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Deferência judicial às decisões do CADE

O STF destacou a deferência judicial às decisões do CADE em regulação econômica para evitar efeitos sistêmicos adversos. Revisões são possíveis por ilegalidade, mantendo equilíbrio de poderes e segurança jurídica, apesar de críticas e apoio à decisão.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Atualizado em 11 de julho de 2024 14:37

Em precedente de 2019, o STF enfrentou discussão sobre os limites da revisão judicial de decisões proferidas pelo CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. No julgamento do AgR no RE 1.083.955/DF1, o dever de deferência do Judiciário às decisões administrativas foi realçado em razão da "falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias" e da "possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa". Esse julgamento, contudo, não afastou a possibilidade de revisão das decisões do regulador quando demonstrada ilegalidade ou abusividade.

Para a Suprema Corte, a autocontenção do Judiciário busca manter o equilíbrio institucional e a repartição de poderes. Além disso, é inerente à regulação econômica algum espaço interpretativo sobre conceitos jurídicos indeterminados, desde que a arquitetura institucional e o desenvolvimento jurisprudencial das agências confiram segurança jurídica. Por isso a ênfase da decisão na "expertise técnica" e "capacidade institucional do CADE em questões de regulação econômica", suplantando a suposta inaptidão judicial para avaliar "questões policêntricas de efeitos acentuadamente complexos" e que exigem "prognósticos especializados".

Vale notar que o referido precedente do STF, considerado paradigmático, foi criticado por parte da comunidade jurídica, que se focou na natureza vinculante dos atos administrativos do CADE, por consequência passível de controle jurisdicional. Por sua vez, argumentos favoráveis se escoraram na lógica do desenho institucional2, na questão da tempestividade do enforcement público e na aplicação de uma adaptação da Chevron doctrine.3

Sem pacificação

Dito isso, passados cinco anos, o tema ainda não está pacificado no Judiciário. Tanto é assim que, recentemente, rejeitando as premissas adotadas pelo STF, a 5ª Turma do TRF-1 anulou sentença proferida nos autos de ação ajuizada em face do CADE, por meio da qual se desafiava acórdão administrativo condenatório relativo ao chamado "cartel das britas".4

Em primeiro grau, o pedido de produção de provas5 formulado pela empresa condenada pelo CADE foi indeferido sob o entendimento de que "estas já foram exaustivamente colhidas no âmbito do processo administrativo, não havendo necessidade de repetição". Ao mesmo tempo, porém, a sentença entendeu pela ausência de comprovação das alegações autorais e julgou improcedente a ação.

Foi neste contexto que, por verificar que "[a] prova que a apelante busca produzir não tem por finalidade repetir as provas produzidas no processo administrativo, mas sim desconstituir a presunção relativa de veracidade que o processo administrativo possui", a 5ª Turma do TRF-1, em votação unânime, reconheceu a ocorrência de cerceamento de defesa e, anulando a sentença, determinou o retorno dos autos à origem para produção probatória.

Na ocasião, o direito à prova também foi salientado para afastar a hipótese de julgamento antecipado da lide, precisamente por se tratar de causa de alta complexidade e que reclamava instrução mais aprofundada.

Jurisprudência consolidada

Processualmente, a conclusão adotada pela 5ª Turma do TRF-1 encontra respaldo em jurisprudência consolidada do STJ6, e de outros tribunais.7 É importante, entretanto, realçar as consequências dessa decisão: Ao anular a sentença de primeiro grau e enunciar o direito do autor à produção de prova para desconstituição da presunção relativa de veracidade dos atos administrativos, o TRF-1 acabou por analisar a suficiência do conjunto probatório produzido na investigação administrativa.

Portanto, a relevante questão que surge é: A decisão do CADE estaria, especificamente quanto à suficiência da sua instrução, igualmente abarcada dentro do conceito meritório de regulação lato sensu que a Suprema Corte lhe reconheceu, passível de deferência judicial? Se a resposta for negativa, conforme decidido pelo TRF-1, qual seria então o critério para suficiência da instrução de maneira a não ser desafiada no Poder Judiciário? Ou haveria um direito líquido e certo de qualquer jurisdicionado de alegar que pretende produzir novas provas sobre os fatos investigados na seara judicial? E, nesse caso, qual seria o limite do abuso de direito ao se relegar essa (re)discussão apenas à fase judicial, mitigando a própria instrução administrativa?

As questões acima são importantes dado que, na prática, o precedente do TRF-1 postergou o momento de materialização do enforcement público e abriu segunda janela para análise de fatos. Ainda, declarou o direito da parte de desafiar as provas do processo administrativo por meio de outras produzidas na esfera judicial.

Por fim, outros efeitos podem ser concebidos. Considerando que a lei 14.470/22 qualifica a decisão condenatória do Plenário do Tribunal do CADE como apta a embasar a concessão da tutela de evidência em ações de reparação por danos concorrenciais (art. 47-A), a decisão do TRF-1 gerou por consequência uma inevitável bifurcação: Ora a decisão condenatória do CADE permitirá ao juiz decidir liminarmente, mesmo diante da ausência de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo; ora a conclusão fixada pela autarquia, baseada em elementos fáticos e econômicos inerentes à atividade regulatória, poderá ser submetida a confronto com novas provas produzidas no campo judicial. Aqui surge uma miríade de questões sobre como equacionar os enforcement público e privado, bem como sobre os incentivos criados (ou anulados) pela revisitação do mérito já analisado pelo CADE.

Sem dúvidas, o acórdão proferido pela 5ª Turma do TRF-1 convida à nova reflexão sobre o tema da deferência judicial, bem como a perquirir interpretações que a lei 14.470/22 propicia. Mais do que isso, demonstra que tais questões ainda estão longe de apaziguamento.

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1 STF, 1ª Turma, AgR no RE nº 1.083.955/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 28.05.2019.

2 Santos, Humberto. Deferência Judicial às decisões do CADE e o equilíbrio entre os Poderes Constituídos. Revista de Defesa da Concorrência. 2021. Disponível: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/941

3 Cardoso, Henrique e Santos, Mateus. A deferência judicial redimida. Revista de Direito Administrativo. 2023. Disponível: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/88639

4 TRF-1, 5ª Turma, Apelação nº 0032532-71.2005.4.01.3400, Rel. Convocado Juiz Federal João Paulo Pirôpo de Abreu, j. 13.12.2023.

5 Voltadas a comprovar, entre outros pontos, a ausência de participação no suposto cartel e da prática de atos anticoncorrenciais.

6 "A jurisprudência do STJ entende ser 'indevido o julgamento antecipado da lide, ensejando cerceamento de defesa, quando julgado improcedente o pedido por falta de provas requeridas oportunamente pelo autor da demanda ou quando o demandado na ação requer a produção de provas, mas o pedido for indeferido, julgando-se antecipadamente a lide, afirmando-se que o réu não provou suas alegações' (AgInt no AgInt no AREsp 1603239/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/2020, DJe 26/08/2020)" (STJ, 4ª Turma, AgInt no AREsp nº 1.859.594/RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 16.05.2022).

7 TRF-3 - Agravo de Instrumento nº 0005091-90.2016.4.03.0000/SP

Edison Elias de Freitas

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Sócio da área de Resolução de Disputas em Direito Público e Direito Concorrencial do Cescon Barrieu.

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