A apuração de haveres no anteprojeto de reforma do CC
O anteprojeto de reforma do código civil, que está no Senado, no ponto relativo à apuração de haveres, não diminuirá a intervenção judicial nos contratos sociais, à vista da ausência de critérios mais específicos no texto proposto.
quarta-feira, 22 de maio de 2024
Atualizado às 14:09
Tramita no Congresso Nacional o anteprojeto de reforma do CC. Dentre as matérias que estão sendo abordadas pela referida comissão, está o Direito da Empresa, que é tratado nos arts. 966 a 1.195, no Livro II, do CC. Um dos artigos que é objeto de alteração é o art. 1.031, do Código Civil, que tem a seguinte redação:
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.
§ 1º O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota.
§ 2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.
Segundo um dos membros da comissão explicou em palestra no Instituto dos Advogados de São Paulo,1 o objetivo da proposta ao alterar o art. 1.031, do CC, é o de dar melhor regulação na apuração dos haveres, diminuindo a litigiosidade.
O debate a respeito da forma de apuração dos haveres sociais é tormentoso. Como sinala Alexandre Barufaldi (2023, p. 38-39)2, os Tribunais superiores começaram a debater o tema em 1953, quando o ministro Nelson Hungria relatou o recurso extraordinário n. 18.381. E a questão segue sendo trazida ao conhecimento judicial, porque há o debate sobre a força vinculativa do contrato social, nos casos em que as disposições estabelecidas são contrárias ao direito ou configuram enriquecimento sem causa à sociedade ou aos sócios remanescentes. Por duas decisões recentes do STJ, verifica-se que a questão relativa à forma de se apurar os haveres não tem uma estabilidade jurisprudencial. No REsp 1.335.619/SP, de relatoria da min. Nancy Andrighi, em que se debatia a liquidação de cotas sociais e pagamentos de haveres de sócios, o Tribunal assentou que o melhor método para se apurar o valor a pagar pela sociedade aos sócios retirantes era o fluxo de caixa descontado3.
Em 13/4/21, o STJ, ao julgar o REsp 1.877.331/SP, afastou o método de apuração denominado de fluxo de caixa descontado, apesar de reafirmar a necessidade de um balanço de determinação, indicando que o critério legal, apontava para o balanço patrimonial4.
No ano de 1964, o STF - que à época julgava matéria infraconstitucional - editou a súmula 265 que prevê: "Na apuração de haveres não prevalece o balanço não aprovado pelo sócio falecido, excluído ou que se retirou."5 De outro lado, na ementa citada do REsp 1.335.619/SP: "Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previso no contrato social para apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado."
Deriva da interpretação jurisprudencial sintetizada no parágrafo acima que, a despeito de haver previsão contratual sobre a forma de apuração e pagamento dos haveres sociais, em caso de dissolução parcial ou total, que, em relação ao sócio falecido, excluído ou que se retirou, o balanço aprovado pelos demais - sócios remanescentes - não prevalece; e, nas outras hipóteses, inexistindo consenso, a apuração realizada não vincula os sócios.
Justamente, por isso, inúmeras ações tramitam a fim de que o judiciário estabeleça a forma de se apurar os haveres. Ainda que haja consenso de que deve ser apurado esses por balanço de determinação, no que consiste este? No julgamento do REsp 1.335.619/2019, a Ministra Relatora atrelou o balanço de determinação à apuração dos haveres pelo método do fluxo de caixa descontado; enquanto no REsp 1.877.331/SP, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, afastou o referido método, determinando que a apuração dos valores utilizasse o critério legal (patrimonial), porque basicamente afasta o direito do sócio retirante/excluído sobre o aviamento/goodwill.
Diante da celeuma, a comissão de juristas que trabalha na reforma do código civil, previu no anteprojeto a alteração do art. 1.031, do CC6, que passará, se aprovado, a ter a seguinte redação:
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á conforme determinado no contrato social.
§ 1º. Os haveres serão calculados, em regra, de acordo com os critérios fixados no contrato social;
§ 2º. Em caso de omissão do contrato social, o juiz ou árbitro observarão, como critério de apuração de haveres, o valor apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se, a preço de saída, os bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, inclusive os gerados internamente, além do passivo, a ser apurado de igual forma.
§3º. O critério de determinação do valor das quotas para fins de apuração de haveres estabelecidos no contrato social será observado, mesmo que resulte em valor inferior ao apurado em qualquer outro método de avaliação.
§ 4 º. A data da resolução da sociedade será:
- no caso de falecimento do sócio, a do óbito;
- no caso de divórcio ou de dissolução de união estável, a data da separação de fato;
- na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante;
- o caso de recesso, o dia do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio dissidente;
- na retirada por justa causa de sociedade por tempo determinado e na exclusão judicial de sócio, a do trânsito em julgado da decisão que dissolver a sociedade; e VI - na exclusão extrajudicial, a data da assembleia ou da reunião de sócios que a tiver deliberado.
§ 5º. O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota.
§ 6º A quota liquidada será paga em conformidade com o disposto no contrato social e, sendo ele omisso, o pagamento será feito em dinheiro, no prazo de noventa dias contados a partir da liquidação.
À vista da proposta legislativa, indaga-se: o texto enfrenta algumas disposições firmadas na jurisprudência, como no caso de morte, o balanço aprovado pelos sócios remanescentes não prevalecer aos sucessores do de cujus; e a questão de não existindo consenso no resultado apurado, este não vincular o sócio excluído ou que se retirou?
Parece que a ideia de obrigar os sócios a respeitar o resultado apurado no balanço de determinação, para fins de reduzir a atuação do juiz, está previsto na proposta de inserção parágrafo terceiro do art. 1.031 do CC: O critério de determinação do valor das quotas para fins de apuração de haveres estabelecidos no contrato social será observado, mesmo que resulte em valor inferior ao apurado em qualquer outro método de avaliação. Mas essa previsão não validaria o enriquecimento sem causa da sociedade ou dos sócios remanescentes, nos casos de dissolução da empresa?
Da redação proposta ao art. 1.031 do CC, extrai-se: se a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor de sua quota será liquidado conforme o contrato social; a redação atual, por sua vez, estabelece que a cota se liquidará, salvo disposição contratual em contrário, com base em balanço especial a ser levantado.
Mais adiante, a redação proposta estabelece no novo parágrafo primeiro que: Os haveres serão calculados, em regra, de acordo com os critérios fixados no contrato social; e no novo parágrafo terceiro que: O critério de determinação do valor das quotas para fins de apuração de haveres estabelecidos no contrato social será observado, mesmo que resulte em valor inferior ao apurado em qualquer outro método de avaliação.
Abstrai-se dos parágrafos destacados que, como forma de garantir a regra do inc. VIII[7] do art. 3º da lei 13.874/19 citada acima, especialmente, a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação, a proposta legislativa afirma e reafirma que o critério estabelecido no contrato social prevalecerá sobre qualquer outro método avaliativo. Para reforçar a proposta legislativa e amparar a solução apresentada, faz-se necessário trazer as regras do CC, alteradas pela lei 13.874/19:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Veja-se, pois, que a interpretação conjunta dos dispositivos mencionados deixa clara a opção legislativa de que, por haver paridade e simetria na contratação, os critérios do contrato social prevalecerão, ainda que, na apuração da quota o resultado reste inferior a qualquer outro método apurado. Evidente que a regra do inc. VIII do art. 3º da lei 13.874/19 deixa claro que as regras de direito empresarial se aplicam de forma subsidiária, devendo ser respeitadas as normas de ordem pública. Mas justamente, partindo-se desse ponto, é que se conclui que a intenção legislativa pode não diminuir o campo de atuação jurisdicional.
Isso porque a proposta legislativa não resolve a situação de quando se apurar os haveres do sócio falecido, já que o STF, há muito tempo, estabeleceu que: "Na apuração de haveres não prevalece o balanço não aprovado pelo sócio falecido, excluído ou que se retirou."
Poderia ser afirmado que, ao propor-se a regra do parágrafo terceiro ao art. 1.031 do CC, qual seja: O critério de determinação do valor das quotas para fins de apuração de haveres estabelecidos no contrato social será observado, mesmo que resulte em valor inferior ao apurado em qualquer outro método de avaliação.; resolver-se-ia a questão relativa à ausência de consenso quanto ao resultado do balanço realizado. Entretanto, parece que a regra proposta legitima o enriquecimento da sociedade ou dos sócios remanescentes.
Se se analisar a situação pela ótica do sócio minoritário a regra contratual que estabelece a forma de apuração dos haveres pode ser tão desvantajosa para ele que, o resultado do balanço a ser executado segundo o critério contratual, pode significar uma verdadeira expropriação de valores, o que violaria, por exemplo, seu direito constitucional à propriedade. Ao que tudo indica, diante da fragilidade das redações da maioria dos contratos sociais, apesar de ser possível festejar a ideia de o legislador criar um cenário mais claro para a intervenção judicial nas relações empresariais, a solução a ser aplicada será a proposta como a do parágrafo segundo do art. 1.031 do CC, que prevê a atuação do juiz ou do árbitro. Do exposto, conclui-se que, a despeito de se visar a garantir o pleno exercício da liberdade econômica de contratar e se estabelecer critérios que limitem a intervenção estatal, em decorrência das relações empresariais serem interpretadas de forma simétrica e paritária, a ausência de critérios mais específicos no texto proposto, manterá aberto o acesso à intervenção jurisdicional ou do árbitro.
1 Direito Empresarial na Reforma do Código Civil - Perspectivas e debates. Disponível em:
2 BARUFALDI, Alexandre. Apuração de Haveres dos Sócios - diretrizes jurídicas. 2ª tir. - Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2023. 231 p.
3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.335.619/SP. Recorrente: SEMP TOSCHIBA MÁQUINAS E SERVIÇOS S/C LTDA. e SEMP TOSCHIBA INFORMÁTICA LTDA. Recorridos: Marcos Antônio Di Lascio e MDL - Negócios e Participações S/C Ltda. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27RESP%27.clas.+e+@num=%271335619
%27)+ou+(%27REsp%27+adj+%271335619%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja. Acesso em 20 de janeiro de 2024.
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.877.331/SP. Recorrentes: Antônio Carlos Maria Gutierres e Patrícia Maia Gutierres. Recorridos: Almaglan Comercial e Construtora Ltda.: Alvaro de Magalhões Ruiz, Glenister Hilpert e Marco Antônio Afonso da Mota, Pinturas Ypiranga Ltda. Relator: p/Acórdão: Ricardo Villas Bôas Cueva. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27RESP%27.clas.+e+@num=%27187733 1%27)+ou+(%27REsp%27+adj+%271877331%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja. Acesso em 20 de janeiro de 2024.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 265. Brasília: Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=sumulas&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural =true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=haveres&sort=_score&sortBy=de sc. Acesso em: 20 de março de 2024.
6 BRASIL. SENADO FEDERAL. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório Geral. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2630&tp=4. Acesso em 20 de março de 2024.
7 Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: [.] VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública.