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STJ declara provas ilícitas em caso de prisão em flagrante sem autorização judicial

Em decisão marcante, o STJ invalidou provas obtidas durante a prisão em flagrante de um acusado, após um policial atender uma chamada no celular do detido sem autorização judicial. O episódio levantou questões sobre a legalidade da coleta de provas e a violação da privacidade, sublinha a necessidade de seguir rigorosamente os procedimentos legais em investigações criminais.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Atualizado às 07:42

Em um mundo cada vez mais digitalizado, a jurisprudência brasileira enfrenta o desafio de equilibrar a eficácia das investigações criminais com a proteção dos direitos fundamentais à privacidade e à intimidade. A apreensão de dispositivos eletrônicos e o acesso aos dados armazenados tornaram-se ferramentas essenciais nas investigações, mas levantam questões significativas sobre os limites da intervenção estatal na vida privada dos cidadãos.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XII, estabelece que o sigilo da correspondência e das comunicações é inviolável, exceto por ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Esse dispositivo legal é a base para a emissão de mandados de busca e apreensão de dispositivos eletrônicos, ressaltando a importância do devido processo legal.

"XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal."

Decisões do STF e do STJ têm clarificado a distinção entre a proteção à comunicação de dados e os registros dessas comunicações. No julgamento do Habeas Corpus 91.867, o STF estabeleceu uma distinção importante, ressaltando que a proteção constitucional se aplica à comunicação de dados, e não aos dados enquanto registros. Essa diferenciação sublinha que, embora a privacidade e a intimidade sejam direitos fundamentais, eles podem ser relativizados diante da necessidade de investigar e punir crimes.

Trechos da ementa:

"Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados."

O STJ tem reiterado a importância da autorização judicial para a apreensão de dispositivos móveis e o acesso aos dados neles armazenados. No Agravo Regimental no Habeas Corpus (AgRg no HC) 675.582/PE, o STJ enfatizou que a ordem de apreensão de um aparelho celular ou smartphone implicitamente inclui o acesso aos dados armazenados, desde que tal acesso esteja devidamente fundamentado e autorizado pelo Poder Judiciário.

Trechos da ementa:

"Este Tribunal Superior já assentou que "na pressuposição da ordem de apreensão de aparelho celular ou smartphone está o acesso aos dados que neles estejam armazenados, sob pena de a busca e apreensão resultar em medida írrita, dado que o aparelho desprovido de conteúdo simplesmente não ostenta virtualidade de ser utilizado como prova criminal."

A obtenção de provas por meios ilícitos é firmemente repudiada pela jurisprudência brasileira. No AgRg do HC 499.425/SC, o STJ estabeleceu que a prova obtida diretamente dos dados constantes de aparelho celular sem prévia autorização judicial é considerada ilícita. Esse princípio reforça a importância de seguir os procedimentos legais e proteger os direitos individuais durante as investigações criminais.

Trechos da ementa:

"Ambas as turmas da 3ª seção deste Tribunal Superior entendem ilícita a prova obtida diretamente dos dados constantes de aparelho celular, decorrentes de mensagens de textos SMS, conversas por meio de programa ou aplicativos (WhatsApp), mensagens enviadas ou recebidas por meio de correio eletrônico, decorrentes de flagrante, sem prévia autorização judicial."

No RHC - Recurso em Habeas Corpus 59.661/PR, o STJ enfrentou a delicada questão sobre a necessidade de especificação detalhada dos bens a serem apreendidos em mandados de busca e apreensão durante a fase pré-processual de uma investigação. A corte concluiu que exigir dos magistrados a descrição minuciosa dos itens a serem apreendidos antes mesmo da realização da diligência não é razoável. Tal prática colocaria sobre os juízes a impraticável tarefa de antecipar os resultados específicos das buscas, uma espécie de "futurologia" judicial, o que claramente transcende os limites do possível e do razoável. Portanto, o STJ estabeleceu que, nesta fase inicial da investigação, não se pode demandar uma precisão detalhada sobre os bens a serem apreendidos.

Trechos da ementa:

"A pormenorização dos bens somente é possível após o cumprimento da diligência, não sendo admissível exigir um verdadeiro exercício de futurologia por parte do Magistrado, máxime na fase pré-processual (Precedentes)."

Durante o julgamento do Habeas Corpus 672.688/MS, o STJ examinou uma questão crucial relacionada à coleta de provas em um contexto de prisão em flagrante, destacando a ausência da necessária autorização judicial. O incidente em questão ocorreu quando, durante a detenção do cidadão, um policial atendeu uma chamada no celular do detido sem possuir autorização judicial ou consentimento do proprietário do aparelho. Na ocasião, o policial se passou pelo dono do celular e alegou que a chamada recebida era um pedido para a compra de substâncias entorpecentes.

A acusação formulada contra o réu fundamentou-se nos dados obtidos por meio dessa intervenção no celular, realizada pela autoridade policial. Contudo, essas evidências foram consideradas ilícitas pelo STJ, dada a forma irregular com que foram coletadas, ou seja, sem a prévia autorização judicial necessária para tal ação. Este caso ressalta a importância do respeito aos procedimentos legais e à privacidade individual no processo de coleta de provas durante investigações criminais.

Trechos da ementa:

"No caso, por ocasião da própria prisão em flagrante - sem, portanto, a prévia e necessária autorização judicial -, o policial atendeu o telefone do réu e afirmou que a ligação tratava de um pedido de venda de substância entorpecente. [...] 3. A denúncia se apoiou em elementos obtidos a partir da apreensão do celular pela autoridade policial, os quais estão reconhecidamente contaminados pela forma ilícita de sua colheita.

Não tendo a autoridade policial permissão, do titular da linha telefônica ou mesmo da Justiça, para ler mensagens nem para atender ao telefone móvel da pessoa sob investigação e travar conversa por meio do aparelho com qualquer interlocutor que seja se passando por seu dono, a prova obtida dessa maneira arbitrária é ilícita.

No caso, a condenação do paciente está totalmente respaldada em provas ilícitas, uma vez que, no momento da abordagem ao veículo em que estavam o paciente, o corréu e sua namorada, o policial atendeu ao telefone do condutor, sem autorização para tanto, e passou-se por ele para fazer a negociação de drogas e provocar o flagrante.

Ordem concedida a fim de reconhecer a ilicitude da prova produzida por meio do atendimento policial da ligação da paciente para o celular do corréu no momento do flagrante, bem como de todas as dela decorrentes, com a consequente anulação da condenação da paciente."

A jurisprudência brasileira destaca a necessidade de preservar os direitos à privacidade e à intimidade, mesmo diante da necessidade de combater o crime. A apreensão de dispositivos eletrônicos e o acesso aos dados requerem uma autorização judicial prévia, fundamentada em evidências concretas que justifiquem tais medidas. Este equilíbrio entre a eficácia das investigações e a proteção dos direitos fundamentais reflete o compromisso do sistema jurídico brasileiro com o Estado de Direito, assegurando que a busca pela verdade processual respeite as garantias constitucionais.

As decisões citadas neste artigo ilustram a complexidade e a importância desse equilíbrio delicado, reforçando a ideia de que, enquanto a tecnologia continua a evoluir, também deve evoluir a nossa compreensão de como proteger os direitos fundamentais em um mundo cada vez mais digitalizado.

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Lei nº. 9.296, de 24 de julho de 1996.

HC 91867, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 24/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 19-09-2012 PUBLIC 20-09-2012.

AgRg no HC n. 675.582/PE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/8/2021, DJe de 30/8/2021.

RHC n. 59.661/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/11/2015, DJe de 11/11/2015.

AgRg no HC n. 499.425/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 6/6/2019, DJe de 14/6/2019.

HC n. 672.688/MS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 20/6/2022.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

VIP Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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