Parâmetro para multa em APACS: Consumação de operações de notificação obrigatória sem a análise prévia do CADE e a busca constante de proporcionalidade
O Tribunal do CADE adotou um novo entendimento sobre sanções por "gun jumping", a consumação de operações sem análise prévia. Este artigo discute a evolução das decisões do CADE e as possíveis repercussões futuras.
quarta-feira, 22 de maio de 2024
Atualizado às 07:38
O Tribunal Administrativo do CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica firmou recentemente novo entendimento1 sobre a sanção pecuniária por "gun jumping", ou seja, em casos de consumação de operações de notificação obrigatória sem a análise prévia do CADE. Neste artigo pretende-se tratar brevemente da evolução das decisões do CADE em julgamentos de procedimentos administrativos para APACs - apuração de ato de concentração2, detalhar a decisão proferida recentemente que firmou o novo entendimento, bem como tentar identificar possíveis repercussões do novo entendimento para casos futuros.
Nos termos da lei de defesa da concorrência (lei 12.529/11), determinadas operações de concentração econômica só podem ser implementadas após a autorização do Cade, pois são de notificação obrigatória3. Até a decisão final do CADE sobre a operação, deverão ser preservadas as condições de concorrência entre as empresas envolvidas.4 Trata-se, assim, do controle "prévio", na medida em que impede que operações que possam, em tese, prejudicar a livre concorrência, comecem a ter efeitos antes que a autoridade antitruste finalize a sua análise. Se houver a consumação da operação que deveria ter sido notificada ao CADE, sem a aprovação prévia da autarquia, as partes terão incorrido na prática de "gun jumping" e poderão ser multadas em até R$ 60 milhões, nos termos da lei de defesa da concorrência. Os APACs são relevantes, portanto, porque sinalizam que o CADE está atento às operações das empresas e poderá impor sanções caso entenda que houve consumação com inobservância da obrigação de notificar.
Nos últimos anos, o Tribunal do CADE analisou um acervo de APACs consideravelmente superior ao que examinou nos anos anteriores. Entre 2022 e maio de 2024 (aproximadamente dois anos e meio), foram analisadas 20 novas APACs (50% do total dessa linha histórica), mesmo número entre 2016 e 2021 (nos seis anos completos). Confira-se, na tabela abaixo, o número de APACs julgados pelo Tribunal do CADE nos últimos anos: 5 casos em 2016; 1 caso em 2017; 4 casos em 2018; 5 casos em 2019; 3 casos em 2020; 2 casos em 2021; 6 casos em 2022; 8 casos em 2023; 6 casos até maio/2024:
Percebe-se, assim, que o Tribunal do CADE proferiu várias decisões nos últimos anos relativas aos valores que as empresas têm que pagar (como multa ou contribuição, no caso de acordo com a autarquia), pela consumação de operações sem a aprovação prévia.
Daí porque destacamos a recente decisão proferida nos autos do APAC 08700.005463/2019-09, de relatoria do conselheiro Gustavo Augusto. Trata-se de APAC instaurado com o objetivo de apurar operação alegadamente consumada antes da notificação e apreciação pelo CADE. Neste caso, a Superintendência Geral (SG/CADE) entendeu que se tratava de AC - Ato de Concentração de notificação obrigatória, entendimento este referendado pelo Tribunal. Nessa linha, foi determinada a notificação da operação, a qual foi realizada por meio do AC 08700.007195/2023-38. No mérito, a operação foi aprovada sem restrições pela SG/CADE em outubro/23, diante da ausência de preocupações concorrenciais5. Após a notificação e análise do mérito do AC, a SG/Cade remeteu a APAC para julgamento em 17.4.24, quando o conselheiro relator proferiu seu voto reconhecendo a configuração de "gun jumping", com aplicação de multa no valor de R$ 4.006.273,52.
Entretanto, na ocasião, o conselheiro José Levi, mesmo concordando com a tese trazida pelo conselheiro Gustavo, pediu vista para analisar com maior profundidade a dosimetria aplicada no caso. Isso porque a sanção na APAC teria gerado multa superior a 30% do valor da operação consumada pelas partes sem a aprovação prévia, e buscava-se investigar os parâmetros que deveriam ser utilizados pelo Cade diante dos requisitos de razoabilidade e proporcionalidade impostos pelo art. 22 da Resolução 24/19, que disciplina o procedimento de APACs.
Dessa forma, em 8.5.24, os conselheiros Levi e Diogo Thomson apresentaram voto-conjunto - uma novidade na prática do Tribunal do CADE, inspirada na iniciativa dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso utilizada na ADI 7.222 julgada pelo STF - com propostas de baliza interpretativa da Resolução 24/19. Tal proposta consistiu na aplicação, em regra, de teto de 20% do valor da operação na aplicação de multas em APAC, em linha com os precedentes em sede de acordos em APAC. Assim, seria dada um novo entendimento ao art. 22 da Resolução 24/196 a partir de uma medida de proporcionalidade, como elencado pelo conselheiro Levi. Nessa linha, foi pontuado que haveria critérios objetivos para "calibrar" os parâmetros utilizados para o estabelecimento de multas previstos no art. 21 da Resolução 24/19.
Tal proposta considerou os limites fixados pelo art. 88, §3º, da lei 12.529/11, de que as multas decorrentes de "gun jumping" devem respeitar o limite de 20% do valor da operação - atualizado pela SELIC entre o momento de consumação da operação e a instauração da APAC -, bem como analogia ao art. 37, I da lei 12.529/11, que estabelece valor máximo de 20% do faturamento bruto em casos de infração à ordem econômica.
Tal exercício analógico se daria, segundo o conselheiro, pelo fato de que se eventual não submissão ao CADE de operação de notificação obrigatória pode gerar dano à concorrência, mesmo que este não seja alcançado, o "gun jumping" seria, em tese, uma infração antitruste inserida no escopo amplo do art. 36 da lei 12.529/11. Assim, segundo Levi, se mesmo a infração mais gravosa dentre os ilícitos antitruste, a de cartel, que constitui infração per se, além de crime, possui esse limitador, também a infração de "gun jumping" deve admiti-lo. Nesse sentido, segundo o voto-conjunto condutor, haverá casos em que o Tribunal do CADE, por uma questão de proporcionalidade e coerência, poderá afastar os critérios do art. 21, no sentido de limitá-los a um valor fixo de teto, mesmo quando, por eles mesmos, justificassem uma multa superior.
O conselheiro Victor Fernandes reiterou a relevância do juízo de proporcionalidade para se equilibrar a dosimetria não apenas em relação ao valor da operação, como também em relação à gravidade da conduta a ser analisada. Nesse sentido, para o conselheiro, deve ser parâmetro de ponderação os impactos concorrenciais gerados pelas operações.7 O Conselheiro Levi ressalvou, porém, que tal dispositivo não se aplicaria se for verificada conduta dolosa das partes em não submeter ao CADE ato de concentração de notificação obrigatória. O conselheiro Gustavo reiterou tal ressalva levantada por Levi, adicionando mais duas questões que ensejariam a não aplicação do parâmetro máximo da multa: (i) casos em que se verifique valor simbólico da operação (irrisório), a exemplo da utilização do valor mínimo legal, caso em que o valor da multa seria inferior ao valor da própria taxa de notificação do AC; e (ii) casos em que há prejuízo ou dano decorridos da operação.
Considerando que nenhuma das três hipóteses que levariam ao afastamento do limite máximo de multa de 20% de APAC foram verificadas no caso concreto tratado, o Tribunal do CADE, por unanimidade, homologou as propostas de acordos em APAC das duas empresas. Essa limitação, porém, não estaria restrita a acordos, como já realizado em casos anteriores8. Ou seja, a limitação de 20% poderia ser aplicada, a depender da análise da proporcionalidade no caso concreto, não só em sede de acordos em APAC, mas também de forma mais ampla, no que tange à imposição de multas em APAC sem a celebração de acordo para seu encerramento, como dispõe o art. 23 da Resolução 24/19.
Trata-se, assim, de iniciativa de fomento à transparência e à segurança jurídica dos administrados, aliando as lentes do controle de estruturas ao controle de condutas no direito antitruste.
Anexo I
Fonte: elaboração própria dos autores, a partir de dados do setor processual do CADE.
1 Sessão Ordinária de Julgamento ("SOJ") de 8.5.2024.
2 APAC é a sigla t utilizada pelo Cade para se referir a investigações relacionadas à existência ou não da prática de Gun Jumping. Nos termos do art. 1º da Resolução n. 24, de 8 de julho de 2019: "Art. 1º O procedimento administrativo para apuração de ato de concentração (APAC) terá como objeto: I - atos de concentração notificados e consumados antes de apreciados pelo Cade, nos termos do § 3º do art. 88 da Lei nº 12.529/2011; II - atos de concentração não notificados e consumados antes de apreciados pelo Cade, nos termos do § 3º do art. 88 da Lei nº 12.529/2011; III - atos de concentração não notificados, mas cuja submissão pode ser requerida pelo Cade, nos termos do § 7º do art. 88 da Lei nº 12.529/2011.". Para maiores detalhes sobre a prática de Gun Jumping, recomenda-se o Guia para a Análise da Consumação Prévia dos Atos de Concentração: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/gun-jumping-versao-final.pdf
3 Lei nº 12.529/2011. Art. 90. Para os efeitos do art. 88 desta Lei, realiza-se um ato de concentração quando: I - 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; II - 1 (uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; III - 1 (uma) ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou IV - 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture. Art. 88. Serão submetidos ao Cade pelas partes envolvidas na operação os atos de concentração econômica em que, cumulativamente: I - pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 750.000.000,00 (setecentos e cinquenta milhões de reais); e II - pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 75.000.000,00 (setenta e cinco milhões de reais).
4 Lei 12.529/11. Art. 88. § 3o Os atos que se subsumirem ao disposto no caput deste artigo não podem ser consumados antes de apreciados, nos termos deste artigo e do procedimento previsto no Capítulo II do Título VI desta Lei, sob pena de nulidade, sendo ainda imposta multa pecuniária, de valor não inferior a R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) nem superior a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais), a ser aplicada nos termos da regulamentação, sem prejuízo da abertura de processo administrativo, nos termos do art. 69 desta Lei. § 4º Até a decisão final sobre a operação, deverão ser preservadas as condições de concorrência entre as empresas envolvidas, sob pena de aplicação das sanções previstas no § 3o deste artigo.
5 CADE. AC nº 08700.007195/2023-38. DESPACHO SG Nº 1416/2023 (SEI n° 1299346).
6 RESOLUÇÃO Nº 24, DE 08 DE JULHO DE 2019. Art. 22. Em casos excepcionais, devidamente justificados, o Tribunal Administrativo do Cade poderá não aplicar os critérios previstos no art. 21 desta Resolução, observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e respeitados os limites estabelecidos no art. 20.
7 RESOLUÇÃO Nº 24, DE 08 DE JULHO DE 2019. Art. 21. O Tribunal Administrativo do Cade adotará a seguinte metodologia para o cálculo da multa pecuniária: I - Pena base no valor de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais); b) pela gravidade da conduta, de até 4% do valor da operação, a depender da natureza da decisão do Cade.
8 Nesse contexto, o Conselheiro Levi citou o precedente no qual o voto-vista já havia tecido considerações acerca de uma proposta de parâmetro a ser utilizado na proporção entre multa e valor da operação. Considerações estas que foram incorporados pelo voto do Conselheiro Relator e utilizados na celebração do acordo no referido caso. CADE. APAC n° 08700.001601/2020-14. No presente voto, o presidente, ao propor a análise elencada acima, retomou relevantes precedentes do Cade no que tange ao tema: APAC "Hidracor /Nacional Arco Íris" n° 08700.000422/2020-51; APAC "FD do Brasil Soluções de Pagamentos LTDA e Software Express Informática Ltda." n° 08700.002914/2020-81; APAC "Light Energia S.A. e CG I Fundo de Investimento em Participações Multiestratégia" n° 08700.005455/2019-54; e APAC "International Business Machines Corporation (IBM) e Red Hat, Inc" n° 08700.003660/2019-85. "Proponho, nesse momento, a criação de um novo parâmetro de comparação a ser utilizado pelo Conselho do Cade para a avaliação da dosimetria de multas relativas à prática de gun-jumping. A partir da apreciação de entendimentos prévios do Tribunal, torna-se mais fácil a obtenção de uma alíquota de intencionalidade, a partir da comparação jurisprudencial dos antigos casos julgados. Em outro precedente, o Conselheiro Relator afastou a sanção nos termos da Resolução 24/2019, tendo como base a análise das agravantes e atenuantes juntamente com os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade que devem orientar a Administração Pública e o direito administrativo sancionador. CADE. APAC n° 08700.002598/2020-48. "No caso em tela, se aplicássemos a dosimetria proposta na Resolução nº 24/2019 à operação, chegaríamos ao montante de [ACESSO RESTRITO AO CADE E ÀS REPRESENTADAS]. Tal valor se revela desproporcional quando consideramos que o valor total da operação foi de [ACESSO RESTRITO AO CADE E ÀS REPRESENTADAS]. A referida multa representaria, portanto, 62,45% do valor total da operação. Esta porcentagem demonstra um peso excessivo e desproporcional da sanção em relação à relevância econômica da operação realizada"
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.
Rafael Müller
Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Assessor no Gabinete da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Co-organizador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Jurisprudência e Constituição (GEPJuC/FD-UnB). Integrante do Grupo de Estudos em Constituição, Empresa e Mercado (GECEM/FD-UnB) e do Grupo de Estudos em Direito Concorrencial (GDC/FD-USP). Foi Editor-Gerente Eleito na Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB) e Gerente de Projetos na Advocatta (Empresa Júnior de Direito da UnB). As opiniões dos autores são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais estejam vinculados.