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PL 3.559/20: Uma solução para a garantia da saúde de atletas da luta pós-nocaute

O drama de lutadores que insistem em competir depois de serem nocauteados e sem avaliação médica alguma é comum no esporte de combate em vários países. No Brasil, o PL 3559/20 (lei do nocaute), surge como opção para essa questão, uma vez que o país não tem controle algum sobre a conduta dos atletas e promotores de luta nesse sentido.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Atualizado às 13:14

Introdução

Em um dos nocautes mais assustadores da história recente, o boxeador argentino Jonathan Ariel Sosa foi brutalmente nocauteado pelo lutador americano Terrence Williams em duelo de boxe no peso meio-médio ocorrido na Flórida, em 8 de maio.1

A maioria dos fãs reclamou da aparente incompatibilidade no casamento da luta, já que Williams, uma estrela em ascensão no esporte, tem um recorde de 6-0 com cinco nocautes. Sosa, por outro lado, já foi nocauteado seis vezes, não vence uma luta desde 2017 e tem um registro de 7-17 mais dois empates.

Suas últimas cinco apresentações foram nos Estados Unidos, onde o lutador nascido há 33 anos em San Martin, Argentina, construiu o último trecho de sua carreira profissional, Sua última luta no país foi há quase cinco anos, em 20/7/19, quando também foi nocauteado por Saúl Huenchul.

Uma cena assustadora ocorreu no ringue na Flórida após o nocaute, com a equipe médica colocando Sosa no oxigênio. Felizmente, com ajuda, ele conseguiu se levantar, sendo levado ao hospital para ser observado durante a noite.2

A história do atleta se confunde com a de muitos desportistas da luta nos últimos anos. Depois que a pandemia do coronavírus suspendeu o esporte em quase todo o planeta por alguns meses, Sosa optou por buscar novas oportunidades no exterior, onde o pagamento em dólares (mesmo que não sejam muitos) funciona como uma atração sedutora para muitos boxeadores. Mas, como muitos de seus colegas, ele fez todas as suas viagens sem autorização da Federação Argentina de Boxe (FAB).

Na Argentina, qualquer boxeador que deseje lutar fora do país deve apresentar, pessoalmente ou por meio de seu empresário, um pedido de autorização à FAB pelo menos sete dias antes da luta. Os regulamentos da FAB estabelecem que a solicitação deve incluir uma série de requisitos, como os detalhes do oponente, do promotor que organiza o evento e do diretor técnico ou segundo que o acompanhará durante a luta.

Entre os requisitos indispensáveis estabelecidos pela FAB, está o de realizar pelo menos três lutas de seis rounds e três lutas de oito rounds. Quando Sosa viajou para os Estados Unidos pela primeira vez, ele não cumpria esse requisito, pois só havia lutado duas vezes em lutas de oito rounds.

Ele também não cumpriu o requisito de ter um histórico com pelo menos 50% de porcentagem de vitórias: ele teve apenas 7 vitórias em 21 partidas (ele também teve 12 derrotas e 2 empates). Sua última vitória foi em 20/5/17.

Sem ter feito o pedido regulamentar de autorização, o atleta subiu no ringue em março/21 para enfrentar o estreante cubano Alayn Limonta, um jovem prospecto que havia tido uma boa carreira amadora juvenil em seu país.

Naquele dia, Sosa, que vinha de seis derrotas consecutivas e oito em suas últimas nove lutas, foi nocauteado no terceiro round por Limonta. Como resultado dessa viagem, o Tribunal Disciplinar da FAB cancelou sua licença profissional por seis meses por ter lutado no exterior sem permissão do órgão e por "baixo desempenho", de acordo com seu relatório mensal.3

Após mais quatro violações de regras, onde o atleta lutou sem autorização e voltou a ser nocauteado, o Tribunal Disciplinar da FAB lhe aplicou uma suspensão de um ano em 11 de janeiro/24, retroativa a 21/10/23. Essa penalidade ainda estava em vigor quando ele subiu ao ringue para enfrentar Terrence Williams em Plant City.

A FAB assim se manifestou sobre o incidente em sua conta oficial no Instagram:

Em relação ao boxeador profissional Jonathan Ariel Sosa, que foi derrotado na última quarta-feira 8 nos Estados Unidos, a FAB informa sua situação esportiva e federativa.

Sosa lutou na Argentina como federado FAB entre os anos 2015 e 2019, com um recorde de 6 vencidas (4 KO), 12 perdidas (3 KO) e 2 empates. Após a pandemia começa a combater no estrangeiro sem a permissão da FAB, por isso a sua licença foi suspensa.

Em março de 2024, Sosa apresentou-se pessoalmente à FAB para solicitar o fim definitivo de sua relação federativa com nossa instituição, já que sua intenção era continuar sua carreira nos Estados Unidos.

O Regulamento Argentino de Boxe não permite combater no exterior boxeadores com recorde negativo, tal era o caso de Sosa.

Desejamos que Jonathan Ariel Sosa esteja bem de saúde, e que o momento feio que observamos em sua última luta, tenha sido apenas um susto.4 (tradução nossa)

O drama de lutadores que insistem em competir depois de serem nocauteados e sem avaliação médica alguma é comum no esporte de combate em vários países.

Ocorre que, no caso da Argentina, que tem controle estatal do esporte de combate, há meios de impedir o atleta de competir quando ele não demonstra condições mínimas para tanto. Mesmo assim, os atletas encontram meios de "bypassar" esse controle, colocando suas vidas em risco, como foi o caso de Sosa, que pediu o fim do vínculo federativo com a FAB para que pudesse lutar sem ser incomodado nos EUA.

No Brasil, o PL 3.559/205, (que chamo de "lei do nocaute"), surge como opção para essa questão, uma vez que o país não tem controle algum sobre a conduta dos atletas e promotores de luta nesse sentido.

A ideia é interessante, já que há vários casos de atletas que transitam entre modalidades de luta, competindo sem controle algum. Nesses casos, os eventos, muitas vezes, ficam à mercê dos atletas, pois estes não têm como aferir se os lutadores têm lesões pretéritas, uma vez que não há obrigação de apresentação de exames nesse sentido. Já houve casos em que os próprios atletas ajuizaram ações no Brasil contra entidades reguladoras que não concordaram em liberá-los pós-nocaute para competir em outros países (como foi o caso de Sosa), por entender o atleta que só a ele caberia dizer quando estaria apto, ignorando este o fato de que o controle feito na modalidade (tal qual faz a FAB, que se comunica com outros países para manter suas decisões) serve justamente para salvaguardar sua saúde.

Caminhando no mesmo sentido, o PL 3.559/20 teria então a finalidade de garantir os princípios da segurança desportiva, alterando artigos da Lei Pelé, impedindo então que um atleta recentemente nocauteado pudesse competir sem liberação médica.

O projeto traz ainda a exigência de apresentação de parecer médico, exames clínicos e de imagem, como, por exemplo os exames radiológicos e neurológicos, com o fim de se atestar a integridade física e mental dos atletas a eles submetidos.

No caso da lei vir a ser sancionada, seria obrigatória a realização desses exames ao atleta que tenha sofrido nocaute na última luta profissional, seja no Brasil ou no exterior. O parecer médico deverá então ser apresentado à entidade ou ao responsável pela organização do evento desportivo, sendo condição irrefutável para participação em nova disputa profissional.

O projeto de lei estabelece também a autorização ao poder público a instituir multa equivalente a um terço do valor da arrecadação auferida ao evento, que deverá ser cobrada da entidade ou pessoa autorizada a realizar o evento desportivo entre atletas que não apresentarem o referido parecer médico, conferindo segurança aos atletas participantes.

Ocorre que, com a possível revogação total da Lei Pelé6, o projeto, que tem premissas bastante interessantes, estaria apontando para o lugar no errado, quando consideramos a lei que o PL busca alterar. Outra questão levantada é a da autonomia desportiva, que seria supostamente afetada por uma imposição de regra externa para as modalidades esportivas de luta. Vamos então aos pontos de discussão levantados.

O confronto entre autonomia desportiva e saúde dos atletas

A lei 14.597/23, a nova LGE - Lei Geral do Esporte, em seu art. 2º, inciso XV e XVI, traz como princípios do esporte a saúde e a segurança dos atletas, sendo que a nova lei possui previsão expressa quanto ao cuidado que eventos esportivos precisam ter com atletas de esporte de combate, uma vez que seu art. 82, parágrafo único, enquadra o atleta de esporte de combate como atleta profissional, levando-se em conta que a grande maioria desses atletas têm a luta como sua principal fonte de renda.

A exigência de contratação de seguro de vida e de acidentes pessoais para os atletas profissionais também consta do artigo 84, incisos III, V e VI da mesma lei. Da mesma forma, o art. 59 da referida lei prevê, em seu inciso VI, que, no âmbito da gestão do esporte, devem ser adotadas medidas que visem assegurar a integridade dos competidores.

Nesta senda, o objetivo do PL seria proporcionar a máxima segurança, sob um caminho gerenciado que permita ao atleta competir dentro dos limites das regras estabelecidas nos regulamentos do esporte, sem descuido de sua saúde, fazendo-se cumprir as exigências legais da LGE, uma vez que a vida e a segurança dos atletas, garantias do artigo 5º da CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, são obrigações das entidades desportivas, o que não pode ser sobreposto pela autonomia de tais entidades.

Não se desconhece que os lutadores de esporte de combate no Brasil não são considerados empregados. Porém, é importante destacar que o atleta de esportes de combate já pode ser considerado atleta profissional no Brasil por força da nova Lei Geral do Esporte, isso sempre que tenha a luta como sua fonte de renda e que isso seja feito de forma permanente e remunerada. Devido à nova visão legal na qual se enquadra hoje este trabalhador, entendo que o Ministério do Trabalho poderia editar normas regulamentadores que protejam sua saúde, nos moldes do art. 200 da CLT.

A sugestão de substitutivo

Com o fito de aproveitamento do PL, seguem as alterações ao texto legal, que ora sugiro:

"O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º - O Artigo 84 da Lei Nº 14.597, de 14 de junho de 2023, passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 84...........................................................................................................................

§5º Nas competições profissionais de luta realizadas no Brasil, o atleta que sofreu nocaute no último combate profissional, realizado no Brasil ou no exterior, deverá apresentar à entidade ou pessoa responsável pela organização do espetáculo desportivo, como condição para participar de nova disputa, parecer médico baseado em exames clínicos e de imagem que atestem sua integridade física e mental.

§6º O poder público do local em que será realizado o combate profissional poderá aplicar multa, no valor equivalente a um terço da renda auferida com o evento desportivo quando não for observado o disposto no parágrafo anterior.

§7º O Ministério do Trabalho poderá criar normas complementares relativas à saúde dos atletas profissionais da luta, nos moldes do artigo 200 da CLT.

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação."

Considerações finais

Embora esportes de combate tenham seus riscos, em outros países, como vimos, existem controles para evitar que os lutadores compitam logo após serem nocauteados. No Brasil não há esse controle.

ABC - Associação de Comissões de Boxe e Esportes Combativos, entidade estatal que une as comissões atléticas de luta nos EUA, tem a posição de que nenhum atleta deve lutar por um período mínimo de 60 dias após uma derrota por nocaute7. Existem perigos médicos bem conhecidos quando atletas com concussão retornam a competições de impacto, e aos treinos, antes que suas concussões tenham tempo de se curar adequadamente.

Em que pese a tentativa de se legislar para o cuidado com a saúde do atleta, este precisa respeitar o tempo de suspensão aplicada pelo médico. É comum que muitos atletas voltem aos treinos sem terem cumprido o tempo total de recuperação.

A lesão cerebral não faz distinção entre prática e competição. Trauma é trauma. E é necessário um tempo de recuperação para o caso de um nocaute.

Ao poder público cabe legislar para impor a necessidade de cuidado com a saúde dos atletas da luta, mas a estes cabe respeitar os limites do próprio corpo.

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1 O duelo está registrado no site oficial de registros do boxe internacional, o BoxRec: https://boxrec.com/en/box-pro/695946.

2 Veja a luta em: https://youtu.be/--dtA222AxY?si=OYlmJmuWIPBu-WzU.

3 https://www.clarin.com/img/2024/05/10/A6hxhZEPK_720x0__1.jpg.

4 https://www.instagram.com/p/C6ze65Kr__X/?igsh=MWFkeHByNDJmYm5mdQ==.

5 BRASIL. Câmara dos Deputados. PL nº 3.559 de 2022. Altera a Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, que institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências, para incluir medidas cautelares para preservar a saúde do atleta profissional de luta. Projeto de Lei. Brasília, DF, Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2256421. Acesso em 10 mai. 2024.

6 Em sessão do Senado, no dia 09 de maio de 2024, foram incluídos na Lei Geral do Esporte - LGE (Lei 14.597 de 2023) 50 dispositivos que haviam sido vetados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 294 ainda precisarão ser apreciados pelo Congresso. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/05/09/fundo-para-o-esporte-e-parte-do-direito-de-arena-aos-atletas-sao-restabelecidos.

7 Neidecker J, Sethi NK, Taylor R, Monsell R, Muzzi D, Spizler B, Lovelace L, Ayoub E, Weinstein R, Estwanik J, Reyes P, Cantu RC, Jordan B, Goodman M, Stiller JW, Gelber J, Boltuch R, Coletta D, Gagliardi A, Gelfman S, Golden P, Rizzo N, Wallace P, Fields A, Inalsingh C. Concussion management in combat sports: consensus statement from the Association of Ringside Physicians. Br J Sports Med. 2019 Mar;53(6):328-333. doi: 10.1136/bjsports-2017-098799. Epub 2018 Jul 26. PMID: 30049779; PMCID: PMC6579496. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6579496/pdf/bjsports-2017-098799.pdf. Acesso em 10 mai. 2024.

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REDAÇÃO. Jugarse la vida por un puñado de dólares: lo que no se contó del terrible nocaut al boxeador argentino Jonathan Sosa. Clarín, Argentina, 11 maio 2024. Disponível em: https://www.clarin.com/deportes/jugarse-vida-punado-dolares-conto-terrible-nocaut-boxeador-argentino-jonathan-sosa_0_MMGHQewHXG.html. Acesso em: 13 maio 2024.

Elthon Costa

VIP Elthon Costa

Advogado trabalhista e desportivo. Mestre em Direito Desportivo Internacional. Professor, palestrante e organizador e autor de artigos e livros jurídicos

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