MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. 100 anos depois, ainda ele, Kafka

100 anos depois, ainda ele, Kafka

Em 3/6, completam-se cem anos da morte de Franz Kafka. Sua obra, especialmente relevante ao direito, ainda é presente. Kafka, formado em direito e trabalhando em seguros, retratou a burocracia e os sistemas inquisitórios.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Atualizado em 3 de junho de 2024 14:24

Agora, 3/6, completam cem anos da morte do escritor Franz Kafka. A distância de um século que nos separa de sua partida tão precoce parece não ter diluído sua presença em nosso cotidiano, ainda mais no meio jurídico, onde, dia sim e outro também, vemos o emprego da expressão kafkiana, a retratar os embustes e nós da burocracia estatal.

A caricatura, muitas vezes assustadoramente próxima do real, com que retratou os labirintos processuais e as contradições de sistemas inquisitórios não surge sem motivo. Kafka se formou em direito, em 1906, e foi trabalhar na área de seguros, primeiro numa companhia privada italiana e, depois, numa repartição oficial, no Departamento de Seguros de Acidentes dos Trabalhadores, em Praga. Foi conciliando trabalho e vocação literária, realidade e fantasia, que o escritor pôde nos deixar uma obra tão rica em reflexões, especialmente ao direito.

Deixou, aliás, a contragosto. Afinal, várias de suas obras, como 'O Processo', 'O Castelo' e parte de seus contos foram publicados postumamente por seu testamenteiro e amigo, Max Brod, contrariando recomendação expressa do próprio Kafka que havia disposto que todos seus escritos deveriam ser destruídos. A traição do testamenteiro ao desatender a melancolia do testador, que delegou o suicídio literário, merece pleno perdão, pois, como defende Ênio Silveira, é como se alguém chamasse uma pessoa de sua mais total confiança e lhe dissesse: "Meu caro, pensei bem e quero acabar com minha vida. Apanhe o revólver que está na primeira gaveta da cômoda e me dê um tiro no coração" (SILVEIRA, 1993).

Seja como for, sua obra sobreviveu metamorfoseada em jargão jurídico. Entre presunções absolutas de culpabilidade, advogados equinos (dr. Bucéfalo), tribunais inalcançáveis e colônias penais implacáveis, fica a (sempre presente) lição sobre como que o sistema jurídico edifica seus próprios absurdos processuais. Invariavelmente, a incompreensão do processo se dá por uma Justiça fugidiça, em que a lei é um segredo dos juízes (POSNER, 2009), protegido por camadas de personagens, estruturalmente separados uns dos outros, cujo dever de ofício é apenas cumprir ordens expedidas sempre por outro alguém, desconhecido e, por sua vez, ainda mais distante. Nisso, pelos ritos e organogramas, perde-se o principal: a delimitação objetiva do que se está a julgar; a fundamentação clara e precisa, pela qual se defere ou indefere os pedidos que batem às portas dos tribunais.

Como narra Kafka, diante da lei está um guarda e, quando o homem do campo lhe pergunta se pode autorizar a entrada, tem sempre como resposta: é possível, mas agora não (KAFKA, 1925).

Um viva à memória do cavaleiro do balde, seus escritos e ao seu infiel testamenteiro.

------------------------

POSNER, Richard A. Law & literature. Cambridge. Editora Havard University Press, 2009. P. 245.

KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo. Editora Circulo do Livro S.A., 1925. P. 121.

SILVEIRA, Ênio. Kafka, singular e plural. In. KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos. Editora Civilização Brasileira, 1993. P. 15.

Leandro Dias Porto

Leandro Dias Porto

Sócio do escritório Sergio Bermudes Advogados. Professor do IDP.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca