Prova audiovisual e segurança jurídica: se está na nuvem, não está nos autos
O emprego de provas audiovisuais no contexto do processo eletrônico levanta preocupações sobre sua segurança e custódia. A legislação, omissa, e os sistemas processuais, ainda não completamente adaptados, abrem brechas para práticas perigosas.
quinta-feira, 9 de maio de 2024
Atualizado às 14:54
A disputa processual possui diversos elementos instrumentais, dos quais, neste artigo, destacaremos as provas, em especial as provas audiovisuais e os seus desafios no atual processo eletrônico.
Para o advogado, a produção de provas é tão corriqueira ao ponto de se tornar uma providência automática. O primeiro atendimento ao cliente carrega este desfecho: - Certo, Fulano, diga-me se você tem como provar tal fato?
Afinal, via de regra, o ônus da prova é daquele que alega um fato ou direito violado, o famoso onus probandi.
"Se a parte tem o direito, mas não pode prová-lo, terá na prática uma situação análoga à daquele que não tem direito" Maricí Giannico
Essa é a visão materialista da prova que sustenta sua influência direta na decisão a ser proferida.
De outro lado, temos a corrente processualista que dá ênfase à função instrumental da prova, cujo principal objetivo é a convicção judicial.
Fato é que a função primordial da prova é a demonstração de um fato, da qual decorrerá a fundamentação jurídica que cabe ao Estado apresentar. Para isso, ela deve ser pertinente, relevante e adequada.
A maioria da doutrina brasileira entende que o destinatário da prova é o magistrado, pois, é ele que deve ser convencido dos fatos narrados.
Neste ponto chegamos a um impasse quando tratamos de provas audiovisuais hospedadas em plataformas de streaming ou em nuvem, sendo disponibilizadas ao Juízo por meio de links ou QR Codes.
Nosso questionamento principal é: se o magistrado é o destinatário da prova e, quando a recepciona, torna-se guardião dela enquanto dirigente do processo; quando nos referimos às provas audiovisuais, esta afirmativa permanece coerente ou o advogado da parte que constituiu a prova será seu eterno guardião, zelando pela incorruptibilidade do link e, portanto, da prova em si?
Há uma lacuna legislativa neste ponto, tendo em vista que o Código de Processo Civil em vigência dispõe no parágrafo único do art. 434 que "quando o documento consistir em reprodução cinematográfica ou fonográfica, a parte deverá trazê-lo nos termos do caput, mas sua exposição será realizada em audiência, intimando-se previamente as partes.".
Esta previsão nos remete ao acautelamento da mídia física, isto é, por meio de CD's, DVD's ou pen drive, os quais, de fato, são entregues em Juízo e não perpetuam a guarda da prova com a parte que a produziu.
Porém, com o advento dos processos virtuais, a prática do acautelamento físico teve uma diminuição significativa de uso pela facilidade e dispensa de locomoção promovidas pela disponibilização de um hiperlink ou Qr code na petição. Muitos juízos, inclusive, estimulam essa prática, orientando os advogados a hospedarem a prova em nuvens digitais, disponibilizando apenas o caminho na petição.
Tais circunstâncias promoveram o debate junto ao Conselho Nacional de Justiça, que publicou a Resolução 408 em 20/08/2021 com o intuito de estabelecer diretrizes ao Poder Judiciário quanto ao recebimento, armazenamento e acesso a documentos digitais relativos aos autos de processos administrativos e judiciais. Os principais pontos são:
Criação de repositório, sob a responsabilidade dos órgãos do poder judiciário, para gestão de documentos e mídias digitais;
Se a mídia não puder ser anexada, deve ser acautelada em local seguro da secretaria/cartório e armazenada em mídia externa fornecida pelo tribunal;
A mídia que não estiver referenciada nos autos será considerada não integrante; e
Reforço das penalidades criminal, civil e administrativa de quem desfigurar ou destruir documentos de valor permanente ou de interesse público.
O fato é: em nenhum momento na resolução há sequer a previsão hipotética de que a prova audiovisual possa estar em qualquer lugar senão sob a guarda direta do poder Judiciário, o que coloca em xeque a prática cada vez mais comum de hospedar esse tipo de prova em serviços de terceiros.
O que acontece se, em algum momento do trâmite processual, ao longo dos seus incontáveis anos infelizmente, diga-se, a pasta virtual vier a ser alterada ou mesmo perdida? Pior, e se houver troca de advogados o que inclusive pode acontecer de maneira não tão amigável , o antigo patrono continuará responsável pela guarda da prova? E os possíveis incidentes de falsidade que podem ser suscitados, atrasando ainda mais o processo e prejudicando a parte?
Estamos diante de um desafio proporcional ao avanço tecnológico em detrimento da legislação vigente e, portanto, deve ser amplamente discutido pela comunidade jurídica para que a implantação de tais diretrizes sejam eficazes.
Na prática, são poucos os sistemas que admitem o upload de mídias audiovisuais, com restrições de tamanho ou formatos.
Nossa recomendação, como especialistas em documentos jurídicos, ainda é o acautelamento da mídia física como uma forma segura de armazenamento da prova, o que deverá ser certificado pela secretaria ou cartório do Juízo. Isso, claro, se o sistema não permitir a sua anexação. Em caso de negativa, é importante que o advogado peticione fundamentando a necessidade de transferir a guarda da prova ao juízo, com base nas legislações aqui mencionadas.
Aí sim, agora com a mídia acautelada, não há problema em, de forma concomitante, hospedar os arquivos em nuvem, referenciando trechos estratégicos na petição com uso de hiperlinks.
No tocante ao Qr Code, contudo, a magistratura é resistente ao seu uso em petições por diversos motivos que envolvem a experiência do usuário e a segurança da informação, sendo um elemento visual desaconselhado, em especial quando tratamos de acesso ao meio de prova.
A necessidade de adequação dos sistemas judiciais ao processo virtual e à nova dinâmica da advocacia é latente e, enquanto não ocorre por completo, a recomendação é de cautela: converse com a secretaria do juízo para saber o meio por eles indicado para segurança da prova e não seja o responsável pela sua guarda em nenhuma hipótese.