Cotas de gênero ou cotas de papel? O caso das candidaturas femininas fictícias e a corrupção eleitoral
A discussão sobre cotas de gênero nas eleições brasileiras questiona sua efetividade diante do aumento de candidaturas femininas fictícias, evidenciando manipulação eleitoral. Recentemente, uma decisão do TSE (Ac. De 22.2.2024) sobre uma chapa do PMB em Goiânia levanta reflexões sobre a legislação eleitoral.
sexta-feira, 17 de maio de 2024
Atualizado às 07:51
A discussão em torno das cotas de gênero no contexto das eleições brasileiras suscita um debate acalorado sobre sua efetividade real ou se se transformaram meramente em cotas de papel. Isso porque, o crescente número de casos de candidaturas femininas fictícias, evidencia uma recorrente prática corrupta no sistema eleitoral.
Tem-se que, ao teor dos hábitos atualmente vistos, as candidatas são lançadas meramente para cumprir exigências legais de representação feminina, sem efetiva participação na campanha ou intenção genuína de exercer o cargo, acarretando a desvirtuação da cota de gênero, que passa a ser instrumento de manipulação e fraude eleitoral.
Uma recente decisão proferida nos autos Ac. De 22.2.24 no AgR-AREspE 060024950, pelo eminente ministro Nunes Marques, relator do processo em questão, no âmbito do TSE, instiga a reflexão acerca dos intricados meandros que permeiam a legislação eleitoral brasileira, especialmente no que tange à cota de gênero e suas implicações práticas.
O cerne da controvérsia residiu na verificação do suposto descumprimento do percentual mínimo de candidaturas femininas, conforme preconizado no art. 10, § 3º, da lei 9.504/97, em uma chapa proporcional do PMB - Partido da Mulher Brasileira no município de Goiânia-GO. A decisão do TRE de Goiás manteve a improcedência da AIJE - Ação de Investigação Judicial Eleitoral, embasando-se nos enunciados 24 e 30 da súmula do TSE.
Todavia, o TSE, após análise aprofundada, concluiu que a candidatura em questão, cujo registro foi indeferido por ausência de quitação eleitoral, teve o trânsito em julgado após o prazo para eventual substituição pelo partido. Assim, entendeu-se pela imputação de fraude à mencionada candidata, diante da inoperância de dados concretos no acórdão regional acerca de sua participação efetiva na campanha.
Consoante se extrai do voto, uma das candidatas trouxe a tona diversos indicadores de fraude, ais como a obtenção de apenas um voto, a ausência de atos de campanha e a não abertura de conta bancária para movimentação de recursos. Tais elementos, por si só, ensejam questionamentos acerca da legitimidade de sua candidatura e da observância do percentual mínimo exigido em lei.
Observa-se que em recentes decisões, o TSE tem enfatizado a importância de se coibir a fraude na composição das chapas proporcionais, especialmente no que tange à cota de gênero. A jurisprudência tem sido clara ao estabelecer que a mera formalidade de incluir mulheres nas listas de candidatos não é suficiente para cumprir o propósito das cotas de gênero. Ao contrário, o Tribunal tem adotado uma abordagem rigorosa, avaliando cuidadosamente as circunstâncias de cada caso para identificar situações em que as candidaturas femininas são fictícias ou meramente instrumentais.
A participação feminina na política tem sido uma batalha contínua em direção à igualdade e à representatividade. No entanto, um desafio significativo se apresenta quando os próprios partidos políticos utilizam candidaturas fictícias como artifício para cumprir as cotas de gênero estabelecidas por lei. Esse fenômeno, além de comprometer a eficácia das medidas de inclusão, reforça barreiras que dificultam a ascensão das mulheres na esfera política.
Em sistemas políticos onde ocorre a sub-representação das mulheres ou até sua exclusão, as decisões tomadas tendem a refletir apenas os interesses e preocupações de uma parte da população, deixando de lado questões importantes que afetam as mulheres e outros grupos minoritários. Além disso, a falta de diversidade de gênero nos espaços de poder perpetuar estereótipos e preconceitos, reforçando uma cultura de desigualdade e exclusão.
A utilização de candidaturas fictícias por parte dos partidos políticos é uma prática que mina os princípios democráticos e a legitimidade do processo eleitoral. Ao lançar mulheres como candidatas de forma meramente simbólica, sem o efetivo apoio e investimento necessário para suas campanhas, os partidos não apenas desrespeitam a legislação vigente, mas também perpetuam desigualdades estruturais que marginalizam as mulheres na política. Essa estratégia, muitas vezes, resulta em um cenário em que as mulheres são utilizadas como "cotas de papel", sem que tenham a oportunidade real de exercer o poder e influenciar as decisões políticas.
Diante da análise sobre a importância da participação feminina na sociedade, torna-se evidente a urgência de ações concretas para promover a igualdade de gênero no âmbito político. É imperativo reconhecer a importância das cotas de gênero como uma ferramenta crucial para promover a igualdade e a representatividade das mulheres na política, desde que realizadas sem a sua desvirtuação.
A corrupção eleitoral, manifestada através das candidaturas fictícias, mina os princípios democráticos e compromete a integridade do processo eleitoral, perpetuando a desigualdade de gênero e minando a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. Para enfrentar esse desafio, é necessário não apenas fortalecer a
fiscalização e punição dos responsáveis por tais práticas, mas também promover uma mudança cultural que valorize e apoie a participação genuína das mulheres na política.
Somente mediante um esforço coletivo e comprometido, envolvendo instituições governamentais, partidos políticos, organizações da sociedade civil e a própria sociedade, será possível superar os obstáculos que impedem a plena participação das mulheres na política e construir um futuro mais justo, igualitário e democrático para todos.
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BRASIL. Código Eleitoral. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigoeleitoral/codigo-eleitoral-1/codigo-eleitoral-leinb0-4.737-de-15-de-julho-de-1965.
TSE. Resolução nº 23.610, de 18 de dezembro de 2019.
TSE. Resolução nº 23.732, de 27 de fevereiro de 2024.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral, Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial Eleitoral n. 0600249- 50.2020.6.09.0127. Relator: Ministro Nunes Marques. DJE 01/03/2024.
RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira, direitos políticos e civis. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1962. p. 47
Júlia Matos
Advogada eleitoral, Sócia no Escritório Di Rezende Advogados Associados, vice-presidente jovem da comissão de Direito Político e Eleitoral da OAB/GO, Coordenadora do Núcleo de Direito Público do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).