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Os desafios de conformidade para as BETS no Brasil após a publicação da regulamentação pelo Ministério da Fazenda

Thiago Genda

Desde 1946, jogos de azar eram proibidos no Brasil, exceto loterias controladas pelo governo. Com a internet, restringir essas atividades tornou-se impraticável, especialmente com o surgimento de casas virtuais de apostas. Ignorar o potencial de receita desse mercado seria negligente.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Atualizado às 07:48

Desde 19461, por determinação do presidente Eurico Gaspar Dutra, as apostas e os jogos de azar estavam proibidos no Brasil, restando apenas as loterias, controladas pelo Governo via Caixa Econômica Federal, como a única opção para quem gosta de arriscar a sorte como forma de entretenimento. Única opção legal, importante esclarecer, pois o famigerado "Jogo do Bicho"2, ilegal desde 1941, segue, ao longo dos anos, firme, forte e sangrento, como o documentário Vale o Escrito, produzido e exibido pela Rede Globo, retratou de modo bastante competente.  

No entanto, em um mundo no qual a internet torna as fronteiras cada vez menos perceptíveis, seguir restringindo esse tipo de negócio era praticamente impossível e isso ficou ainda mais claro após o advento das casas virtuais de apostas (aqui apelidadas de Bets), que invadiram o mundo.  

Assim como não se pode fugir das tendências globais em relação aos jogos, ignorar os valores gigantescos movimentados por esse mercado e a oportunidade de taxá-los adequadamente seria quase uma negligência por parte do Estado. Apenas para trazer um exemplo desses montantes astronômicos, cito a nossa vizinha Colômbia, onde as apostas foram objeto de detalhada regulamentação estatal em 2015 e que, somente em tributos cobrados nessa área, arrecadou em 2022 o equivalente a US$236 milhões. O mercado global de apostas aponta para uma movimentação de algo próximo aos US$140 bilhões já em 2028.  

Considerando que os brasileiros já conheciam e apostavam em alguns desses sites, - contudo, o faziam de forma muito trabalhosa e limitada, pois precisavam se registrar com um endereço no exterior e indicar uma conta internacional para colocar e receber dinheiro das plataformas - não restou alternativa aos governantes por aqui se não legalizar o funcionamento das Bets. Dessa forma, em 2018 o Poder Executivo resolveu reconhecê-las e permitir seu funcionamento por meio da publicação da Medida Provisória 841/18, posteriormente convertida na lei 13.756/18, que trouxe como justificativa, em sua exposição de motivos, o incremento para os cofres públicos que a taxação do setor proporcionaria, prevendo destinar à segurança pública a maior parte das receitas geradas pelos tributos impostos à nova modalidade de loteria que criava.

Em menos de quatro anos desde a autorização, as Bets estrangeiras levaram o Brasil a uma marca surpreendente: em 2022, o país chegou à liderança no ranking de acessos a sites de aposta, lugar até então ocupado pelo Reino Unido, onde apostar faz parte da cultura popular há décadas, quiçá séculos. Mais de 500 empresas de jogos online entraram em nosso mercado e uma pesquisa do Datafolha revelou que 15% dos brasileiros já se aventuraram nesses sites, gastando em média R$263,00 mensais por pessoa. Ao todo, em 2023, foram gastos R$54 bilhões em apostas online por usuários no país.

Porém, apesar de a lei brasileira ter sido publicada em 2018, somente no final de 2023 os primeiros passos para uma efetiva regulamentação foram dados, com a publicação da lei 14.790/23, que alterou a anterior e trouxe, de forma mais objetiva, as diretrizes a serem observadas pelo Ministério da Fazenda para regular o exercício do que o legislador nacional chamou de loteria na modalidade de apostas de quota fixa3.  

Opostamente ao que foi feito à época da publicação da lei 13.756/18, que permitiu de forma automática o funcionamento das Bets estrangeiras, a legislação atual condiciona a atuação no país a uma autorização, cujos requisitos completos4 foram divulgados no último dia 22 de maio pela Secretaria de Prêmios e Apostas5, órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, a quem cabe autorizar, permitir e conceder, regular, normatizar, monitorar, supervisionar, fiscalizar e sancionar as apostas de quotas fixas, além de loterias e outras formas de distribuição gratuita de prêmios.

As empresas não mais poderão atuar diretamente do exterior (característica comum a 100% das que estão em operação hoje). Elas deverão não apenas constituir uma pessoa jurídica brasileira como devem ter em sua composição ao menos um sócio brasileiro, que detenha, no mínimo, 20% do capital social. A autorização está condicionada, também, à aprovação por entidade certificadora do sistema de apostas, ao recolhimento de uma contraprestação de outorga, no valor de R$30.000.000,00, e à manutenção de uma reserva financeira de R$5.000.00,00, a fim de cobrir o risco de liquidez, deixando claro que é um mercado para "peixes grandes". 

Outro ponto importante, ainda na esfera societária, para os operadores de aposta6 observarem antes de solicitarem a autorização para funcionamento, é a vedação constante do §2º do artigo 7º da lei, a qual não permite que o sócio ou acionista controlador da Bet tenha participação em Sociedade Anônima do Futebol ou organização esportiva profissional, tampouco atue como dirigente em equipe desportiva brasileira, criando uma obrigação de conhecer e atualizar frequentemente informações sobre seus administradores, o que poderíamos chamar, na esteira das "K Policies" (KYC, KYE, KYP etc.), de uma política de Know Your Owner.  

E falando em políticas, o novo arcabouço legal e regulatório impõe às Bets a manutenção de normas internas voltadas ao atendimento aos apostadores, à ouvidoria, à prevenção à lavagem de dinheiro, ao jogo responsável e à prevenção aos transtornos de jogo patológico, à integridade de apostas e à prevenção à manipulação de resultados e outras fraudes, ficando a cargo do Ministério da Fazenda definir os requisitos e diretrizes para avaliação da eficácia de todas elas, as quais, se não aprovadas, podem barrar o processo de autorização.

Requisitos para a regulação de temas como a publicidade e propaganda têm uma seção inteira dedicada a eles. Praticamente dividido em dois blocos, que poderíamos chamar de bloco dos "Do" e bloco dos "Don't". O primeiro, embora dependa de regulamentação complementar, mostra claramente a preocupação do legislador com os efeitos danosos que a compulsão por jogos pode causar aos indivíduos ao determinar que as Bets mantenham, no mínimo, avisos de desestímulo ao jogo e alertas sobre os riscos do jogo patológico, desenvolvam código de conduta e de difusão de boas práticas e direcionem sua publicidade exclusivamente ao público adulto.

Já o segundo, sobre o que não devem fazer, traz uma lista expressa e não requer posterior regulamentação, a qual pode vir a complementá-la futuramente. Estão vedadas a publicidade ou propaganda comercial de operadores de apostas: (i) que não tenham a autorização prévia do Ministério da Fazenda; (ii) que contenham afirmações sem fundamento sobre as probabilidades de ganho; (iii) que associem o jogo a êxito pessoal ou social; (iv) que possibilitem a interpretação de que o jogo pode ser uma ocupação, emprego, fonte de renda ou solução para problemas financeiros; (v) que contribuam para ofender crenças culturais ou tradições do país; (vi) que promovam marketing em escolas, universidades ou dirigidas a menores de idade.  

A lei também demanda ações dos provedores de conexão à internet, obrigados a excluir de suas plataformas materiais publicitários ou de propaganda considerados irregulares ou a bloquear sites e aplicativos, após notificação do Ministério da Fazenda. 

E, como forma de evitar qualquer conflito de interesses, as Bets estão proibidas de adquirir, licenciar ou financiar a aquisição de direitos de transmissão de eventos desportivos realizados em território nacional, por qualquer meio ou processo.

Como citado anteriormente, os setores bancário e de meios de pagamento não ficaram de fora, porém a Portariapublicada sobre as transações de pagamento não abordou a parte que toca no campo da ciência de dados, tratada na lei quando ela dispõe que o Ministério da Fazenda deverá regulamentar a obrigatoriedade de que as Bets monitorem as atividades dos apostadores para identificar seus gastos, padrões, tempo despendido jogando e indicadores de comportamento de jogo e mantenham registros de todas as operações por eles realizadas8.  

Diferentemente do que ocorre no tocante às exigências relacionadas ao processo de "Conheça o Seu Cliente", que analisaremos mais adiante, a dificuldade neste ponto está não na obtenção dos dados, os quais já estarão disponíveis dentro do sistema do operador de apostas, mas sim na atividade de cruzamento deles para identificação de padrões, exigindo das Bets a aquisição ou o desenvolvimento e manutenção de um bom sistema de Data Analytics, além da clara definição em políticas de negócio dos triggers que acionarão providências adicionais e preventivas, como, por exemplo, o bloqueio de apostadores identificados como jogadores patológicos ou a comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre a suspeita de prática dos crimes  previstos na lei 9.613/989. É esperado que tais aspectos sejam tratados nas portarias que virão a regulamentar o sistema de prevenção à lavagem de dinheiro e o chamado "jogo responsável".

Seguindo no universo de dados, porém agora não no seu tratamento direto, mas, um passo antes, na sua coleta, a lei traz em seu art. 26 talvez o maior desafio de conformidade que as Bets enfrentarão no seu processo de adequação às regras brasileiras. Ali estão listadas as pessoas impedidas de apostar.

Ao impor uma extensa lista de informações a observar quanto aqueles que irão utilizar os serviços das Bets, o legislador está, de maneira bastante direta, estabelecendo requisitos detalhados para a política de KYC (Know Your Client) dessas empresas. E isso é feito de uma forma, arriscamos dizer, mais rigorosa do que a percebida para players de outras atividades altamente reguladas, como, por exemplo, dos setores de bancos e de seguradoras, considerando a peculiaridade do que é requerido dos operadores de aposta.

Toda a complexidade está diretamente ligada à dificuldade para se obter informações assertivas para identificar os clientes e as características que os tornariam impedidos. São impedidas de apostar, além dos menores de 18 anos, pessoas que exerçam alguma influência, dirijam, administrem ou trabalhem nas Bets; agentes públicos que atuem na regulação da área; pessoas que possam ter influência sobre o resultado de evento real de temática esportiva; pessoas que integrem equipes desportivas em determinadas funções; árbitros; atletas; membros de empresas organizadoras de eventos desportivos; pessoas com ludopatia10; e, por fim, os cônjuges, companheiros e parentes em linha reta e colateral, até o segundo grau, das pessoas citadas como impedidas anteriormente.

Logo, as Bets brasileiras já nasceram com uma necessidade gigantesca de coletarem dados, em sua maioria não disponíveis de forma pública, que permitam a identificação de pessoas na condição de impedidas para não se verem implicadas em descumprimento legal e regulatório. Some-se a essa carência os limites impostos pela LGPD, que certamente impactarão iniciativas relacionadas à alimentação de informações cadastrais por meio do consumo em massa de bases de dados. E, ainda que a utilização dessas bases venha a ser uma opção, os grandes bureaux, fornecedores habituais desse tipo de produto, não estão preparados atualmente para atender a esta demanda em específico. Em uma rápida busca na internet, tudo que se encontra relacionado a serviços de KYC para Bets mira a prevenção à fraude, tema sem dúvida importante para as empresas, mas mais voltado a evitar perdas, embora a lei também trate do assunto11, do que a garantir a conformidade com a norma, criando um cenário significativamente desafiador para os operadores de apostas interessados no mercado brasileiro.

O regulador definiu como limite para adequação às novas exigências por parte dos players já em atividade no país a data de 31/12/24.  

Dessa forma, vê-se que o desafio de Compliance para as Bets no Brasil não é simples e vai demandar grande esforço por parte daqueles que, dentro de suas  estruturas, ficarem responsáveis por garantir a conformidade do negócio com as regras nacionais, haja vista que o processo instrutório para solicitação da autorização de operação no país é composto por uma extensa lista de informações e documentos trazida nos anexos da Portaria SPA/MF 827.

Aliás, manter estrutura e processos dedicados a tal finalidade não é somente uma boa prática e altamente recomendável, como também é exigência legal e regulatória, contida no parágrafo único do art. 37 da lei, onde o legislador determina a criação de área e canal específicos para atender às demandas da fiscalização, e reforçada na mais recente Portaria em seu art. 8º, §2º, que cria a obrigação da designação de diretores responsáveis, entre outros assuntos, por integridade e compliance e pelo relacionamento com o Ministério da Fazenda. Isso certamente acrescentará linhas de despesas ao balanço das Bets, com o novo custo de observância, mas em contrapartida trará maior segurança a um mercado bastante promissor, cujos valores envolvidos devem proporcionar crescimento econômico com a criação de empregos e com a ampliação da arrecadação para investimento em áreas necessitadas.  

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1 Decreto-lei 9.215/1946, que proibiu a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional.

2 O "Jogo do Bicho" é uma contravenção penal, tipificada no artigo 58 do Decreto-lei 3.688/1941, para a qual a pena para a exploração ou realização é de prisão simples, de quatro meses a um ano.

3 De acordo com o texto legal, aposta é o ato pelo qual se coloca determinado valor em risco na expectativa de obtenção de um prêmio, e a modalidade de quota fixa é aquela na qual o fator de multiplicação do valor apostado define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada (artigo 2º, II e III da Lei 14.790/2023).

4 Portaria SPA/MF 827, de 22 de maio de 2024.

5 Entidade criada por meio do Decreto 11.907, de 31 de janeiro de 2024, com a atribuição de regular o setor de apostas no Brasil.

6 Esse foi o nome atribuído pelo legislador às Bets, conforme definição contida no artigo 2º, X da Lei 14.970/2023.

7 Portaria Normativa SPA/MF 615, de 16 de abril de 2024.

8 Essa obrigação é compartilhada entre operadores de apostas e instituições financeiras e de pagamento, conforme artigo 24 da lei.

9 A comunicação de operações suspeitas ao Coaf é uma exigência da nova lei, trazida no artigo 25, II, enquanto o bloqueio de um apostador considerado patológico não é obrigatório, mas altamente recomendável do ponto de vista ético por parte do operador de apostas, sendo interessante constar, inclusive, do Código de Conduta da instituição.

10 Condição médica caracterizada pela compulsão de uma pessoa por jogos de azar, registrada sob os CIDs 10.Z72.6 (mania de jogo e apostas) e 10-F63.0 (jogo patológico).

11 O tema "prevenção à fraude" não foi esquecido pelo legislador, que o abordou mais diretamente no artigo 23, obrigando os operadores de aposta a utilizar de tecnologia de reconhecimento facial no onboarding dos apostadores, como forma de prover maior segurança ao setor contra possíveis fraudes de identidade. Mas, como destacamos, essa é uma preocupação inerente ao negócio e, ainda que não fosse contemplada pela lei, certamente estaria na agenda das Bets, pelo impacto financeiro que as fraudes podem causar.

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GABRIEL, João; SALDAÑA, Paulo. Apostas esportivas atraem jovens e chegam a 15% da população, que diz gastar R$263 por mês, mostra Datafolha. Folha. Brasília, 13 jan. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2024/01/apostas-atraemjovens-e-chegam-a-15-da-populacao-que-diz-gastar-r-263-por-mes-mostradatafolha.shtml?origin=folha. Acesso em mar. 2024.

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Thiago Genda

Thiago Genda

Advogado no Machado & Sartori de Castro Advogados.

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