Breves reflexões sobre o ensino jurídico no Brasil
Evolução do ensino jurídico no Brasil, marcado por ideias liberais e positivismo jurídico. Artigo explora relação do direito com poderes político, econômico e ideológico.
quinta-feira, 16 de maio de 2024
Atualizado às 13:10
1 - INTRODUÇÃO
O ensino jurídico no Brasil esteve, desde sua origem, marcado por ideias liberais e pelo positivismo jurídico. Sempre foi relegado a plano secundário o estudo de humanidades, tais como sociologia, economia, filosofia, história, ciência política etc.
O presente artigo objetiva perpassar pela evolução, ou involução, do ensino jurídico no Brasil, desde a sua origem, permeando o estado liberal, o estado social, a Constituição de 1988 e o modelo neoliberal.
Nesse diapasão, é importante assinalar, desde logo, na esteira do pensamento do saudoso jusfiloso JJ Calmon de Passos, que o direito coexiste, inevitavelmente, atrelado aos poderes político, econômico e ideológico. Não existe, assim, pureza no direito. Nem mesmo a teoria pura do direito está desvinculada da ideologia.
Com efeito, esse poder macro do estado subdivide-se em poder político (que estabelece a coação do estado sobre seus súditos e a dominação da classe dominante sobre a dominada); poder econômico (que regula a divisão social do trabalho e a distribuição e apropriação dos bens da vida, que são escassos) e, por fim, o poder ideológico(que dita a legitimação ideológica dos dominantes sobre os dominados).
Ouçamos as palavras desse saudoso e ilustre professor:
"Inexiste pureza no direito. O jurídico coabita, necessariamente, com o político e com o econômico. Toda teoria jurídica tem conteúdo ideológico. Inclusive a teoria pura do direito. Nenhum instituto jurídico, nenhuma construção jurídica escapa dessa contaminação. Nem mesmo a dogmática jurídica. (1) Nem mesmo o processo, um instrumento aparentemente neutro, estritamente técnico, foge desse comprometimento. Ele está carregado de significação política e tem múltiplas implicações. econômicas." (DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E PROCESSO, Ensaios e Artigos, V II, Editora Jus Podivm, 2016, pag 361).
Nesse contexto, se pode extrair, inelutavelmente, a conclusão de que, dado a essa complexidade do fenômeno jurídico, o ensino de sociologia, economia, filosofia, história, etc é indispensável nas faculdades de Direito.
No mesmo sentido, ensina o professor Joel Dias Figueredo Junior, em coautoria com outros autores, no livro Filosofia do Direito Contemporâneo, Homenagem ao Professor Nicolau Apóstolo Písica, pags 254 e seguintes, verbis:
"Na delicada operação de julgar (verdadeira arte), exige-se do magistrado não apenas conhecimento técnico - jurídico para a tomada da decisão, mas segurança e profunda cognição da matéria fática, dentro das limitações naturalmente circunscritas pelo modelo processual e procedimental adotado num determinado sistema , enlaçando-se de maneira sutil, quiçá subliminar, com a sua formação humanista, filosófica, sociológica, religiosa, moral e política, ínsita em todos os julgados. Nesse contexto, é que aparece o julgador, sujeito central da relação processual que haverá de figurar como agente de pacificação social, possibilitando às partes, a justa composição do litígio."
Embora a citação transcrita, imediatamente anterior, aluda aos magistrados, não é demasiado assinalar que o mesmo se aplica a advogados, promotores e demais operadores do direito, que devem, de igual forma, ser aquinhoados com uma formação universitária não restrita puramente à dogmática jurídica, abrangendo, então, as demais humanidades.
2 - ESCORÇO HISTÓRICO
2.1 - VISÃO DO TEMA:
2.1.1 - SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO LIBERAL
Antes do surgimento no Brasil das duas primeiras faculdades, a de São Paulo e de Olinda, depois Recife, os alunos da elite eram levados a estudar, no início do século XIX, na faculdade de direito de Coimbra, onde se abeberaram de conhecimentos da doutrina liberal do estado. Com efeito, as reformas Pombalinas estavas centradas no liberalismo nascente na Europa, e foram ditadas pelos estatutos de 1772. A Revolução Francesa e Napoleão Bonaparte se encarregaram de difundir pela Europa e pelo mundo os ideias do liberalismo.
Essa tendência liberal foi incorporada, no Brasil império, pela carta de lei de 11/8/1827, que introduziu, nos dois últimos anos dos cursos jurídicos, as disciplinas de Direito Civil e Comercial, bem assim economia política e prática forense.
Nessa fase, não era só, na academia, o poder do Estado (absolutista) que erra contestado, mas também o modelo de ensino eclesiástico.
Na esteira do estado liberal, o modelo liberal, dogmático e positivista, baseado na escola de exegese francesa, se impôs na academia, sendo certo, também, que influenciou o projeto de Código Civil de Teixeira de Freitas, bem assim o Código Civil de 1916, de Beviláqua.
As duas primeiras faculdades de direito já referidas, criadas em 1827, já não se mostravam aptas a suprir as necessidades na formação dos bacharéis de direito. A recém proclamada república e o sucesso da cafeicultura geraram novas demandas sócias, que reclamavam um ensino diferente.
Ademais, tais faculdades de direito foram perdendo sua hegemonia. Foram, assim, criadas novas faculdades no país, inclusive a do Estado da Bahia, em 1891.
As primeiras críticas ao discurso hegemônico liberal ocorreram a partir da constatação da massificação vivenciada pela expansão indiscriminada de faculdades de direito no país, conforme padrões da época. Nesse contexto, surgiu a expressão "fábrica de bacharéis".
As reformas de 1911 (Rivadávia) e de 1915 (Carlos Maximiliano) também reforçavam os ideais do liberalismo, bem assim a metodologia tradicional do ensino, pautada, inclusive, em mera transmissão de conhecimentos aos alunos. Ademais a ênfase , como de ordinário, era dada às matérias de direito privado e à economia política.
Assim, nessa fase liberal, como já mencionado, a academia teve como fim precípuo a norma legislada, ante o império das codificações. Isso gerava um empobrecimento do ensino jurídico que, de um lado, centrava-se na pura dogmática jurídica e na metodologia de simples transmissão de conhecimento aos alunos, de outro, afastava-se da realidade social pulsante, ao deixar de prestigiar as ciências humanas.
2.1.2 - SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO SOCIAL
No final da década de 30 no Brasil, a agricultura, notadamente a produção cafeeira, perdia espaço, com a crise mundial, para o comércio e a indústria.
Ademais, após a crise mundial de 1929, surge, primeiramente, nos EUA, o Welfare State ou estado social, com a massiva intervenção do aparelho estatal na área social e na economia. Dá intervenção mínima do estado na sociedade e na economia passava-se ao dirigismo estatal, onde o estado regulava massivamente a sociedade e a economia.
De 1930 a 1945, a sociedade brasileira passou por diversas transformações, sendo que, segundo dados fidedignos , o ensino jurídico estagnara.
A mais importante reforma no ensino jurídico nessa época foi a reforma Francisco Campos, de 1931. Todavia, manteve-se a visão liberal da república velha, bem assim a metodologia de ensino tradicional.
Destarte, mesmo com o advento da "Escola Nova", que pregava inovações no ensino universitário no Brasil, a metodologia tradicional prevaleceu.
Desse modo, vê-se que o ensino jurídico estava em crise, mesmo com a ebulição legislativa e social da época, afeito que ainda estava, tão - somente, ao positivismo jurídico e aos ideais liberais. Nele, como se disse, desfilava um "museu de princípios e praxes".
Prossigamos. O autoritarismo vigente a partir do golpe militar de 1964, fez com que não houvesse mais espaços para a "Escola Nova". Valorizava-se nesse período apenas o tecnicismo. Essa tendência foi confirmada com os acordo MEC/USAID, embasando a reforma educacional de 1968.
A meta, nesse período ditatorial, voltou-se para o crescimento econômico, o "milagre brasileiro". A meta era no número de vagas nas instituições de ensino e nas metas educacionais qualitativas.
Com efeito, o tecnicismo, aliado ao controle do pensamento crítico, que atendiam às leis de mercado e mantinham a ordem , é que retratavam esse momento histórico. Esse foi o período de maior crise no ensino jurídico no Brasil. Foi, efetivamente, uma época perdida, que representou um atraso ante as propostas emancipatórias da "Escola Nova" e do Estado Social.
2.1.3 - SOB A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, O. NEOLIBERALISMO E O MERCADO.
Os multifacetados interesses que pululavam na sociedade brasileira, com a redemocratização, e os direitos consagrados na Constituição de 1988 permitiriam inovações no ensino jurídico no país. Só que isso, infelizmente, não aconteceu, mesmo com as conquistas emancipatórias do povo albergadas, em vasta extensão, no texto constitucional. Nele conviviam, lado a lado, a livre iniciativa e os direitos fundamentais, dentre eles os sociais (art 7º). As liberdades públicas foram protegidas, bem assim a igualdade formal e material. Os direitos de minorias foram chancelados. Mesmo assim o ensino jurídico não acompanhou essas transformações.
No início da década de 90 as estatísticas davam conta da existência de 186 cursos jurídicos no país, mas que mantinham a estrutura tradicional desde a reforma do ensino de 1971. O resultado dessa política foi a existência de um ensino precário e deformador para a preparação de bacharéis e para um mercado já saturado.
Esses aspectos da crise revelam que o ensino jurídico no país não poderia, como ainda não pode, formar profissionais aptos para enfrentarem a gama variada e complexa de conflitos sociais, inobstante os direitos consagrados na CF/88.
A OAB, através da sua comissão de educação, começou , desde 1992, um estudo nacional para reavaliação da função social do advogado e o seu papel de cidadão. O resultado foi a revogação da CEF 3/72, que estabelecia o predomínio do positivismo jurídico, das ideias liberais e da metodologia de ensino tradicional, pela Portaria 1.886/94 MEC., que estabeleceu novas diretrizes para o ensino jurídico no país. Ela, como premissas básicas, também estabeleceu que, ao lado das ideias liberais e do positivismo jurídico, também deveria imperar a formação interdisciplinar dos dissentes, com o estudo das ciências humanas.
Uma crítica importante que se pode fazer à Portaria 1.886/94 é que ela relegou a plano secundário as abordagens em sala de aula. É nela que existe o locus para a difusão das ideias liberais e do positivismo, bem assim da propagação das humanidades.
Acresce ao que vem de ser exposto o argumento de que a doutrina neoliberal, que foi implantada no Brasil nos anos 90, a partir, principalmente, do governo FHC, resultou na proliferação indiscriminada de cursos jurídico, em especial universidades privadas. Esses cursos, por óbvio, não privilegiam as humanidades, mas sim , tão - somente, o ensino da dogmática jurídica, visando a formação de profissionais, em grande escala, para o mercado, bem assim a obtenção de lucros exorbitantes. São muitos alunos, preços das mensalidades relativamente baixos e salários baixos para os professores. Eles ganham na quantidade e na imagem que divulgam na mídia, que lhes rendem grandes lucros financeiros, inclusive decorrentes de aplicações na bolsa de valores.
No ano de 2005, as tentativas de reforma universitária ainda requerem maiores aprofundamentos.
3 - CONCLUSÃO
Como visto anteriormente, o ensino jurídico ainda reclama o aperfeiçoamento metodológico, focado, inclusive, na sala de aula, onde podem ser aplicados, com ênfase, conhecimentos relativos à dogmática jurídica e às humanidades, tais como sociologia, economia, filosofia, história etc, sem prejuízo das ideias liberais.
Com efeito, como o direito está imbricado com a economia, a política e a ideologia, mister se faz a abertura de novos horizontes para os dissentes, notadamente numa sociedade plural e democrática, para fazer valer os direitos e programas insertos na CF/88.
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Bastos , Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil.2. ed Lumem Juris.2000
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