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Cumplicidade bancária nos delitos econômicos

Bancos em paraísos fiscais facilitam atividades legais e ilegais, como sonegação e lavagem de dinheiro, ligando-se a offshores.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Atualizado às 09:44

Há fértil campo investigativo acerca da problemática da cumplicidade bancária e o Direito Penal Econômico, principalmente se a investigação estiver relacionada a instituições financeiras que facilitam o acesso de seus clientes e promovem a utilização de paraísos fiscais (tax havens) - também conhecidas como jurisdições especiais das offshores -  lugares comumente envolvidos direita ou indiretamente na prática de delitos de diversos tipos e de variadas gravidades. Explico. Uma offshore sem uma conta bancária tem uma limitada utilidade para seu interessado, é dizer, um vínculo com um banco é essencial para qualquer atividade financeira que se pretenda realizar, desde atividades lícitas até a delitos de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro etc. O sistema bancário paralelo dos paraísos fiscais proporciona exatamente isso, a atração de clientes que desejam desde menos rigorosas ou a completa ausência de normas fiscais e tributárias e de compliance.1

Por mais de um século o sinônimo e referência em sigilo bancário (bank secrecy) e paraíso fiscal era a Suíça2. Sua postura em permitir contas numeradas, possibilitando o sigilo de identidade do titular da conta e a facilitação na criação de companhias offshores para seus clientes é famosa3. Os mais de 250 bancos daquele pequeno país europeu nunca se importaram realmente se a origem do dinheiro por eles operado era lícita ou ilícita4. Apenas em setembro de 2014, ao concordar em se unir ao processo de troca automática de informações financeiras e fiscais promovido pela OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico que a Suíça transmitiu oficialmente às autoridades fiscais de dezenas de países dados de cerca de dois milhões de contas - e de seus respectivos correntistas - abertas nos bancos do país.

Com essa postura, a Suíça permaneceu como um dos maiores destinos de dinheiro ilícito no mundo5, ainda que atualmente conte com dispositivos legais de combate à fraude, evasão tributária, e, especialmente, lavagem de dinheiro após ingressar na OCDE, como mencionado, os bancos suíços ainda operam - obviamente - também em outros paraísos fiscais (ex. Ilhas Caimã, Bahamas, Ilha de Man etc.) cujo sigilo, a falta de transparência e a privacidade bancária ainda são maiores6.

Alguns países caribenhos membros da Commonwealth (isto é, territórios que têm em comum a Rainha da Inglaterra como chefe de Estado e, de algum modo, gozam de representatividade no Parlamento Inglês), como as Ilhas Virgens Britânicas, Ilha de Man, Bermuda, Antilhas, Ilhas Caimã, Montserrat, São Cristóvão e Nevis, Aruba, Antígua, Ilhas Turks e Caicos, todas jurisdições especiais promotoras de um profundo sigilo bancário e possuem íntima conexão com o Reino Unido e de modo especial, com a cidade de Londres7.

Segundo informações, o mercado offshore londrino enviou bilhões de libras esterlinas para esses paraísos fiscais ao longo das décadas8 cujo relacionamento estreito não é acidental. Os bancos britânicos, desde seu banco central o Bank of England, ao megabanco HSBC foram os maiores beneficiários desse "novo mercado offshore", e fizeram renascer Londres como um dos maiores centros financeiros no mundo9. A existência de empresas subsidiárias, abertas em nome de empresas de fachada ou fantasmas (shell companies) sob sigilo fiscal e Jurisdições Especiais apenas no Caribe britânico é desta ordem: o Barclays Bank tem 385 subsidiárias; o RBS - Royal Bank of Scotland com 404; o HSBC possui 505 destas empresas a esta instituição vinculada e Lloyds TSB outras 290 (dados de novembro de 2012)10.

A cumplicidade bancária no delito de lavagem de dinheiro, por exemplo, ocorre quando as instituições financeiras facilitam, consciente ou inconscientemente (ostrich effect), o processo de braqueamento de ativos ilícitos.

Nesse passo, a incidência de delitos contra o mercado de capitais e a consequente incidência do Direito Penal Econômico se acentua com a cumplicidade ou participação de instituições financeiras tradicionais, como por exemplo, o caso do megabanco britânico HSBC, uma instituição de mais de 150 anos que resistiu a duas Grandes Guerras e a crise do ano de 2008, mas que se viu envolvida em um megaescândalo de lavagem de dinheiro pelo descontrole de seus funcionários e a redução de seus mecanismos de conformidade.

Muito pouco se fala na doutrina, mas as inúmeras transações ilegais praticadas ao longos de anos levou o banco a firmar no ano de 2012 um acordo com o US Department of Justiçe onde concordou em pagar a título de multa 1.9 bilhão de dólares por ter sistematicamente ignorado a implementação de diretrizes de compliance office acerca do combate à lavagem de dinheiro e a transações suspeitas dispostas na Lei de Segredo Bancário, Lei de controle à lavagem de dinheiro e da Lei de comércio com o inimigo (de 1917)  e outras disposições legislativas dos EUA11.

Resumidamente, foi este o teor do acordo celebrado:

"O HSBC EUA e o HSBC Holdings, admitem, aceitam e estabelecem que eles são responsáveis pelos atos de seus agentes, diretores e funcionários, conforme o estabelecido nesse acordo. Caso o Departamento resolve por perseguir na persecução do constante nesse acordo, o Departamento provará, além de qualquer dúvida razoável, por qualquer meio de provas admissíveis, os fatos estabelecidos no Anexo A desse acordo."12

Da mesma forma, detalhando o conteúdo do Anexo A, item 8. do citado acordo, as acusações feitas pela seção criminal do Departamento de Estado dos EUA, consistiram em demonstrar que o HSBC foi conduíte para lavar dinheiro de carteis de drogas, ao facilitar os estágios necessários à lavagem de dinheiro13, permitindo a utilização do dinheiro ilícito inserido no sistema financeiro do país:

"De 2006 a 2010, o banco HSBC EUA violou o BSA e suas normas de implementação. Especificadamente, o HSBC EUA ignorou os riscos de lavagem de dinheiro associado ao realizar transações comerciais com determinados clientes mexicanos e falhou na implementação do método constante no BSA/AML, adequado para monitorar transações suspeitas do México. Ao mesmo tempo, o Grupo Financeiro HSBC, S.A. de C.V. ("HSBC México"), um dos maiores clientes mexicanos do HSBC EUA, tinha suas próprias falhas antilavagem de dinheiro. Como resultado dessas recorrentes falhas perante a Lei de controle à lavagem de dinheiro, ao menos, $881 milhões de lucro do tráfico de drogas, incluindo, lucros do tráfico de drogas do Cartel mexicano de Sinaloa e o Cartel Norte del Valle na Colômbia, foram lavados por meio do HSBC EUA, sem que tenham sido detectados. O Grupo HSBC estava ciente da significante falha no compliance antilavagem de dinheiro no HSBC México que além do mais, não informou o Banco HSBC EUA desses problemas e do potencial impacto no mecanismo antilavagem."14

Prosseguindo o item 63:

"Pelo menos, de 2006 a 2010, o grupo HSBC, sabida e deliberadamente engajado em condutas e práticas fora do território dos EUA, que fizeram com que o HSBC EUA e outras instituições financeiras localizadas no território estadunidense processassem pagamentos em violação as sanções impostas pelos Estados Unidos. Para esconder essas transações, o Grupo HSBC e filiais, alteraram e modificaram mensagens de pagamento de modo a garantir que pagamentos envolvendo países e entidades sancionados fossem liberados sem qualquer dificuldade por meio do Banco HSBC EUA no Condado de Nova Iorque e em outros locais."15

De todo modo, assim como o caso da Siemens16, acordo serviu como um sinal de alarme para o HSBC melhorar as suas operações, permitindo-lhe, ao mesmo tempo, manter-se como instituição financeira em atividade nos EUA. Supostamente, o interesse do governo dos EUA em celebrar o acordo com o banco sem acusar criminalmente ninguém foi o fato de evitar o potencial colapso de uma instituição financeira proeminente como o HSBC, com consequências a nível mundial.

A situação legal do HSBC expôs graves problemas de cumplicidade bancária no delito de lavagem de dinheiro e em outras atividades suspeitas que burlaram os controles de conformidade e combate à lavagem de dinheiro do banco e, apesar de não ter havido responsabilidade penal da pessoa jurídica ou de seus representantes legais, a multa de 1.9 bilhão de dólares está entre as multas mais significativas já impostas a uma instituição financeira por violar a lei dos EUA.

Infelizmente, a cumplicidade bancária na pratica de delitos econômicos é uma realidade. Como complicador para a lenta solução do problema dessa cumplicidade nas atividades ilícitas pode-se citar a Revolução Tecnológica (Eletronic Revolution), processo no qual trouxe ainda mais internacionalidade para as transações financeiras dentro do chamado World Market17. A globalização está reduzindo as barreiras comerciais e aumentando os fluxos de capital entre os países. Nesse contexto, a falta de transparência, o segredo bancário e outros obstáculos para se coibir a existência de paraísos fiscais especializados no delito de lavagem de dinheiro (money laundering paradises) torna difícil a tarefa das autoridades internacionais em seguir o traço do dinheiro (follow de money) através das fronteiras (cross borders) e permitir a descoberta de ativos decorrentes de atividades ilícitas18, já que mais da metade das negociações comerciais, ainda passam, ao menos no papel, por paraísos fiscais.19

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1 Sobre o tema ver: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Trajetória do crime de lavagem de dinheiro: do escândalo do Watergate ao panamá papers in: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021.

2 Foi no século XIX que a Suíça, geograficamente cercada de potências econômicas e armamentistas envolvidas em uma corrida imperialista, começou a florescer, tendo por método a utilização da neutralidade conflitiva. Quem nunca escutou a expressão "neutro como a Suíça"? Historicamente, a Suíça adotou posição de neutralidade nos seguintes conflitos próximos ao seu território: Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tal postura permitiu, dentre outras vantagens, que "todo tipo de gente" pudesse esconder seus ativos financeiros lá. Nesse sentido ver: SHAXSON, Nicholas, Treasure Islands: tax havens and the men who stole de world, London, Vintage, 2016p. 60.

3 BERNSTEIN, Jake. Secrecy world: inside the panama papers investigation of illicit money networks and the global elite. New York, Henry Holt and Company, 2017, p. 47.

4 Idem.

5 SHAXSON, Nicholas, Treasure Islands, ob. cit., p. 61.; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 173.

6 ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 170.

7 Nesse sentido: BERNSTEIN, Jake. Secrecy world, ob. cit., p. 24; SHAXSON, Nicholas, Treasure Islands, ob. cit., p. 90.; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 154.

8 SHAXSON, Nicholas, Treasure Islands, ob. cit., p. 90.

9 Idem, p. 102.

10 ROCHA, Bruno Lima. Lavagem de Dinheiro e a hipocrisia estruturante do Sistema Financeiro internacional [crítica internacional]. IHU On-line. N. 512, XVII, 2017. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7056-lavagem-de-dinheiro-e-a-hipocrisia-estruturante-do-sistema-financeiro-internacional.

11 NEATE Rupert. HSCBC escaped US money-laudering charges after Osborne's intervention. The Guardian, 11 jul. 2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/business/2016/jul/11/hsbc-us-money-laundering-george-osborne-report. No mesmo sentido: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Trajetória do crime de lavagem de dinheiro: do escândalo do Watergate ao panamá papers, ob. cit., p. 49-51.

12 Tradução do autor.

13 OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Os três estágios da lavagem de capitais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-31/os-tres-estagios-da-lavagem-de-capitais/. Ver também: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Trajetória do crime de lavagem de dinheiro: do escândalo do Watergate ao panamá papers, ob. cit., p. 49-51.

14 Tradução do autor.

15 Tradução do autor.

16 Odebrecht pode aprender com caso Siemens. Fernando Caulyt. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/ap%C3%B3s-multa-bilion%C3%A1ria-educativa-odebrecht-pode-aprender-com-caso-siemens/a-36883121

17 OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Globalização, crime organizado e compliance. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-18/globalizacao-crime-organizado-e-compliance/.

18 OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Trajetória do crime de lavagem de dinheiro, ob.cit.

19 SHAXSON, Nicholas, Treasure Islands, ob. cit., p. 8.

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

VIP Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

Advogado criminal, professor, palestrante e autor de livros e artigos sobre Direito Penal, Direito Processual Penal e liberdade de expressão.

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