarecida aos usuários.
Além disso, os procuradores defendem que o consentimento obtido dos usuários deve ser considerado viciado para uma série de operações realizadas pela empresa, uma vez que a complexidade e a falta de clareza das informações impedem uma compreensão plena dos termos pelos consumidores do aplicativo, também contrariando os princípios de transparência e consentimento previstos na LGPD.
A política também é acusada de permitir tratamentos desnecessários de dados pessoais, indo além do mínimo necessário para atingir suas finalidades, e de aplicar práticas comerciais abusivas, especialmente em comparação com o tratamento dado aos usuários europeus. Esses problemas, juntos, configuram uma violação abrangente e sistemática dos direitos dos usuários brasileiros, exigindo uma resposta judicial rigorosa para garantir a proteção de seus dados pessoais e a responsabilização das empresas envolvidas.
Enquanto os argumentos contra o WhatsApp são claros e focados em suas práticas comerciais, a ANPD é acusada não apenas de falhar na fiscalização de um agente de tratamento de dados específico, mas também de adotar uma postura omissa e avessa a qualquer accountability pública.
Com efeito, segundo as informações constantes no processo, durante a apuração conduzida pelo MPF e pelo IDEC, em relação à política de privacidade do WhatsApp, a ANPD teria reiteradas vezes negado acesso, ao IDEC, a seus processos administrativos. Além disso, com interpretações nomeadas pelos procuradores como "exóticas", a autarquia teria descumprido requisições do MPF no exercício regular de suas atribuições investigatórias sob o argumento de que as informações e dados seriam relativos a segredos comerciais e industriais. Ou seja, paradoxalmente, durante uma apuração que tratava da falta de transparência de um dos maiores agentes de tratamento de dados pessoais do país, a ANPD adotou uma postura de sigilo, tornando sua atuação às escuras, mesmo diante de um inegável interesse social no caso.
A Ação Civil Pública, portanto, tem dois objetivos principais: (1) que o WhatsApp seja obrigado a reparar os danos causados a seus milhões de usuários no país, suspendendo imediatamente tratamentos excessivos de dados pessoais e adotando providências para que os brasileiros possam decidir, devidamente informados, se querem ou não aderir à política de privacidade de 2021 da plataforma; e (2) que a ANPD entregue todos os documentos recebidos e produzidos durante a apuração sobre a política de privacidade do WhatsApp, justificando individualmente cada sigilo atribuído, e elabore uma normativa que garanta máxima publicidade possível às suas futuras investigações.
A ação marca assim um momento crucial na defesa dos direitos de proteção de dados no Brasil, pois busca não apenas reparar os danos causados pela política de privacidade de 2021 do WhatsApp, mas também reforçar a importância de uma fiscalização transparente e responsável por parte da ANPD, colocando a autarquia e seus diretores, pela primeira vez, no banco dos réus.
Felipe Carteiro
Advogado e sócio da área de Direito Digital no escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados.