Planejamento tributário após a ADin 2.446
Discussão é relevante para as empresas, pois define os limites da organização empresarial e das operações da empresa.
quarta-feira, 3 de julho de 2024
Atualizado às 07:40
O STF decidiu, na ADin 2.446/DF, pela constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN, norma geral antielisiva comumente utilizada pelo Fisco para combater planejamentos tributários "abusivos" por parte dos contribuintes.
Desde então, muito se discutiu acerca dos impactos práticos da decisão do STF para o planejamento tributário das empresas, em especial considerando que foi expressamente consignado, no voto da ministra relatora Cármen Lúcia, que a norma somente seria eficaz (produziria efeitos) após a edição de lei ordinária (até o momento, inexistente) para estabelecer os procedimentos a serem seguidos.
Essa discussão é relevante para as empresas, pois define os limites da organização empresarial e das operações da empresa, em especial quando esta organização (planejamento) leva em consideração aspectos tributários, como a redução da carga tributária, para realização de determinada operação ou organização empresarial.
Com base na aplicação usual do art. 116, parágrafo único, do CTN, as autoridades fiscais lavravam (e por vezes ainda lavram) autos de infração com fundamento em termos como "ausência de propósito negocial" e "ausência de finalidade econômica" da operação, para desconstituir as operações para fins tributários e impor multas elevadas, uma vez que tais operações somente seriam constituídas para fins de economia tributária, o que seria vedado pelo ordenamento jurídico.
Após a decisão do STF, essas autuações não podem ter mais base no art. 116, parágrafo único, do CTN, já que o STF definiu que o dispositivo não é norma eficaz até que seja regulamentada pela edição de lei ordinária, que até o momento é inexistente.
Diante disso, é comum autoridades fiscais se utilizarem do art. 149, inciso VII, do CTN, para embasar autuações contra planejamentos tributários dos contribuintes, alegando a existência de simulação, seja absoluta ou relativa, bem como que a ausência de regulamentação do art. 116, parágrafo único, do CTN seria irrelevante, já que o lançamento teria base no art. 149 do CTN.
Na concepção do Fisco, o art. 149, inciso VII, do CTN, embasaria quaisquer lançamentos de ofício de simulação, seja esta relativa ou absoluta.
Vale fazer uma breve explicação acerca da distinção entre a simulação absoluta e relativa. Na simulação absoluta, o negócio jurídico (ou ato jurídico) na verdade não existe, sendo meramente uma aparência com o fim de ludibriar terceiros (como o Fisco)1. Na simulação relativa, tem-se um negócio jurídico dissimulado (a que se busca acobertar), que é ocultado pelo negócio jurídico simulado, cuja existência somente serve para ocultar o negócio jurídico dissimulado.
Trata-se de distinção tênue, que envolve a finalidade da simulação praticada e a forma que é utilizada para veicular a simulação, isto é, se se utiliza de negócio jurídico existente ou inexistente.
A simulação absoluta é forma mais grave de vício do negócio jurídico, enquanto a simulação relativa, por ser vício menos grave, tem previsão de que o negócio jurídico dissimulado pode subsistir, se válido na substância e na forma (art. 167 do Código Civil).
Feito esse esclarecimento, destaca-se que o art. 116, parágrafo único, do CTN, dispõe especificamente de simulação relativa (dissimulação do fato gerador), hipótese em que há autorização expressa pelo dispositivo para desconsiderar os atos ou negócios jurídicos praticados.
Ora, se é necessária autorização específica da legislação para desconsiderar os atos ou negócios jurídicos praticados em hipótese de simulação relativa, é forçoso se reconhecer que, ausente esta autorização legal, não é possível se desconsiderar os atos ou negócios jurídicos praticados em casos de simulação relativa, ao menos até que sobrevenha a lei ordinária regulamentando o dispositivo, que é plenamente constitucional, segundo decisão do STF.
Caso contrário, o que se teria é um dispositivo que foi objeto de julgamento do STF na ADin 2.446 que sequer seria necessário no ordenamento jurídico, sendo, a bem da verdade, um dispositivo irrelevante nesta concepção.
Por certo, esta não é a melhor interpretação do ordenamento jurídico como um todo. Isso porque, como bem reconheceu o ministro Eros Grau na ADin 3.685/DF2, não se interpreta a Constituição (e o direito) em tiras, aos pedaços. A interpretação do direito deve ocorrer de forma unificada, de modo a conciliar as disposições de diversas normas para que o ordenamento jurídico seja um todo integrado e coerente.
Por isso, por mais difícil que seja o Fisco reconhecer, não há base legal, até que seja editada a lei ordinária regulamentando o art. 116, parágrafo único, do CTN, para que sejam desconsiderados os atos ou negócios jurídicos praticados em casos de simulação relativa. Esta interpretação é o que há de mais compatível com o ordenamento jurídico atualmente, sob pena de tornar dispositivos legais vigentes completamente irrelevantes, o que é expressamente vedado pelas melhores técnicas de hermenêutica jurídica.
1 (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 18.ed. São Paulo: Atlas, v. 1. 2018, pg. 551).
2 (ADI 3685, Relator(a): ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 22-03-2006, DJ 10-08-2006 PP-00019 EMENT VOL-02241-02 PP-00193 RTJ VOL-00199-03 PP-00957)
Giovani Oliveira Baptista
Advogado no Gaia Silva Gaede Advogados