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Entre o dever e o crime: Desvendando a apropriação indébita tributária em todas as suas faces

A efetividade do combate à sonegação fiscal depende não apenas da legislação e da jurisprudência, mas também da capacidade administrativa dos órgãos fiscais em detectar e processar infrações. A adoção de tecnologias avançadas e a melhoria dos processos de fiscalização são medidas importantes para aumentar a eficiência na identificação de condutas ilícitas.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Atualizado às 09:11

No cenário atual do direito tributário brasileiro, a apropriação indébita tributária emerge como um tema de relevância incontestável, marcando a interseção delicada entre a gestão fiscal responsável e as práticas que tangenciam o campo do ilícito penal. Este fenômeno, delineado pela lei 8.137/90, configura-se quando o agente, na posição de sujeito passivo da obrigação tributária, retém valores de tributos ou contribuições sociais que deveriam ser recolhidos aos cofres públicos e, por ação ou omissão, deixa de fazê-lo dentro do prazo legal. Esse ato, por sua natureza, não apenas subverte a ordem fiscal estabelecida, mas também levanta questionamentos profundos sobre a justiça e equidade do sistema tributário como um todo.

A pertinência do tema transcende a esfera jurídica, projetando-se sobre o tecido econômico e social do país. A conduta delineada pela súmula 658 do STJ, afirmando a possibilidade de ocorrência do crime tanto em operações próprias quanto em contextos de substituição tributária, reflete uma complexidade que desafia não apenas os operadores do direito, mas também gestores e empresários, os quais se veem diante de um cenário de incerteza e potencial vulnerabilidade penal.

A atualidade do debate sobre a apropriação indébita tributária é reforçada pelo contexto econômico brasileiro, onde a carga tributária significativa e a complexidade do sistema de impostos frequentemente conduzem a disputas sobre a interpretação e aplicação da lei. A distinção entre mero inadimplemento fiscal e conduta dolosamente criminosa torna-se um ponto de inflexão crucial, exigindo dos tribunais uma análise cuidadosa das intenções e circunstâncias que circundam cada caso.

A questão central que emerge diz respeito ao equilíbrio entre, de um lado, o dever do Estado de arrecadar tributos, fundamentais para a manutenção e desenvolvimento das políticas públicas, e, de outro, o direito dos contribuintes à segurança jurídica e ao justo processo legal. Nesse sentido, a criminalização da inadimplência fiscal, especialmente em um contexto econômico volátil, pode acarretar severas consequências não apenas para a saúde financeira das empresas, mas também para a economia como um todo, afetando a geração de empregos, o investimento e o crescimento econômico.

Ademais, a atualidade do tema é marcada pela necessidade de uma reflexão sobre os princípios que devem nortear o Direito Penal Tributário, particularmente os de legalidade, tipicidade e proporcionalidade. A interpretação extensiva da norma penal, como alertam alguns críticos, poderia levar a uma criminalização excessiva de condutas que, embora reprováveis do ponto de vista fiscal, não necessariamente configuram uma fraude ou um dolo específico de prejudicar os cofres públicos.

Fundamentação legal da apropriação indébita tributária

A lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, estabelece em seu art. 2º, inciso II, a figura do crime de apropriação indébita tributária. Este dispositivo legal é fundamental para compreender a natureza jurídica da conduta de deixar de recolher, no prazo legal, valores de tributos ou contribuições sociais que foram descontados ou cobrados na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveriam ser repassados aos cofres públicos. A pena prevista é de reclusão de 2 a 5 anos, além de multa.

A relevância deste dispositivo legal reside na sua capacidade de diferenciar entre a mera inadimplência fiscal e a conduta dolosa de apropriação de valores tributários que, por lei, deveriam ser repassados ao Estado. A distinção é crucial, pois enquanto a inadimplência pode decorrer de diversos fatores, inclusive de dificuldades financeiras, a apropriação indébita pressupõe uma ação intencional do agente de não repassar ao Fisco o que de direito lhe pertence, configurando assim um ilícito penal.

A análise deste artigo demanda uma compreensão aprofundada sobre o conceito de "sujeito passivo" na obrigação tributária, conforme delineado no CTN - Código Tributário Nacional. O sujeito passivo pode ser o contribuinte, isto é, aquele que tem relação direta e pessoal com o fato gerador da obrigação tributária, ou o responsável, que, sem ser contribuinte, possui obrigação atribuída pela lei de arcar com o tributo devido.

Importa destacar que o crime de apropriação indébita tributária não se confunde com a simples inadimplência tributária. A legislação penal tributária brasileira, ao tipificar a conduta de apropriação indébita, busca sancionar a ação deliberada de reter valores de tributos descontados ou cobrados de terceiros e não repassá-los aos cofres públicos, evidenciando assim o dolo específico, elemento subjetivo indispensável à configuração do delito.

Diferenciação entre apropriação indébita tributária e previdenciária

Enquanto a apropriação indébita tributária é regida pela lei 8.137/90, a apropriação indébita previdenciária encontra seu fundamento no Código Penal, especificamente no art. 168-A.

O cerne da apropriação indébita tributária reside na retenção dolosa de tributos ou contribuições sociais que, por lei, deveriam ser recolhidos aos cofres públicos. Esta retenção não se limita a uma mera falha no pagamento; ela implica uma conduta intencional de desviar recursos que legalmente não pertencem ao agente retentor. O art. 2º, II, da lei 8.137/90 explicita essa conduta ao criminalizar o ato de deixar de recolher, no prazo legal, valores tributários descontados ou cobrados, sob a qualificação de sujeito passivo da obrigação.

Por outro lado, a apropriação indébita previdenciária, conforme delineada no art. 168-A do Código Penal, foca especificamente no não repasse de contribuições previdenciárias recolhidas dos contribuintes, sejam eles empregados, trabalhadores avulsos ou autônomos, que deveriam ser destinadas à Previdência Social. Tal conduta, embora semelhante em sua essência à apropriação indébita tributária, distingue-se pelo objeto específico da obrigação: as contribuições previdenciárias.

Um aspecto relevante nesta diferenciação é a exigência do dolo específico para a configuração do crime de apropriação indébita tributária, caracterizado pela intenção clara de apropriar-se dos valores devidos ao Fisco. Este elemento subjetivo é crucial para a tipificação do delito, conforme jurisprudências do STF e do STJ têm reiteradamente apontado. A exigência de dolo específico sublinha a necessidade de uma conduta intencionalmente fraudulenta, diferenciando-se, assim, do mero inadimplemento fiscal.

Em contraste, a apropriação indébita previdenciária não demanda a comprovação de dolo específico para sua configuração, bastando o dolo genérico, ou seja, a mera consciência e vontade de não repassar as contribuições recolhidas, independentemente de uma finalidade específica de apropriação.

Esta distinção legal e jurisprudencial entre os dois tipos de apropriação indébita é fundamental para a correta aplicação das normas penais tributárias e previdenciárias, refletindo a intenção do legislador de tratar diferentemente condutas que, embora similares em sua natureza de retenção indevida de valores, incidem sobre obrigações fiscais distintas. A compreensão clara dessas diferenças é essencial para advogados, contadores, gestores e demais profissionais que atuam na área tributária, garantindo a adequada orientação e defesa em casos que envolvem tais infrações.

Gilmara Nagurnhak

VIP Gilmara Nagurnhak

Pós Graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil Pós Graduanda em Direito Tributário Uma advogada apaixonada pelo mundo empresarial!

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