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A descriminalização do porte de maconha no Brasil pelo STF - Já podemos mesmo comemorar?

O debate avançou, o que merece ser comemorado, já que agora há uma luz no fim do obscuro túnel de política de drogas no Brasil.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Atualizado às 14:22

No final de junho deste ano, o STF do Brasil formou maioria de votos para descriminalizar a posse de maconha para uso pessoal, um enorme passo na direção da regulamentação e controle dessa substância, com potenciais benefícios em termos de saúde pública, bem como um marco importantíssimo para o Direito Penal brasileiro, ante à redução da violência relacionada ao tráfico e ao encarceramento em massa.

O julgamento do Recurso Extraordinário 635.659 trouxe a análise sobre a constitucionalidade do crime previsto no artigo 28 da Lei de Drogas, que impõe "leves sanções penais" para quem "adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização".

Nesse sentido, o cerne de toda questão se tornou fixar parâmetros claros para diferenciar usuários de maconha e traficantes, tendo em vista que as duas figuras geralmente são definidas a partir de estereótipos sociais. Como destacou o Ministro Alexandre de Moraes em seu voto, "triplicou-se em seis anos o número de presos por tráfico de drogas, mas não triplicamos o número de presos brancos, com mais de 30 anos e ensino superior, e, sim, o de pretos e pardos sem instrução e jovens. É preciso garantir a aplicação isonômica da Lei de Drogas para evitar que, em virtude de nível de instrução, idade, condição econômica e cor da pele, você possa portar mais ou menos maconha". O Presidente da Corte, Ministro Barroso, também ressaltou a necessidade de se estabelecer critérios objetivos para distinguir uma figura da outra, pois "na falta de critério, a mesma quantidade de drogas nos bairros mais elegantes das cidades brasileiras é tratada como consumo e na periferia é tratada como tráfico. O que nós queremos é acabar com essa discriminação entre ricos e pobres, basicamente entre brancos e negros".

Assim, visando a alcançar o objetivo acima, o Suprema Corte fixou as seguintes teses:

"1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo (art. 28, III);

2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;

3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença;

4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;

5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes;

6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários;

7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio;

8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário"1.

Como se vê do ponto 5 da modulação, a interpretação da presunção de usuário pela quantidade da droga é "relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia".

Bom, então o que será diferente? Se somente o porte ou posse para uso pessoal deixará de ser punido, mas o tráfico permanecerá da mesma forma, qual será o efeito prático da decisão? 

É importante esclarecer que o art. 28 da Lei de Drogas já dispunha sobre a impossibilidade de prisão, e para efeitos dessa mesma lei, o que havia de ser provado era a traficância. Exemplo disso é o que se observa da decisão abaixo, proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, reconhecido como dos mais rigorosos na apreciação de casos envolvendo drogas:

A condenação pelo crime de tráfico de drogas era mesmo de rigor. Ao contrário do que pretende a Defesa, inviável é a desclassificação para o crime de porte para consumo pessoal, pois, a despeito da hipótese de que a droga pudesse se destinar a seu uso, em nenhum momento demonstrou eventual dependência química ou qualquer circunstância que levasse a crer que seria apenas usuário de entorpecente. Além disso, a quantidade de entorpecente encontrada em seu poder não é pequena (03 porções contendo 20,2 gramas de maconha auto de exibição e apreensão fls.17), e, considerando que as recentes discussões sobre a descriminalização admitem que 10,0 gramas possibilitam a confecção de 34 (trinta e quatro) cigarros, o Réu portava quantidade suficiente para confeccionar, ao menos, 68 (sessenta e oito) cigarros, o que não é pouco.

A prática do tráfico de drogas, pois, está configurada, devendo ser consideradas as circunstâncias em que ocorreram a abordagem e a apreensão, tratando-se de corriqueira apreensão de traficante, em pleno ato de comercialização, portando entorpecente e algum dinheiro trocado, confirmando as suspeitas. Além disso, ainda que informalmente, admitiu a prática do tráfico, mesmo fora de sua residência e onde havia mais entorpecente guardado. E essas circunstâncias foram confirmadas judicialmente pelas testemunhas, policiais militares, responsáveis pelo flagrante.

De outra parte, como é mais do que sabido, a eventual condição de usuário não obsta o reconhecimento da atividade da traficância pelo mesmo agente"2

Sem qualquer valoração sobre o mérito do julgado acima, notável que os pontos 4 (quantidade), 5 (elementos indicativos do intuito de mercancia) e 6 (justificativas policiais para o afastamento do porte para uso pessoal) foram todos sopesados em desfavor do réu, o que não é, infelizmente, prática incomum em nosso sistema de justiça criminal.

Assim, considerando

  1. "A seletividade do sistema se direciona para aqueles indivíduos que se acham em estado de vulnerabilidade, e esta seletividade está associada com estereótipos criminais construídos socialmente, colocando alguns indivíduos e comportamentos em situações de risco criminalizante3";

Bem como que 

  1. "A pessoa não é presa pelo documento auto de prisão em flagrante, ela é presa na rua, pelo policial que efetivou a detenção e a condução à delegacia. O auto de prisão em flagrante é o documento que formaliza a prisão, portanto, se o delegado entende que aquela prisão não se deu efetivamente em flagrante, como alega o policial condutor, essa prisão deve ser relaxada pelo delegado, lavrado o respectivo auto. Mas o que acontece na prática é algo totalmente inverso, com autos de prisão em flagrante sem qualquer fundamentação, mas somente trazendo declarações objetivas e sucintas das testemunhas, quase sempre exclusivamente policiais, sem que se saiba verdadeiramente a forma de atuação policial4"

E, por fim, que 

  1. as audiências de custódia não se mostraram aptas a conter os abusos em prisões em flagrante5,

infelizmente existe uma chance bem grande de que o pobre preto da periferia continue a ser criminalizado, diferente do que pretenderam os Ministros no julgamento histórico mencionado no início deste texto. 

De outro lado, não podemos perder a esperança! Em palestra realizada recentemente no XII Fórum de Lisboa, a Ministra do Superior Tribunal de Justiça Daniela Teixeira anunciou que, em respeito à decisão do Supremo, seu gabinete já vem realizando um mutirão para o levantamento de todos os casos de tráfico de maconha de até 40g com o fim de concessão de habeas corpus de ofício. Iniciativas como essa, que nadam contra a corrente do sistema punitivo vigente em nosso país, são exatamente o que se deseja alcançar a partir da tese fixada pelo STF. 

Logo, sem dúvida alguma, o debate avançou, o que merece ser comemorado, já que agora há uma luz no fim do obscuro túnel de política de drogas no Brasil.

No entanto, por pura superstição, talvez não seja prudente gritar "GOL!" antes da bola estufar a rede.

_______________

1Disponível em : https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506. Acesso em 2.7.2024.

2 Apelação. Crime de tráfico de drogas. Absolvição por fragilidade probatória. Não cabimento. Autoria, materialidade e indicação de traficância demonstrados. Desclassificação para a conduta de porte para consumo pessoal. Não cabimento. Atenuação das penas. Impossibilidade. Não provimento ao recurso.

TJSP;  Apelação Criminal 1500693-79.2023.8.26.0558; Relator (a): Zorzi Rocha; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Novo Horizonte - 1ª Vara; Data do Julgamento: 01/07/2024; Data de Registro: 01/07/2024.

3 PINTO, Nalayne Mendonça. A construção do inimigo: considerações sobre a legislação penal brasileira.: considerações sobre a legislação penal brasileira. Especiarias: Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus, v. 12, n. 22, p. 64, jun. 2010. Semestral. Disponível em: ttps://periodicos.uesc.br/index.php/especiaria/issue/view/70. Acesso em: 20 abr. 2020.

4 VALOIS, Luis Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 3. Ed., 3 Reimp. - Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2020. p. 508.

5 GARCIA, Gabriel Mendes. Audiência de custódia e o encarceramento em massa de minorias. 93f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Faculdade de Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. https://dspace.mackenzie.br/items/c99b8afe-31c4-4797-87b1-1bbca169b5d4

Gabriel Mendes Garcia

Gabriel Mendes Garcia

Advogado associado ao Malheiros Filho, Meggiolaro e Prado advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde venceu em 2° lugar do Prêmio TCC. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pelo IDPEE - Instituto de Direito Penal Econômico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro Do IDDD, AASP, IBCCRIM e Comissão de Advocacia Criminal da OAB/SP. Autor de palestras e artigos.

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