Direito administrativo das catástrofes, contratações públicas no estado de calamidade pública e a MP 1.221/24
A legislação é influenciada pela realidade social e, no Brasil, frequentemente reage a eventos significativos. Exemplos são a lei 13.979/20 para enfrentar a COVID-19 e a MP 1.221/24, após uma tragédia climática no RS.
quarta-feira, 5 de junho de 2024
Atualizado às 14:14
A inter-relação entre o direito e a realidade é inerente à regulação da vida em sociedade. Assim como a legislação pretende transformar a realidade, os fatos, invariavelmente, impactam na produção normativa. Neste contexto, a legislação reativa tem a finalidade de apresentar uma resposta normativa, com a fixação de regras gerais e abstratas, a partir de determinado fato, geralmente de impacto relevante para sociedade, economia e o meio ambiente.
No Brasil, não raras as vezes, o legislador tem sido reativo aos fatos, o que pode ser simbolizado por dois eventos trágicos recentes que motivaram a elaboração de normas jurídicas específicas de licitações e contratações públicas, a saber: a) a lei 13.979/20, alterada pela lei 14.035/20, fixou normas sobre as medidas emergenciais para o enfrentamento do coronavírus na pandemia de COVID-19, reconhecida pela OMS - Organização Mundial da Saúde em 11/3/20; e b) a MP 1.221/24 dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública, que foi elaborada a partir da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, ocorrida nos meses de abril e maio de 2024.
É possível perceber que as duas tragédias, uma de escopo regional e a outra mundial, compartilham uma característica comum no âmbito do direito contratual público: a insuficiência do regime jurídico previsto na lei de licitações e contratos administrativos - tanto a lei 8.666/93, revogada no final de 2023, quanto a lei 14.133/21, atual diploma legal a respeito do tema.
As respostas normativas às duas tragédias reforçam a importância de avançarmos em busca de um estatuto jurídico voltado para o Direito Administrativo das catástrofes, Direito Administrativo das emergências públicas ou o estado de necessidade administrativo, notadamente no campo das contratações públicas.
O presente estudo pretende lançar considerações a respeito do regime jurídico especial instituído pela MP 1.221/24, demonstrando sua importância para a pavimentação do caminho em busca de um futuro estatuto jurídico das contratações públicas em situações emergenciais e calamitosas.
Importante destacar que a MP 1.221/24 possui aplicação nacional e não se limita a dispor sobre medidas urgentes no âmbito da tragédia gaúcha, revelando que, ao lado do caráter reativo, o citado ato normativo possui, também, caráter preventivo, uma vez que pretende dispor de regime jurídico excepcional a ser aplicado em futuras catástrofes enquadradas como "estado de calamidade". O regime jurídico especial instituído pela MP 1.221/24, na forma do art. 18, não impede a aplicação do disposto na lei 14.133/21, naquilo que não lhe for contrário. Ademais, as medidas excepcionais introduzidas pela MP 1.221/24 foram inspiradas, em grande medida, no regime jurídico excepcional e temporário previsto na lei 13.979/20, alterada pela lei 14.035/20, para o enfrentamento da COVID-19.1
De acordo com o art. 2º da MP 1.221/24, a administração pública pode: a) dispensar a licitação para a aquisição de bens, a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, observado o disposto no Capítulo III da citada MP; b) reduzir pela metade os prazos mínimos de que tratam o art. 55 e o § 3º do art. 75 da lei 14.133/21, para a apresentação das propostas e dos lances, nas licitações ou nas contratações diretas com disputa eletrônica; c) prorrogar contratos para além dos prazos estabelecidos na lei 8.666/93 e na lei 14.133/21, por, no máximo, doze meses, contados da data de encerramento do contrato; d) firmar contrato verbal, nos termos do disposto no § 2º do art. 95 da lei 14.133/21, desde que o seu valor não seja superior a R$ 100.000,00, nas hipóteses cuja urgência não permita a formalização do instrumento contratual; e e) adotar o regime especial previsto no Capítulo IV da referida MP para a realização de registro de preços.
- Confira aqui a íntegra do artigo.
1 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Estado de necessidade administrativo e poder de polícia: o caso do novo coronavírus. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 18, n. 68, p. 9-23, jan./mar. 2020.