Desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimilar a ocorrência do fato gerador a qualquer tempo, conforme entendimento do CARF
O CARF decidiu que o fisco pode fiscalizar fatos antigos mesmo sem constituir o crédito tributário, desde que o prazo decadencial não impeça o lançamento do imposto, como no caso do FII criado em 2014 e tributado em 2021 para anos não decadentes.
terça-feira, 16 de julho de 2024
Atualizado às 07:27
Interessante questão foi trazida pelo CARF no julgamento do processo 10580.731272/2021-68 quando a 2ª sessão de julgamento da 3ª Câmara da 1ª turma ordinária decidiu que é possível ao fisco fiscalizar fatos ocorridos em passado remoto, ainda que não seja possível constituir o crédito tributário alcançado pela decadência, mas para efetuar o lançamento do tributo em relação aos períodos não atingidos pelo prazo decadencial do art. 173 ou do §4º, do art. 150 do CTN.
O caso versado tratava de desconstituição do FII - Fundo do Investimento Imobiliário - criado em 2014, seguido de lançamento do imposto de renda em 2021, relativamente aos exercícios de 2016, 2017, 2018 e 2019.
O contribuinte se defendeu alegando o decurso do prazo decadencial quer considerando o lançamento de ofício (art. 173 do CTN), quer considerando a modalidade de lançamento por homologação (art. 150, §4º do CTN).
O CARF sustentou a tese da possibilidade de investigar o passado para projetar os efeitos dessa fiscalização para tributar os exercícios financeiros não alcançados pela decadência.
O que está sob o efeito da decadência é o lançamento e não a fiscalização, ponderou a Turma Julgadora.
Assim, a desconsideração do FII constituído em 2014 para em 2021 proceder ao lançamento do imposto de renda dos exercícios de 2016, 2017, 2018, 2019 estaria dentro da legalidade.
A fiscalização é o instrumento de que dispõe o fisco para constituir o crédito tributário. Fiscaliza-se para efetuar o lançamento tributário, isto é, para constituir o crédito tributário no período fiscalizado. Não se faz fiscalização para satisfazer mera curiosidade do agente fiscal.
Mas, o caso analisado tratou-se de desconsideração do FII criado em 2014, com fundamento no parágrafo único, do art. 116 do CTN que assim prescreve:
"A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária."
A doutrina batizou a regra desse parágrafo único como norma antielisiva geral.
Não há, ainda, procedimento estabelecido na lei ordinária, mas entende-se que a desconsideração deva obedecer ao princípio do devido processo legal que abrange o princípio do contraditório e ampla defesa, porque são requisitos constitucionalmente exigidos.
A dissimulação de que cuida a norma antielisiva envolve o dolo do contribuinte, que se caracteriza apenas nas hipóteses de sonegação, fraude ou conluio como definidos, respectivamente, nos arts. 71, 72 e 73 da lei 4.502/64.
Sem entrar no mérito da demanda administrativa, porque em outros casos o mesmo CARF teria reconhecido a validade do FII constituído por outras pessoas, a tese sustentada pelo órgão julgador, ao permitir a fiscalização a qualquer tempo, desde que para efeito de proceder ao lançamento em relação aos exercícios financeiros não atingidos pela decadência tributária, conspira contra o princípio maior da segurança jurídica, que é o objetivo visado tanto pela decadência, como pela prescrição.
A estabilização das relações jurídicas, legais ou ilegais, se impõe depois de decorrido certo período de tempo, não sendo possível, nem desejável que a espada de Dâmocles fique pendente eternamente sobre a cabeça do contribuinte.
Assim procedendo, nem o contribuinte, nem os terceiros que com ele se relacionam poderiam dormir tranquilamente, pois os atos praticados no passado remoto poderiam ser revistos pelo fisco a qualquer momento, afetando as relações jurídicas de há muito consolidadas.
Há um ditado invocado por administrativistas, segundo o qual o tempo apaga o vício. Exemplificando, suponha-se que um juiz que tenha sido nomeado e empossado após ser aprovado no concurso público, passados dez ou 15 anos, descobre-se ele teve acesso às provas de forma ilegal, o que acarreta a nulidade da prova a que se submeteu. Anula-se a sua nomeação? Como ficam as centenas ou milhares de decisões por ele proferidas, cobertas pelo manto da coisa julgada? Desfazer-se-iam todas as relações jurídicas consolidadas ao longo de mais de uma década? Não purgar o vício no caso, por decurso do longo prazo, causaria um gravíssimo tumulto na vida das pessoas inocentes. Só para exemplificar, um casal que teve o divórcio decretado pelo referido juiz que arbitrou a pensão alimentícia para a ex esposa. Como ficam essas relações jurídicas? Os divorciados voltam ao estado de casados? As pensões alimentícias se interrompem? Como ficam os atos de alienações imobiliárias praticados sem a outorga uxória? Haverá anulação em cascata de todas as alienações que se seguiram à primeira alienação sem outorga uxória? Não reconhecer a consolidação dos efeitos, de forma irreversível, no caso apontado seria o mesmo que causar a desordem na sociedade, na contramão do objetivo visado pelo Direito que é o assegurar a paz e harmonia na sociedade.
A decisão do CARF separou o lançamento sujeito ao prazo decadencial da fiscalização que não teria prazo algum. Essa tese não passa, data vênia, de uma retórica, sem respaldo na ordem jurídica como um todo, onde a segurança jurídica aparece como o princípio maior protegido por cláusula pétrea.
Realmente, dentro da tese do CARF um negócio jurídico realizado na década de 50 pode ser desfeito pela fiscalização a qualquer tempo, por exemplo, em janeiro de 2020, para gerar efeitos em relação aos exercícios de 2021, 2022, 2023 e 2024. não abrangidos pela decadência.
A fiscalização retroativa para a década de 50 foi aventada de forma exagerada para bem aquilatar o desacerto da tese fazendária. Se pode rever algo consumado em 2014 porque não em relação a algo praticado na década de 50?
Positivamente, a fiscalização não pode ser dissociada do ato do lançamento. Se o lançamento estiver sob efeito da caducidade não caberá a cogitação de fiscalização sob pena de afetar o princípio da segurança jurídica que deve reger as relações entre os indivíduos e destes em relação ao Estado.
Não se pode fazer interpretação literal do art. 173 ou do 4º, do art. 150 do CTN, sem atentar para o conteúdo intrínseco dessas normas. Uma fiscalização que não tenha o objetivo de constituir o crédito tributário no período fiscalizado não tem o menor sentido.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.