A obrigatoriedade de cobertura frente ao futuro da saúde e o avanço do Judiciário
A evolução da medicina e os limites contratuais e legais levantam questionamentos sobre as tendências do judiciário. O tema é cada vez mais atual e merece ser refletido sob o enfoque da jurisprudência.
quinta-feira, 16 de maio de 2024
Atualizado às 07:48
É de amplo conhecimento que há alguns anos os Tribunais vêm consolidando entendimento sobre a obrigatoriedade do custeio de medicamentos e tratamentos de alto custo pelo plano de saúde. Atualmente o tema já é inclusive matéria sumulada no TJ/SP e conta com posicionamentos majoritariamente favoráveis do Superior Tribunal de Justiça.
O entendimento possui respaldo na Constituição Federal que prevê o direito fundamental à saúde, inserido no artigo 6º do texto constitucional como direito social após passar por um contexto histórico importante.
A responsabilidade dos planos de saúde nasce do dever de prestar assistência aos beneficiários que possuam indicação médica comprovada, observado o texto constitucional e os ditames do CDC, atentando aos critérios de necessidade de cada caso, e deve levar em conta as importantes alterações na jurisprudência brasileira sobre o tema.
Nesse ponto, importante destacar que mesmo após a superada decisão da 2ª seção do STJ a respeito da taxatividade do Rol da ANS, extrapolada pela lei 14.454/22 que transformou o Rol da ANS em exemplificativo, o STJ mantém o entendimento de que se no Rol da ANS não houver substituto terapêutico ou se os listados se mostrarem ineficazes, deve prevalecer a indicação médica, incluindo-se técnicas mais avançadas que visam maior eficácia e segurança ao paciente.
Entenda-se que a responsabilidade se configura não só nos casos de cura, mas também nos casos de prevenção, como na hipótese de procedimento de criopreservação de óvulos até a alta do tratamento quimioterápico, visando evitar o prejuízo da paciente diante do risco de infertilidade.
O assunto transcende a discussão já exaustivamente debatida no judiciário acerca do fornecimento de medicamentos de alto custo, e atinge a possibilidade de concessão também de tratamentos alternativos, técnicas inovadoras, cirurgias através de robótica, home care, medicamentos off label, tratamento para transtorno do espectro autista, dentre outras possibilidades.
O que se vê é que, mesmo que muitos avanços ainda sejam necessários nas análises judiciais, os tribunais vêm garantindo com cautela os direitos dos beneficiários dos planos de saúde ao acompanhamento do avanço da medicina, reconhecendo a abusividade das negativas aviadas pelas operadoras de planos de saúde em relação a tratamentos e procedimentos que possuam evidências científicas e que sejam reconhecidos pelas autoridades competentes, configurando ato ilícito passível de indenização, conforme entendimento do STJ.
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. TRANSPLANTE DE FÍGADO. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. NEGATIVA DE COBERTURA DE PROCEDIMENTO MÉDICO. DESCABIMENTO. DANOS MORAIS. RECUSA INJUSTIFICADA. SÚMULA 83/STJ. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Havendo cobertura para a doença, consequentemente deverá haver cobertura para procedimento ou medicamento necessário para assegurar o tratamento de doenças previstas no referido plano. Precedentes. 2. 'A jurisprudência do STJ firmou o entendimento no sentido de ser abusiva a cláusula contratual que exclui tratamento prescrito para garantir a saúde ou a vida do segurado, porque o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de terapêutica indicada por profissional habilitado na busca da cura.' (AgInt no AREsp 1573618/GO, rel. ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª turma, julgado em 22/6/20, DJe 30/6/20). 3. "A recusa indevida/injustificada, pela operadora de plano de saúde, em autorizar a cobertura financeira de tratamento médico, a que esteja legal ou contratualmente obrigada, enseja reparação a título de dano moral, por agravar a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do beneficiário. Caracterização de dano moral in re ipsa. Precedentes" (AgRg no AREsp n. 527.140/SP, relator ministro MARCO BUZZI, 4ª turma, julgado em 2/9/14, DJe 16/9/14). 4. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1880040 SP 2020/0145750-7, relator: ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 25/9/23, T4 - 4ª turma, Data de Publicação: DJe 28/9/23)
O avanço do Judiciário na temática é visto com bons olhos, já que tecnologias avançam cada vez mais rapidamente, e, evidentemente, o consumidor, aqui representado na figura do beneficiário do plano de saúde, não pode estar atrelado ao moroso ritmo da análise e revisão do Rol da ANS.
Elucidando o tema, colacionamos recente entendimento proferido pela ministra Nancy Andrighi sobre a obrigatoriedade de cobertura da criopreservação de óvulos:
RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. BENEFICIÁRIA ACOMETIDA DE CÂNCER DE MAMA. PRESCRIÇÃO DE QUIMIOTERAPIA. RISCO DE INFERTILIDADE COMO EFEITO ADVERSO DO TRATAMENTO. CRIOPRESERVAÇÃO DOS ÓVULOS. PRINCÍPIO MÉDICO "PRIMUM, NON NOCERE". OBRIGAÇÃO DE COBERTURA DO PROCEDIMENTO ATÉ À ALTA DA QUIMIOTERAPIA. 1. Ação de obrigação de fazer ajuizada em 1/7/20, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 18/5/21 e concluso ao gabinete em 25/5/23.2. O propósito recursal consiste em decidir sobre a obrigação de a operadora de plano de saúde custear o procedimento de criopreservação de óvulos, como medida preventiva à infertilidade, enquanto possível efeito adverso do tratamento de quimioterapia prescrito à recorrida, acometida por um câncer de mama.3. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e suficientemente fundamentado o acórdão recorrido, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há falar em violação do art. 1.022 do CPC/15.4. Esta Turma, ao julgar o REsp 1.815.796/RJ (julgado em 26/5/20, DJe de 9/6/20), fez a distinção entre o tratamento da infertilidade - que, segundo a jurisprudência, não é de cobertura obrigatória pelo plano de saúde (REsp 1.590.221/DF, 3ª turma, julgado em 7/11/17, DJe de 13/11/17) - e a prevenção da infertilidade, enquanto efeito adverso do tratamento prescrito ao paciente e coberto pelo plano de saúde.5. O princípio do primum, non nocere (primeiro, não prejudicar), não impõe ao profissional da saúde um dever absoluto de não prejudicar, mas o de não causar um prejuízo evitável, desnecessário ou desproporcional ao paciente, provocado pela própria enfermidade que se pretende tratar; dele se extrai um dever de prevenir, sempre que possível, o dano previsível e evitável resultante do tratamento médico prescrito. 6. Conclui-se, na ponderação entre a legítima expectativa da consumidora e o alcance da restrição estabelecida pelo ordenamento jurídico quanto aos limites do contrato de plano de saúde, que, se a operadora cobre o procedimento de quimioterapia para tratar o câncer de mama, há de fazê-lo também com relação à prevenção dos efeitos adversos e previsíveis dele decorrente, como a infertilidade, de modo a possibilitar a plena reabilitação da beneficiária ao final do seu tratamento, quando então se considerará devidamente prestado o serviço fornecido.7. Se a obrigação de prestação de assistência médica assumida pela operadora de plano de saúde impõe a realização do tratamento prescrito para o câncer de mama, a ele se vincula a obrigação de custear a criopreservação dos óvulos, sendo esta devida até a alta do tratamento de quimioterapia prescrito para o câncer de mama, a partir de quando caberá à beneficiária arcar com os eventuais custos, às suas expensas, se necessário for.8. REsp conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido. (STJ - REsp: 1962984 SP 21/0307888-6, relator: ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 15/8/23, T3 - 3ª turma, Data de Publicação: DJe 23/8/23)
Portanto, o que se espera é que, sem esquecer o equilíbrio econômico-financeiro da atividade desempenhada pelas operadoras de saúde, o avanço do judiciário coadune cada vez mais com o avanço da medicina como forma de garantir assistência à saúde e melhores técnicas de tratamentos aos beneficiários.
DÚVIDAS RECORRENTES SOBRE O ASSUNTO:
1. Indicação de tratamento off label (fora da indicação em bula) deve ser coberto pelo plano de saúde?
R: Sim. Ainda que não esteja previsto no Rol da ANS, a jurisprudência entende que o uso off label do medicamento, desde que indicado pelo médico assistente, deve ser coberto pelo plano de saúde.
2. A indicação médica deve ser emitida por médico credenciado?
R: Não é obrigatório que o pedido seja formulado por médico do plano de saúde, podendo o médico assistente do paciente indicar o tratamento necessário.
3. Se o plano de saúde cobre a cirurgia pela técnica convencional, é possível a autorização pela técnica robótica?
R: Sim. Tratamentos que garantem melhor eficácia e segurança ao paciente podem ser cobertos pela operadora de saúde.
4. O plano deve cobrir qualquer tratamento?
R: Não. Os tratamentos e procedimentos obrigatórios estão previstos no Rol da ANS, porém o judiciário vem decidindo de maneira favorável à obrigação de cobertura de tratamentos/procedimentos que contem com expressa indicação médica, devendo ser analisado caso a caso.
Maria Fernanda Geiger Alonso
Advogada. Especialista em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduanda em Direito Médico e Bioética pela PUC Minas.