Tragédia climática
O Rio Grande do Sul enfrenta sua maior tragédia climática, comparável a Mariana e Brumadinho. É crucial ajudar as vítimas e promover educação para aumentar a consciência sobre hábitos sustentáveis.
quarta-feira, 29 de maio de 2024
Atualizado às 17:43
1. Desastres - Causas e consequências
Os fatos recentemente ocorridos no Rio Grande do Sul e que levaram o estado a um nível de destruição sem precedentes, coloca para todos os juristas brasileiros em suas diferentes áreas de atuação, a relevância dos estudos e pesquisas sobre o chamado Direito dos Desastres.
Em obra publicada em 2013, Délton Winter de Carvalho e Fernanda Dalla Libera Damacena, dois dos maiores especialistas sobre o assunto no Brasil, destacam que sempre dominou na sociedade uma concepção de que as catástrofes eram decorrência de eventos da natureza que por sua vez, geravam danos aos seres humanos e às propriedades.
Destacam os autores, no entanto, que (...) a evolução tecnológica e científica da sociedade contemporânea, ocorrida, principalmente, após a industrialização, desencadeia a ampliação da capacidade de intervenção do homem sobre a natureza, havendo, em quase todos os desastres denominados naturais, algum fator antropogênico.1
E acrescentam que o impacto aos seres humanos e propriedades é tradicionalmente, utilizado como referencial para quantificação da amplitude do desastre, enquanto o comprometimento dos recursos naturais é ocultado ou, nem sempre computado como fator relevante. Para os autores, embora seja difícil configurar um conceito determinado para desastres a partir de suas consequências, é possível consolidar uma acepção técnico-jurídica do termo que permita avaliar em dimensão coletiva como eventos que atuam no plano da sociedade (social disasters), geralmente entendidos como eventos de grandes perdas para um número substancial de pessoas e bens.2
Entre os fatores apontados como de ampliação de riscos e dos custos dos desastres na sociedade contemporânea, os autores mencionam as atuais condições econômicas contemporâneas e destacam que o modelo just in time, ou seja, a produção econômica por demanda que eliminou a necessidade de estoques seja um fator relevante.3
De fato, o sistema just in time implementado pela Toyota e que se espalhou por diferentes setores da produção econômica ganha em custos de transação por evitar estoques, porém, em um momento de interrupção da produção em decorrência de desastres, a falta de estoque pode aprofundar o problema, aumentar a escassez de produtos essenciais para o enfrentamento da crise e, até mesmo, ampliar o número de perdas humanas se não estiverem disponíveis medicamentos ou aparelhos essenciais, como os respiradores, por exemplo, durante o período da pandemia da Sars-Covid 19.
Assim, um desastre é um evento de grandes perdas para um número igualmente significativo de pessoas e bens e permite incluir perdas intangíveis, como os danos à saúde mental que atingem as pessoas em todas as faixas etárias, níveis socioeconômicos e, independente do gênero, cultura ou qualquer outro fator.
Uma situação de desastre impõe ao poder público e a todos os setores privados que se organizem para recuperar com rapidez e eficiência, os estragos materiais em moradias, equipamentos de prestação de serviços públicos como hospitais, creches, escolas, presídios, parques, sistema de abastecimento e esgoto, entre tantos outros; mas, também para que se organizem para reconstruir o equilíbrio físico e psíquico das pessoas mais diretamente afetadas pelos impactos do desastre, para que possam retomar seus projetos existenciais em condições apropriadas para realiza-los efetivamente.
2. Sociedade do hiperconsumo e do desperdício
O Instituto Alana que há 27 anos trabalha como organização não-governamental na proteção de crianças e adolescentes e, em especial, para difundir o consumo racional e adequado, define hiperconsumo como
Hiperconsumo é um termo que define o ato de consumir de forma exagerada e compulsiva, buscando a felicidade por meio da compra de objetos e contratação de serviços. Dentre os impactos dessa ação e de estarmos vivendo em uma sociedade do hiperconsumo, podemos citar implicações para a sustentabilidade, a degradação ambiental e a perda de qualidade de vida.
E se, para os adultos, consumir desenfreadamente e ser bombardeados por publicidades e estímulos consumistas, já gera danos, para as crianças, que são pessoas em desenvolvimento e hipervulneráveis, essa ideologia que aponta que a felicidade e a realização só podem ser alcançadas por meio da compra é ainda mais prejudicial.4
O consumo sempre existiu em diferentes sociedades e estimulou a produção tecnológica, a ciência, o bem-estar de indivíduos e famílias, a melhoria da qualidade de vida e os empreendimentos econômicos que geraram emprego, renda e recolhimento de tributos aos cofres públicos indispensáveis para o custeio de políticas públicas. O hiperconsumo, no entanto, é um fenômeno mais recente que, provavelmente, tenha tido sua origem e desenvolvimento a partir da segunda metade do século XX, caracterizado, principalmente, pela facilidade de acesso a produtos e serviços e, ao desprestígio da necessidade como fator preponderante para a tomada de decisão.
Realizando o 'milagre de consumo', a fase II dá origem a um poder de compra discricionário em camadas sociais cada vez mais alargadas, que podem aspirar, confiantes, ao melhoramento constante dos seus recursos; difundiu o crédito e permitiu à maioria das pessoas libertarem-se da urgência das necessidades imediatas. Pela primeira vez, as massas acendem a uma procura material mais psicologizada e mais individualizada, a um modo de vida (bens duradouros, atividades de lazer, férias, moda) até então exclusivo das elites sociais. (LIPOVETSKY, 2007, p.29).
- Confira aqui a íntegra do artigo.
1 CARVALHO, Délton Winter. DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos Desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 25.
2 Obra citada, p. 28.
3 Obra citada, p. 48.
4 Instituto Alana. Hiperconsumo. Disponível em: https://alana.org.br/glossario/hiperconsumo/. Acesso em 05 de maio de 2024.
Vera Valente
Advogada e engenheira. Diretora Executiva da FenaSaúde desde 2019. Ingressou no mercado de Saúde no fim da década de 1990, quando foi convidada a assumir um cargo no Ministério da Saúde, onde esteve à frente do projeto de lançamento do cartão SUS. Em seguida, no início dos anos 2000, liderou a implementação da política de medicamentos genéricos no Brasil, na posição de Gerente Geral de Medicamentos Genéricos da ANVISA.
Angélica Carlini
Advogada e consultora jurídica da FenaSaúde.