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Competência para a apreciação dos conflitos entre entes federativos, após a EC 132/23

Este ensaio explora a competência jurisdicional em conflitos entre Entes Federativos, considerando decisões do STF e a nova atribuição do STJ.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Atualizado às 10:46

Neste ensaio pretendo apresentar algumas variáveis e preocupações relacionadas à competência juriscional para a apreciação e julgamento de conflitos envolvendo Entes Federativos, levando em conta o entendimento reiterado do STF e a nova atribuição do STJ, advinda da EC 132/23.

Muitos dos apontamentos que serão aqui apresentados vieram de debates com o professor Lázaro Reis, realizados durante o Congresso Brasileiro de Direito Processual Tributário, realizado em São Paulo, entre os dias 29.2 e 1.3.24. O texto, portanto, é em homenagem ao querido amigo e mestre.

O ponto de partida é a leitura do texto constitucional, especialmente quando consagra a competência originária da Corte Suprema para processar e julgar caso específico envolvendo demandas entre entes estatais, a saber:

Art. 102. Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

  1. processar e julgar, originariamente:

f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;

Apesar da redação constitucional mencionar causas e conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal restringe o âmbito de sua atuação - que normalmente é provocada mediante Ação Civil Originária, diferenciando: a) "Conflito Federativo" e "Conflito entre Entes Federados"; b) "Conflito" e "Conflito Qualificado", este último com risco direto (risco de abalo) ao chamado equilíbrio (pacto) federativo.

No tema, vale citar duas passagens:

"AGRAVO INTERNO NA AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA DO DISPOSTO NO ARTIGO 102, I, f, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONFLITO QUE NÃO SE REVELA APTO A ABALAR, DE FORMA DIRETA OU SUFICIENTE, O PACTO FEDERATIVO. DESCARACTERIZAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DESTA CORTE. NATUREZA EMINENTEMENTE TÉCNICA DA LIDE. PRECEDENTES. RETORNO DOS AUTOS AO JUÍZO DE 1º GRAU. AGRAVO INTERNO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A competência constitucional originária do Supremo Tribunal Federal para a ação prevista no art. 102, I, n, da Constituição Federal, demanda a existência de conflito apto a vulnerar os desígnios do pacto federativo. 2. Não se pode confundir conflito federativo com conflito de entes federados. Nesse sentido: "O conflito federativo qualificado para atrair a competência do STF não se confunde com a mera controvérsia entre entes federativos." (ACO 1.989-AgR, rel. min. Edson Fachin, DJe de 13/12/16). 3. In casu, a natureza essencialmente técnica da questão indica a ausência de conflito federativo capaz de ensejar a competência originária desta Corte (art. 102, I, 'f', da CF/88). 4. Agravo interno a que se nega provimento". ACO 2550 AgR - 1ª T/ STF - rel. min. Luiz Fux - J. 7/5/18 - DJe. 17/5/18.

"A competência prevista na alínea "f" do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal envolve causas e conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da Administração indireta, não alcançando contenda a revelar mero interesse patrimonial do ente político, insuscetível de abalar o pacto federativo". ACO 989 - Tribunal Pleno - rel. min. Marco Aurélio - J.  Tribunal Pleno - rel. min. Marco Aurélio - J. 11/09/2019 - DJe 07/11/2019.

Como se pode perceber, interpretando a previsão do texto constitucional, o STF entende que sua competência orignária está presente apenas nas situações que se enquadram como Conflitos Federativos Qualificados, com risco ao pacto federativo.

Há, como consequência, situações em que demandas envolvendo Entes Públicos não configuram Conflito Federativo Qualificado e sim conflito entre Entes Federados. Estas causas, normalmente de natureza pecuniária / obrigacional, seguem a regra geral de competência prevista na Constituição Federal e no CPC, devendo ser propostas em juízo originário de 1º Grau (exceto se houver regra de competência específica para atuações dos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais).

Vale transcrever a Ementa de Acórdão relatado pela exma. ministra Carmen Lúcia em situação exatamente como esta, concluindo pelo declínio de competência para o juízo Federal:

"AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. PIAUÍ. TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. CONTAS REJEITADAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. CONDENAÇÃO À RESTITUIÇÃO DOS VALORES AO ERÁRIO. NÃO PAGAMENTO DA DÍVIDA. INSCRIÇÃO NO CADASTRO INFORMATIVO DOS CRÉDITOS NÃO QUITADOS DE ÓRGÃOS E ENTIDADES FEDERAIS - CADIN. NATUREZA PATRIMONIAL. AUSÊNCIA DE CONFLITO FEDERATIVO DE COMPETÊNCIA DO STF: AL. F DO INC. I DO ART. 102 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRECEDENTES. COMPETÊNCIA DECLINADA. REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA FEDERAL. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO COM APLICAÇÃO DE MULTA DE 1% SOBRE O VALOR ATUALIZADO DA CAUSA, SE UNÂNIME A VOTAÇÃO". ACO 3217 AgR - STF Tribunal Pleno - rel. min. Carmen Lúcia - J. 10/10/22 - DJe 18/10/22.

De outro prisma, é importante analisar a nova hipótese de conflito, advinda da EC 132/23 - alteração do STN - Sistema Tributário Nacional - e que poderá gerar algumas dúvidas interpretativas e eventual sobreposição de competências jurisdicionais (atribuições constitucionais) entre o STJ e o STF.

Dentre as muitas alterações e novidades advindas desta Emenda Constitucional, merece detida atenção a criação do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, sujeito à edição de Lei Complementar que irá consagrar a competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e municípios (art. 156-A), incluindo a atuação integrada por meio do Comitê Gestor do IBS.

Por certo, muitas ações judiciais deverão ser propostas entre os Contribuintes e os Fiscos Estaduais, municipais e do Distrito Federal, o que desafiará muito cuidado na interpetação acerca da competência jurisdicional adequada, especialmente em razão desta atuação integrada e compartilhada do citado Comitê Gestor.

Da mesma sorte, com o passar do tempo e a regulamentação por Lei Complementar, eventuais conflitos entre os Entes que fazem parte do Comitê Gestor ou entre os Entes e o próprio Comitê Gestor deverão surgir, gerando dúvidas concretas quanto à competência jurisdicional para apreciação e julgamento.

Em suma, em decorrência da multiplicidade das relações/atribuições tributárias, será necessário observar a competência jurisdicional para três grupos de demandas: a) Entre Contribuintes e os Fiscos Estaduais, municipais e Distrital; b) Entre os Fiscos componentes do Comitê Gestor do IBS; c) Entre estes Fiscos e o próprio Comitê Gestor do IBS.

Assim, visando enfrentar especificamente os dois últimos grupos, a Emenda Constitucional consagrou nova competência originária ao STJ (art. 105, I, j da CF/88), a saber:

"Art. 105. Compete ao STJ:

I - processar e julgar, originariamente:

(...)

j) os conflitos entre entes federativos, ou entre estes e o Comitê Gestor do IBS, relacionados aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V; (Incluído pela EC 132/23)

Nos termos da mudança constitucional, a Corte da Cidadania passará a ser competente originariamente para as hipóteses envolvendo conflitos entre os Entes Federativos (fiscos estaduais, municipais e distrital), ou entre estes Entes e o Comitê Gestor do IBS, relacionados aos tributos previstos no art. 156-A (instituição do IBS de competência compartilhada entre os Estados, Distrito Federal e municípios) e 195, V da EC 132/23.

Uma indagação que pode ser feita, cuja resposta ultrapassa os objetivos deste texto, é quem será o réu nesta Ação Originária a ser proposta no STJ em face de ato do Comitê Gestor, considerando: a) a legislação única e uniforme em todo território nacial, exceto no que respeita a fixação da alíquota por cada Ente Federativo (art. 156-A, IV e V da EC 132/23; b) a natureza jurídica do Comitê Gestor (art. 156-B, da EC 132/23); c) a atuação paritária e a representação judicial pelas procuradorias dos Estados, Distrito Federal e municípios (art. 156-B, §2º, V, da EC 132/23).

Portanto, com a nova competência advinda desta Emenda Constitucional e a interpretação reiterada do STF, as variáveis envolvendo a competência jurisdicional podem ser assim resumidas: a) Conflitos Federativos qualificados (risco de ofensa ao pacto federativo): competência originária da Corte Constitucional; b) conflitos entre os Entes Federativos ou entre estes Entes e o Comitê Gestor do IBS, relacionados aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, da EC 132/23: competência originária da Corte da Cidadania; c) conflitos entre Entes Federados diversos, normalmente de natureza econômica e que não se enquadrem como Conflitos Federativos Qualificados: competência do juízo da 1ª Instância respectivo; d) conflitos entre contribuintes e os Fiscos Estaduais, municipais e Distrital, incluindo aqueles ligados ao IBS: competência também do juízo da 1º Grau, exceto em caso de competência de Tribunais de Justiça ou Regionais Federais, em razão da pessoa, matéria, etc (ex. mandado de segurança contra ato de Secretário de Estado).

Esta tentativa de resumir as variáveis envolvendo a competência jurisdicional, deixa ainda algumas questões importantes que serão respondidas apenas no futuro, a saber: será que o STJ, assim como o STF, irá fixar sua competência apenas para os Conflitos Qualificados envolvendo IBS, determinando a remessa de alguns feitos entre Entes Federativos e entre estes Entes e o Comitê Gestor para o juízo de 1º Grau? A simples presença de Entes Públicos em demanda envolvendo o IBS ou ato do respectivo Comitê Gestor irá gerar a competência originária do STF, ou deverá ter algo de diferenciado ou qualificado no objeto litigioso? Poderá ocorrer conflito de atribuições/competência entre os Tribunais Superiores nos casos de Conflito Qualificado com risco direto ao equilíbrio/ pacto federativo envolvendo a atuação do Comitê Gestor do IBS? Seria possível realizar uma ponte de ligação no âmbito da competência dos Tribunais Superiores, à semelhança daquela prevista nos arts. 1.032 e 1.033, do CPC?

Esta última indagação merece mais algumas palavras, bem como outras inquietações, tendo em vista que a legislação processual consagra a possibilidade de mudança de competência para a apreciação de Recurso Especial ou Extraordinário, deslocando-se os recursos excepcionais entre os Tribunais Superiores, consagrando, com isso, a primazia da resolução do mérito recursal, a instrumentalidade e o aproveitamento recursal. Assim, seria possível utilizar este mesmo entendimento, em caso de Conflito Federativo Qualificado envolvendo Ação entre os Fiscos ou entre eles e o Comitê Gestor, relacionados aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, da Emenda Constitucional 132/23? A competência será do STF, em razão da configuração de Conflito Federativo Qualificado (art.102, I, f, da Constituição Federal), ou da Corte da Cidadania (art. 105, I, j, do texto constitucional)? Caso um dos Tribunais Superiores se declare incompetente, deverá declinar a apreciação do feito para o outro, aproveitando-se a demanda judicial já proposta?

Além disso, como já indicado acima, há a necessidade de se perquirir em relação aos critérios de fixação de competências nas diversas ações que podem ser promovidas entre contribuintes e os respectivos fiscos, com competência fixada em 1º Grau, na Justiça Federal, Estadual ou Distrital, ou mesmo em Tribunais (especialmente nos casos de mandados de segurança em que as autoridades coatoras gozam de prerrogativa de foro).

Estas são algumas variáveis interpretativas advindas da multiplicidade de competência envolvendo Conflitos Federativos (qualificados ou não) e Conflitos entre os Entes Federativos, especialmente após as mudanças constitucionais advindas da Emenda Constitucional 132/23.

José Henrique Mouta

VIP José Henrique Mouta

Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

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