A responsabilidade civil no anteprojeto de reforma do Código Civil - Parte 1: Ilicitude
O Anteprojeto confunde os conceitos de culpa e ilicitude, introduzindo desnecessária ampliação das hipóteses de responsabilidade objetiva por meio do afastamento de filtros relevantes (ilicitude, defeito e atividade essencialmente perigosa).
quarta-feira, 5 de junho de 2024
Atualizado às 07:57
A disciplina da responsabilidade civil foi bastante modificada pelo Anteprojeto de reforma do Código Civil, apresentado ao Senado Federal no último dia 11/4/24. Todavia, parece-nos que a matéria foi tratada de forma pouco técnica, com a clara finalidade de ampliar as hipóteses de responsabilização objetiva, por meio da atenuação dos seus pressupostos legais, especialmente a ilicitude e o dano, com reflexos no nexo de causalidade.
Este primeiro artigo dedica-se à questão da ilicitude, devendo-se desde logo ponderar que, embora aparentemente bem intencionada, a excessiva facilitação da configuração do dever de indenizar desequilibra as relações sociais, traz insegurança jurídica e, para além de causar injustiças, desestimula o desenvolvimento econômico tão essencial à geração de riquezas e à melhoria da qualidade de vida das pessoas.
O conceito o de ato ilícito consta atualmente na Parte Geral do Código Civil, art. 186, que dispõe que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". O atual dispositivo preocupa-se somente em definir ato ilícito. As consequências da sua prática estão previstas a partir do art. 927, do Código Civil, no título da Responsabilidade Civil. O art. 927, caput, do diploma atual dispõe que "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".
A definição legal de ato ilícito sempre gerou certa perplexidade, já que o ato ilícito aparece, ao mesmo tempo, como um dos pressupostos da responsabilidade civil (ilicitude: "violar direito") e como o conjunto de todos os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva (a culpa, consistente na "ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência"; a ilicitude objetiva ou antijuridicidade, identificada na expressão "violar direito"; o nexo causal e o dano, previstos na expressão "causar dano").
Na tentativa de sanar tal perplexidade, a doutrina costuma diferenciar o "ato ilícito em sentido estrito" (conjunto dos pressupostos da responsabilidade civil) do "ato ilícito em sentido amplo" (ilicitude objetiva ou antijuridicidade, que significa a mera contrariedade ao direito, pressuposto de qualquer modalidade de responsabilidade civil)1.
As definições dos pressupostos para a responsabilidade civil (ilicitude, dano e nexo de causalidade) e dos seus fatores de imputação (culpa ou risco) foram delineadas de forma excepcional pela professora Judith Martins-Costa em artigo denominado "A Linguagem da Responsabilidade Civil"2. A leitura é obrigatória para todos que tencionam entender a matéria que, apesar da corriqueira aplicação pelos operadores do direito, não raro é incompreendida.
Para efeitos do presente artigo, consideram-se equivalentes as expressões ilicitude (que será empregada sempre em sua acepção objetiva), ilícito/ato ilícito (em sentido amplo) e antijuridicidade, todos significando a contrariedade ao direito. Essas expressões diferem do conceito de culpa (fator de atribuição da responsabilidade subjetiva), que significa a reprovabilidade da conduta negligente, imprudente ou imperita.3
O Anteprojeto, num primeiro momento, corrige o conceito de ilicitude, dispondo no caput do seu art. 186 que "A ilicitude civil decorre de violação a direito". Trata-se da ilicitude objetiva ou antijuridicidade. No entanto, refere-se à culpa ao dispor no novo parágrafo único deste mesmo dispositivo que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia [elementos da culpa], violar direito e causar dano a outrem, responde civilmente" (g.n.).
- Confira aqui a íntegra do artigo.
1 Ver, por exemplo, CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 10.
2 MARTINS-COSTA, Judith. A Linguagem da Responsabilidade Civil. In: BIANCHI, José; PINHEIRO, Rodrigo; ALVIM, Teresa. Jurisdição e Direito Privado: Estudos em Homenagem aos 20 Anos da Ministra Nancy Andrighi no STJ. São Paulo: Editora Thomsom Reuters Revista dos Tribunais, 2020, p. 389/418.
3 "O antijurídico não é necessariamente culposo. A culpa, em sentido lato, consiste no juízo de reprovabilidade sobre a conduta humana, quando negligente, imprudente ou imperita (culpa em sentido estrito) ou quando tem a intenção de causar o dano (dolo). Sinteticamente, pois, culpa é violação de dever preexistente que o agente devia e podia observar. Sendo o ilícito a contrariedade a direito, é incorreta - embora nada incomum - a confusão entre ilicitude e culpa, pois mistura dois conceitos diversos e toma, como se sinônimos fossem um pressuposto (ilicitude ou antijuridicidade) e um fator de imputação de responsabilidade civil (culpa). Ademais, essa indevida conjugação conceitual tem por consequência levar a considerar que, na responsabilidade objetiva (a qual prescinde da culpa, sendo informada por diverso fator de imputação, isto é, pelo risco), seriam indenizáveis os danos decorrentes de uma conduta lícita, o que não é também acertado nem guarda relação lógica e axiológica com o sistema" (MARTINS-COSTA, Judith. In: op. cit, p. 396).
Eliane Leve
Advogada, sócia do escritório BCW Advogados. Formada em Direito pela UERJ, especialista em direito civil-constitucional pela UERJ e em direito contratual pela FGV.