O uso de sedativos e hipnóticos podem impactar a sanidade mental?
O abuso de sedativos e hipnóticos, inicialmente terapêuticos, pode levar a dependência severa e comprometer significativamente o funcionamento diário, conforme critérios do DSM-5 da APA.
quinta-feira, 11 de julho de 2024
Atualizado às 13:55
Em geral, pessoas que fazem abuso de sedativos ou hipnóticos começam com um uso terapêutico, prescrito por um médico para o tratamento de quadros ansiosos, depressivos, de insônia, entre outros.
Quando o consumo é exagerado, estas substâncias causam efeitos cognitivos significativos, que podem gerar severas limitações de entendimento e/ou de determinação, ainda mais quando há doenças mentais comórbidas.
Segundo o Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais, DSM-51, da Associação Americana de Psiquiatria, os seguintes critérios são utilizados para diagnosticar o Transtorno por Uso de Sedativos, Hipnóticos ou Ansiolíticos:
Quadro 1: Critérios diagnósticos do transtorno por uso de sedativos, hipnóticos ou ansiolíticos
Fonte: APA (2014).
A partir do exposto, fica claro que diferente do senso comum, além das drogas ilícitas, alguns medicamentos psiquiátricos causam dependência. Podem chegar ao extremo de necessitar de internação para a desintoxicação início da reabilitação psicossocial, principalmente quando há risco de suicídio.
Em perícias ou assistência técnica de psiquiatria forense e de psicologia jurídica, é possível identificar se o avaliado atende aos critérios descritos para dependência destas substâncias. Os dados são coletados principalmente através de documentos médicos, aplicação de instrumentos psicométricos e de entrevistas, inclusive com fonte colateral de informações, como familiares e amigos.
Um exemplo de caso grave seria um examinado com histórico de consumo que inclui: uso em grandes quantidades, descontrolado, comprados muito além do intencionalmente receitado, resultando em sintomas psicóticos, limitações cognitivas, sociais e familiares, além de colocá-lo em risco por perder-se e não saber sobre objetos quando intoxicado.
Relevante conhecer alguns dos efeitos do uso crônico e inadequado destas substâncias:
Em particular, o comprometimento cognitivo de funções como memória, atenção, concentração e capacidade de interpretação de dados da realidade, como efeito colateral, aumenta com a idade, e o metabolismo de sedativos, hipnóticos ou ansiolíticos diminui com a idade em indivíduos mais velhos.
Os efeitos tóxicos dessas substâncias, tanto agudos quanto crônicos, especialmente os efeitos sobre cognição, memória e coordenação motora, tendem a aumentar com a idade como consequência das alterações farmacodinâmicas e farmacocinéticas relacionadas a ela2.
Entre os efeitos agudos destas substâncias estão a redução do estado de alerta e a dificuldade dos processos de aprendizagem e memória3, como obviamente também da capacidade de resolver problemas e entender circunstâncias de modo assertivo. No uso prolongado são comuns déficits cognitivos, como perda de atenção e dificuldade de fixação4.
Logo, caso o avaliado de uma perícia ou assistência técnica não tenha realizado tratamento, siga com o padrão intenso de consumo de sedativos e/ou hipnóticos, pode ter seus déficits mentais acumulados e o adoecimento caracterizado como grave ao tempo do fato em acusação, e no momento da avaliação. Porém, o mais comum, é que a avaliação seja retrospectiva, com o sujeito já abstinente ou com um consumo terapêutico e controlado destes medicamentos.
Neste contexto, também é relevante registrar que o avaliado, em momentos de interrupção ou diminuição do uso de seus medicamentos sedativos e hipnóticos, apresente enorme risco da síndrome de abstinência destas substâncias, com potenciais possibilidades de extremos com convulsões e até morte.
Esta informação é especialmente relevante para a situação de retirada destas medicações do examinado, uma vez que com esta interrupção sem acompanhamento adequado ele poderá sofrer graves consequências à sua saúde.
Quadro 2: Critérios diagnósticos da síndrome de abstinência de sedativos, hipnóticos ou ansiolíticos
Fonte: APA (2014).
A título de exemplo, vide destaques sobre efeitos e consequências dos consumos dos medicamentos Clonazepam e Zolpidem, ainda mais quando em uso no padrão correspondente a dependências químicas dos mesmos:
- Clonazepam5
- Distúrbios psiquiátricos: amnésia, alucinações, histeria, psicose, tentativa de suicídio, despersonalização, distúrbio de memória, desinibição orgânica, ideias suicidas, lamentações, distúrbios emocionais e de humor, estado confusional e desorientação, depressão, dependência química.
- Reações paradoxais: inquietação, agitação, irritabilidade, agressividade, nervosismo, hostilidade, ansiedade, distúrbios do sono, delírio, raiva, pesadelos, sonhos anormais, alucinações, psicose, hiperatividade, comportamento inapropriado, entre outros.
- Síndrome de abstinência: psicoses, distúrbio comportamental, tremor, sudorese, agitação, distúrbios do sono, ansiedade, cefaleia, diarreia, dores musculares, caibras, extrema ansiedade, tensão, cansaço, inquietação, alteração de humor, confusão, irritabilidade e convulsões epiléticas, desrealização, despersonalização, hiperacusia, parestesias, hipersensibilidade à luz, ruídos e ao contato físico, alucinações.
- Zolpidem6
- Amnésia: anterógrada, em geral algumas horas após administração.
- Depressão: em pacientes deprimidos há de se ter cautela com tendências suicidas.
- Reações psiquiátricas: exacerbação da insônia, pesadelos, nervosismo, irritabilidade, agitação, agressividade, acessos de raiva, ideias delirantes, alucinações, comportamento inapropriado, entre outros.
- Em casos severos: desrealização, despersonalização, hiperacusia, hipersensibilidade á luz, barulho e contatos físicos, alucinações, delirium e convulsões.
- Insônia de rebote: quando descontinuado de forma abrupta no contexto do abuso.
- Lesões severas: pela sonolência e diminuição do nível de consciência.
Destaca-se a decisão da Agência de Vigilância Sanitária, ANVISA, de 15/5/24, que qualquer medicamento contendo Zolpidem deverá ser prescrito por meio de Notificação de Receita B, azul. Isso implica que o prescritor deva estar previamente cadastrado na autoridade local de vigilância sanitária.
Esta é uma prova cabal da complexidade do uso regular de Zolpidem, logo para quem usava em quantidades exacerbadas de longa data e em padrão de dependência isto é de efeitos deletérios severos, com implicações legais também sobre, por exemplo, capacidade de entendimento.
Esta determinação é extremamente relevante para o controle do grave abuso desta substância psicotrópica perigosa, pela antiga possibilidade da pessoa comprar com a receita sem data.
O zolpidem já estava enquadrado na lista B1 (psicotrópicos), que é mais restrita, porém o Adendo 4 dessa mesma lista flexibilizava a restrição e previa que medicamentos com até 10 mg de zolpidem por unidade posológica seriam equivalentes aos medicamentos da Lista C1 - Lista de Substâncias Sujeitas a Controle Especial.
Para esta categoria, C1, a prescrição pode ser feita em receita branca de duas vias e não há a exigência de que o profissional que prescreve seja previamente cadastrado pela autoridade sanitária local.
A medida foi adotada a partir do aumento de relatos de uso irregular e abusivo relacionados ao uso do zolpidem.
A análise conduzida pela Anvisa demonstrou um crescimento no consumo dessa substância e a constatação do aumento nas ocorrências de eventos adversos relacionados ao seu uso.
Foi possível ainda identificar que não há dados científicos que demonstrem que concentrações de até 10 mg do medicamento mereçam um critério regulatório diferenciado.7
Fica claro que o consumo excessivo de sedativos e hipnóticos podem trazer consequências cognitivas, emocionais e comportamentais que impactam sanidade mental do indivíduo. No contexto de crimes cometidos sob efeito destas substâncias, o perito e o assistente técnico psiquiatra forense ou psicólogo jurídico deverão esclarecer ao juízo se este impacto era o suficientemente grave para comprometer a capacidade de entendimento e/ou de determinação do sujeito, e se pode ser considerado a causa do crime, ou seja, se há nexo de causalidade.
No caso de respostas positivas para incapacidades de entendimento e/ou determinação e se estabelecido o nexo de causalidade, este indivíduo poderia ser considerado inimputável. O indicado nesta situação é que seja estabelecida a medida de segurança, para que o avaliado seja tratado de sua dependência química e não punido.
1 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual diagnóstico e estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
2 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual diagnóstico e estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
3 Diehl A; Figlie N. Prevenção ao uso de álcool e drogas. O que cada um de nós pode e deve fazer? Artmed, 2014.
4 Núcleo Telessaúde de Santa Catarina. Quais os riscos do uso prolongado dos benzodiazepínicos?, 2016. Disponível em: https://aps-repo.bvs.br/aps/quais-os-riscos-do-uso-prolongado-dos-benzodiazepinicos/
5 Consultas Remédios. Bula do Clonazepam. Disponível em: https://consultaremedios.com.br/clonazepam/bula
6 Consultas Remédio. Bula do Zolpidem. Disponível em: https://consultaremedios.com.br/hemitartarato-de-zolpidem-ems/bula
7 ANVISA. Medicamento zolpidem terá alteração no tipo de receita para prescrição e venda. 15/05/2024. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2024/medicamento-zolpidem-tera-alteracao-no-tipo-de-receita-para-prescricao-e-venda#
Ana Carolina Schmidt de Oliveira
Psicóloga (PUC Campinas e UNIR Espanha), especialista em dependência química (UNIFESP), máster em psicologia lega e forense (UNED Espanha).
Elise Karam Trindade
Elise Karam Trindade, psicóloga inscrita no CRP sob nº 07/15.329; especialista em Psicologia Jurídica e Neuropsicologia. Coordenadora da equipe de Psicologia Jurídica da Vida Mental.