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Conflitos e perspectivas na tributação de heranças e doações: SC COSIT 21/24

Nova interpretação da Receita gera debates sobre coerência e segurança jurídica, levantando preocupações sobre o impacto em outros ativos financeiros.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Atualizado em 20 de maio de 2024 13:28

No dia 18/3/24, a RFB publicou a SC 21/24. Nesse ato administrativo, a Coordenação-Geral de Tributação analisou a tributação, pelo Imposto de Renda, de transferências por herança, legado ou doação de cotas de fundos fechados de investimento em renda fixa ou de cotas de fundos fechados de investimento em ações.

A manifestação teve como objetivo central resolver divergências entre a SC 98/21 e a SC 383/14. Ambas tratam de situações semelhantes, mas apresentam interpretações distintas quanto à aplicação do art. 23 da lei 9.532/97 às transferências em decorrência de sucessão legítima ou testamentária de cotas de fundos de investimento. Isso implicou na necessidade de reanálise das duas Soluções de Consulta mencionadas.

A SC 98/21, que tratou da doação de cotas em fundo fechado de investimento em ações, permitia que as partes avaliassem as cotas pelo custo de aquisição, afastando a incidência do imposto de renda. Entretanto, a COSIT 21/24 eliminou a aplicabilidade do art. 23 da Lei 9.532/97, adotando as regras de alienação de bens ou direitos conforme estabelecidos no art. 21 da lei 8.981/95, e nos arts. 16, 18 e 46 da IN 1.585/15. O órgão concluiu que a possibilidade de transferência das cotas pelo valor registrado na DIRPF do falecido ou do doador deve ser eliminada, e a diferença positiva identificada nas transmissões deve ser tributada de acordo com a tabela progressiva do ganho de capital, variando de 15% a 22,5%.

O recente posicionamento da RFB contradiz a lei em vigor e vai de encontro a princípios tributários fundamentais. Este ensaio busca explorar essas contradições.

Violação ao princípio da realização da renda

De acordo com a SC 21/24, a transferência de propriedade decorrente de sucessão por herança, legado ou doação das cotas de fundos por ela tratados, é considerada uma modalidade de alienação para fins de incidência do IR. O órgão se baseou no art. 46, §2º, da IN RFB 1.585/15 que dita que "a alienação compreende qualquer forma de transmissão da propriedade, bem como a liquidação, o resgate, a cessão ou a repactuação do título ou aplicação." Além disso, entendeu que as cotas de fundos fechados de investimento em renda fixa ou de cotas de fundos fechados de investimento em ações são instrumentos financeiros dotados de liquidez suficiente para serem alienados (em mercado secundário), para se efetuar o pagamento do imposto.

Para a RFB, quando um investidor falecido ou doador transfere suas cotas para seus herdeiros, o valor transferido é composto pela aquisição original mais os rendimentos obtidos, considerados como acréscimo patrimonial e sujeitos à tributação de ganho de capital conforme o art. 21 da lei 8.981/95. Esse entendimento reflete uma continuação da posição adotada anteriormente na SC 383/14, em que a Receita considerou a transferência por sucessão das cotas de fundos de investimento como uma forma de alienação conforme a legislação tributária, acarretando a incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte.

De qualquer modo, essa interpretação viola diretamente o princípio da realização da renda, previsto no art. 43 do CTN. Esse princípio é um conceito tributário fundamental que estabelece que a renda só deve ser considerada para efeitos de tributação no momento em que ela é efetivamente realizada, ou seja, quanto há uma separação do ganho ou da renda em relação à sua fonte produtora. Assim, a renda somente é tributada quando efetivamente recebida ou colocada à disposição do contribuinte.

Nesse sentido, entendemos que a transferência hereditária das cotas de um Fundo de Renda Fixa, sem resgate efetivo pelo contribuinte, não gera tributação de IR, pois não há realização de renda. Apesar da interpretação oposta da Receita Federal, essa transferência não se equipara a uma transação de mercado e não é um ativo líquido, a menos que o contribuinte opte por vender as cotas herdadas durante a sucessão.

Distorção da intenção do legislador

Uma outra interpretação introduzida pela SC 21/24 foi a não aplicação do art. 23 da lei 9.532/97 às transferências em decorrência de sucessão legítima ou testamentária de cotas de fundos de investimento. Esse artigo dispõe que, em casos de transferências por herança, legado ou doação, os bens e direitos podem ser avaliados pelo valor de mercado ou pelo valor declarado na declaração de bens do falecido ou do doador. Consequentemente, apenas quando a primeira opção é adotada é que haveria ganho de capital sujeito à tributação à alíquota de 15%. Caso contrário, não caberia se falar em incidência do imposto de renda, por ausência de acréscimo patrimonial.

Para a RFB, o dispositivo deveria ser lido considerando a intenção do legislador à época da edição da lei, que supostamente teria sido evitar que os herdeiros ou doadores precisassem vender outros bens para pagar o imposto no momento da transferência ou doação. Essa motivação, no entanto, não se aplicaria aos fundos de investimento em renda fixa e em ações, pois esses ativos financeiros geralmente têm liquidez suficiente para serem vendidos no mercado secundário e cobrir o pagamento do imposto, sem necessidade de alienação de outros bens pelos herdeiros ou doadores.

De antemão, a legitimidade da interpretação exposta na SC é passível de questionamento, já que o dispositivo legal não estabelece a ressalva apontada. Além disso, a mera interpretação baseada em exposição de motivos não pode prevalecer quando em manifesto conflito com a lei.

De toda sorte, mesmo que se admitisse o racional da RFB, a transcrição da exposição de motivos da MP 1602/97, convertida na lei 9.532/97, revela que a verdadeira intenção do legislador foi prevenir a evasão de imposto de renda, sem, contudo, impor aos herdeiros ou doadores a obrigação de dispor de bens para custear o imposto no momento da transferência:

21. O art. 24 cuida de regular a transferência de direitos de propriedade por sucessão, nos casos de herança e doações em adiantamento da legitima. 

Pela proposta, os bens e direitos, nas referidas hipóteses, poderão ser transferidos a valor de mercado ou pelo valor constante da última declaração de bens do de cujus ou do doador 

Se a opção for a transferência a valor de mercado, a diferença entre este e o valor constante da declaração de bens referida será tributada à alíquota de quinze por cento, devendo o imposto ser pago peio inventariante, no caso de espólio, ou pelo doador, no caso de doação. 

Se a opção for a transferência pelo valor da declaração de bens do de cujos ou do doador, não haverá cobrança de imposto no ato da transferência, mas o herdeiro ou donatário deverá incluir os bens ou direitos, em sua declaração de bens, pelo valor da transferência, o qual constituirá custo para efeito de apuração de ganho de capital numa eventual futura alienação. 

Estas normas, pela proposta, serão aplicadas, também, nas hipóteses de transferência de bens e direitos em decorrência de dissolução da sociedade conjugal. 

 

A medida, como se vê, tem caráter meramente de controle, como forma de prevenir a evasão de imposto de renda, hoje comumente verificada nesses casos de sucessão, sem, todavia, obrigar herdeiros ou doadores a dispor de bens para fazer face ao pagamento do imposto no ato da transferência.  

Note-se que não foram utilizados termos como "outros bens (além dos transferidos)" ou "sem a necessidade de os herdeiros ou doadores dispor de bens adicionais". Isso ocorre porque, de acordo com o legislador, ao facultar o diferimento do pagamento do IR para o momento de uma eventual alienação, o que se está fazendo é evitar que eles disponham de outros bens para pagar o imposto. Essa medida, portanto, tem o propósito de incentivar a regularização das transações e é considerada uma estratégia de controle para prevenir a evasão fiscal.

Com efeito, é evidente que o legislador não pretendeu que o contribuinte fosse obrigado a alienar qualquer ativo, independentemente de sua liquidez, a fim de quitar o imposto de renda. E nem poderia, sob pena de violar o princípio do não confisco, que constitui uma garantia fundamental consagrada na CR/88 para proteger a renda e o patrimônio do contribuinte.

Assim, ao permitir o adiamento do pagamento do imposto até a eventual venda, o legislador buscou não só aliviar o ônus imediato sobre o contribuinte, mas também reforçar os princípios de justiça fiscal e combater a evasão, incentivando maior conformidade com as obrigações tributárias.

Considerações finais

A Solução de Consulta COSIT 21/24 tem implicações significativas não apenas para a tributação de heranças e doações de cotas de fundos de investimento, mas também para o debate mais amplo sobre a tributação de ativos financeiros. Ao considerar a transferência de cotas como uma forma de alienação sujeita à tributação do imposto de renda, a Receita Federal levanta questões relevantes sobre a tributação de outros ativos, como ações e títulos de renda fixa. Embora cada ativo possa demandar análises jurídicas distintas, essa interpretação abre precedentes para sua possível expansão. Diante disso, é necessário realizar uma análise cuidadosa dos potenciais impactos retroativos dessa interpretação, especialmente em situações onde o Fisco havia adotado anteriormente uma posição diferente, a fim de garantir a segurança jurídica das transações passadas e a coerência do sistema tributário.

Pedro Henrique Vasconcellos Moraes

Pedro Henrique Vasconcellos Moraes

Advogado da área de Consultoria Tributária do Azevedo Sette Advogados.

André Augusto Silva Marques

André Augusto Silva Marques

Advogado da área de Consultoria Tributária do Azevedo Sette Advogados.

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